A quem interessa desqualificar a psicanálise
“O que se quer, no fundo, quando se pretende deslegitimar um discurso de saber, diferente do seu?” pergunta o filósofo francês Michel Foucault. E ele mesmo responde: “exercer poder”
Recentemente afirmações em tom de polêmica retornaram à pauta e podem causar extrema confusão no público de fora das áreas da saúde e mais especificamente, de fora das áreas psi. Mas eu só mencionarei aqui o que vale a pena ser mencionado e meu objetivo é trazer a público algumas reflexões acerca desse discurso – frequente – de que a psicanálise seria uma pseudociência.
Na maior parte das vezes que eu leio alguém afirmando categoricamente que a psicanálise é pseudociência, ou que não há evidências de eficácia da psicanálise, eu não encontro descrição dos autores da fala sobre o que seria a ciência. Isso me traz a nítida impressão de que muitos dos que querem deslegitimar a psicanálise direcionando a ela a alcunha de pseudociência não saberiam descrever o que seria e o que define uma ciência.
Na verdade, para ser mais exata, refletir sobre o conceito de ciência não é mesmo papel dos cientistas e sim dos filósofos da ciência, daqueles que de fato se debruçam sobre esse tema e que sabem, para além de toda superficialidade, que discutir ciência e epistemologia dá muito trabalho. Quem estuda epistemologia sabe que há aí algo que requer muito trabalho e que não é possível fazer dessa discussão um resumo marketeiro em uma frase de efeito para parecer sabichão.
Como eu sei das minhas limitações, não vou debater ciência. Vou debater questões sobre discurso, produção de discurso, produção de conhecimento e sobre algo que sei falar um pouco: subjetividade.
Há quem diga que a psicanálise carece de evidências de eficácia enquanto método clínico/terapêutico. No entanto, esse discurso de que a psicanálise está ultrapassada e/ou carece de evidências de eficácia é, sim, falacioso. Basta procurar em alguma base de dados, nacional ou internacional, para identificar estudos que mostram a eficácia da psicanálise em diversos âmbitos. Eu fiz uma busca muito rápida e mostro abaixo alguns poucos resultados.
Um estudo de 2017, realizado na Holanda por Driessen et. al, concluiu que “este é o primeiro estudo que mostra que a terapia psicodinâmica de orientação psicanalítica pode ser pelo menos tão eficaz quanto a TCC [terapia cognitivo comportamental] para a depressão em aspectos importantes do funcionamento do paciente além da redução dos sintomas depressivos”. Outro estudo, de 2020, realizado por Lindegaard, Berg e Anderson, descreve que “Em conclusão, IPDT [psicoterapia psicodinâmica de orientação psicanalítica] é uma alternativa promissora de tratamento, especialmente para depressão”. Já o estudo de Mechler, et.al, realizado em 2022, afirma que “IPDT não foi inferior ao ICBT [terapia comportamental cognitiva baseada na internet] em termos de mudança na depressão para o tratamento de adolescentes. Essa descoberta aumenta a gama de alternativas de tratamento acessíveis e eficazes para adolescentes com depressão”. Há ainda um estudo brasileiro, realizado na Universidade de São Paulo em 2021 por Garrido e Motta que afirma que: “o processo psicanalítico se mostrou efetivo: a paciente adquiriu mais condições de preservar suas redes afetivas constituintes, e tornou-se menos vulnerável à ansiedade e impulsividade”.
Como se vê, são estudos recentes que foram resultado de busca bem simples em uma base de periódicos científicos internacional. Ou seja, uma coisa é criticar as evidências, criticar ou questionar diretrizes, metodologias, pressupostos de pesquisa etc. Na produção do conhecimento isso é algo natural, saudável e esperado. O que não pode ser saudável é dizer que não há, quando há sim evidências de eficácia.
A respeito da produção do conhecimento em Psicologia, tenho ainda algumas considerações a fazer. O objeto de estudo da psicologia, psicanálise etc. não é quantificável ou mensurável, não se mede a subjetividade em laboratório. Para ser ainda mais específica, o objeto de estudo das ciências humanas todas, o ser humano, é complexo e fazer ciência, ou seja, produzir evidências de eficácia no que se refere às ciências humanas não é simples e está bem longe de ser análogo ao que se faz nas chamadas ciências duras.
A psicanálise, por exemplo, tem em vários aspectos um grande parentesco com a Antropologia, uma das ciências humanas que nos faz ver que não se faz estudos com evidências e legitimidade apenas em laboratório.
“O que se quer, no fundo, quando se pretende deslegitimar um discurso de saber, diferente do seu?” pergunta o filósofo francês Michel Foucault. E ele mesmo responde: “exercer poder”. No campo da saúde e no campo da psicologia há relações de poder. No campo da produção de conhecimento há relações de poder. E no campo da produção de conhecimento também precisamos do olhar crítico, assim como no fazer científico os pressupostos filosóficos e a atitude filosófica são condições de possibilidade, já que não se faz ciência sem filosofia.
Mas porque a psicanálise? Porque, desde Freud, há ataques a ela? Por que não se vê tanto burburinho com outras psicologias?
Freud já apareceu na história do Ocidente trazendo certos desconfortos. É preciso lembrar que ele não é apenas o pai da psicanálise: é um dos marcos em nossa tradição de pensamento, um dos chamados pensadores da suspeita, influenciou e influencia toda a nossa cultura. Um exemplo disso são os termos psicanalíticos já incorporados em nosso vocabulário: narcisismo, complexo de édipo, repressão etc. Quando Freud surgiu ele mesmo nos explicou que sabia que a psicanálise poderia ferir o narcisismo da humanidade, já que nos faz ver que não somos senhores de nós mesmos; desejamos frequentemente algo que não poderíamos desejar. O inconsciente é uma noção que apareceu para confrontar a ideia de que seria possível a nós, humanos, sermos racionais o tempo todo. Não é à toa que em certa ocasião, durante visita aos Estados Unidos, Freud teria afirmado algo como: “eles não sabem, mas viemos trazer a peste”.
Possivelmente Freud já previa muitos dos incômodos que a psicanálise poderia gerar. O que podemos dizer, em nosso presente histórico, é que um contexto político como o nosso, atravessado pelo neoliberalismo e sua forma de organização focada no desempenho a qualquer custo, possivelmente não vai querer favorecer uma técnica de escuta do sofrimento que fomenta no sujeito a crítica. A psicanálise incomoda, mais do que nunca talvez, porque vivemos numa crescente rarificação da escuta, num crescente movimento de silenciar o conflito humano que nos é constituinte. Vivemos atualmente um movimento de silenciar a tristeza, o medo e a angústia que muitas vezes nos fariam olhar para a injustiça social, para a desigualdade, para a miséria e para tudo aquilo que fomenta o adoecimento psíquico.
Sim, a psicanálise incomoda e vai continuar incomodando. Porém, dizer que não há evidência de sua eficácia não é progresso científico. É falácia retórica, má-fé e muito, mas muito sensacionalismo. E a insistência de alguns em querer “bater” na psicanálise talvez também seja algo que somente Freud explicaria.
Flávia Andrade Almeida, psicóloga clínica, especialista em Psicologia da Saúde, Psico-oncologia e Prevenção ao suicídio. Mestre em Filosofia (PUC-SP) e doutoranda em Psicologia Clínica (USP). Docente, supervisora clínica e autora do livro Suicídio e medicalização da vida – reflexões a partir de Foucault (CRV, 2021).
Referências bibliográficas
MECHLER, J. et. al Therapist-guided internet-based psychodynamic therapy versus cognitive behavioral therapy for adolescent depression in Sweden: a randomised, clinical, non-inferiority trial. The Lancet, Digital Health. Vol, 4. Publicado em agosto de 2022. Acesso em agosto de 2023. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/landig/article/PIIS2589-7500(22)00095-4/fulltext
LINDEGAARD, T; BERG, M; ANDERSSON, G. Efficacy of Internet-Delivered Psychodynamic Therapy: Systematic Review and Meta-Analysis. Psychodin Psychiatry. 2020 Winter;48(4):437-454. doi: 10.1521/pdps.2020.48.4.437. Acesso em agosto de 2023. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33779225/
DRIESSEN E, VAN HL, PEEN J, DON FJ, TWISK JWR, CUIJIPERS P, DEKKER JJM. Cognitive-behavioral versus psychodynamic therapy for major depression: Secondary outcomes of a randomized clinical trial. J Consult Clin Psychol. 2017 Jul;85(7):653-663. doi: 10.1037/ccp0000207. PMID: 28627912. Acesso em agosto de 2023. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28627912/
GARRIDO, P. B; MOTTA, I. F. Psicanálise no tratamento multidisciplinar e cirúrgico da obesidade mórbida: estudo de caso. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, 24(4), 638-658, dez. 2021. Acesso em agosto de 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/B3PFB5hc3VyLPnHd6dsv84x/abstract/?lang=pt
O paralelo com a antropologia não é nada feliz porque o status social conferido aos campos é muito discrepante. Quando a antropologia, a partir de suas observações de campo, pretender intervir no âmbito da saúde e quando antropólogos forem chamados a emitir atestados sobre a saúde de indivíduos ou grupos, talvez o paralelo se justifique.
No mais, a defesa da legitimação do próprio discurso, evidentemente, também se justifica pela vontade de exercer poder.