A questão migratória: uma perspectiva dos (in)assimiláveis desde a periferia de São Paulo
Em meio às disputas políticas comuns a um ano eleitoral, o tema da imigração torna-se fetichizado – para o bem e para o mal -, sem que haja uma discussão séria sobre a questão
Os fluxos migratórios voltaram à pauta do dia. Desde o fim do mês de agosto, temos visto nos noticiários manifestações de xenofobia e racismo perpetradas por brasileiros contra imigrantes venezuelanos em Roraima. Expulsos da cidade de Pacaraima ao som do hino nacional, relatos dão conta de que esses sujeitos têm inclusive buscado abrigo em terras indígenas das etnias macuxi, wapichana e taurepang – muitos são eles próprios indígenas venezuelanos da etnia temon que, separados pela fronteira que não lhes concerne entre dois Estados nacionais, já tinham na imigração e na mobilidade transfronteiriça um importante traço estruturante de suas relações – como a literatura antropológica demonstrou ocorrer com diversos outros grupos, a exemplo, entre outros, de cabo-verdianos e haitianos. Com a situação econômica e política recrudescendo no país vizinho, esses movimentos migratórios se intensificaram – ainda que nossa própria situação econômica e política não esteja exatamente atraente.
A cidade de São Paulo tem recebido grande parte do fluxo de imigrantes venezuelanos provenientes das políticas de interiorização promovidas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e pelo governo federal, além da maioria daqueles provenientes de outras origens diversas, como sírios, portugueses, bolivianos, congoleses, senegaleses, nigerianos, haitianos e colombianos. Isso ocorre porque a cidade concentra há tempos a maior estrutura, governamental e não governamental, de assistência migratória do país. Em São Paulo localiza-se o mais antigo Centro de Referência para Refugiados do Brasil, gerenciado pela Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, e que completa 21 anos em 2018. A cidade também conta com o mais antigo serviço de saúde mental especializado em imigrantes e refugiados do Brasil, o Programa de Psiquiatria Social e Cultural – antigo Ambulatório Transcultural – do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, e que também completa 21 anos de existência em 2018.
Na gestão de Fernando Haddad (PT), hoje candidato à presidência, foram criados, no âmbito da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, a Coordenação de Políticas para Imigrantes e Promoção do Trabalho Decente (CPMigra), em 2013, e o Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI) e seu centro de acolhida, em 2014. Esses foram os primeiros equipamentos públicos municipais de produção de políticas públicas e assistência migratória do país, ainda que algumas entidades religiosas, como o Serviço Franciscano de Solidariedade (SEFRAS), também estejam envolvidas em sua administração, ao menos no caso do CRAI (e essa é uma tendência transversal, que marca a presença de diversas entidades religiosas na acolhida e assistência de imigrantes e refugiados). Esses equipamentos públicos surgiram no ápice daquilo que foi qualificado diversas vezes pela imprensa brasileira como a “onda haitiana”, marcada pela intensificação da migração desde aquele país para o Brasil – frequente e precipitadamente associada ao terremoto ocorrido no Haiti em 2010 que tem, sim, relação com esse fluxo migratório recente, mas definitivamente não esgota as explicações sobre as causas da diáspora haitiana.
Pode-se também apontar para a presença cada vez mais maciça de organizações da sociedade civil imbuídas na assistência a essa população crescente de imigrantes na cidade e no estado. Atuando muitas vezes nas lacunas dos feixes de relações de poder que compõem o Estado, esses grupos se prestam a trabalhos árduos e solitários, a despeito de parcerias esporádicas e transitórias, para oferecer serviços de assistência a imigrantes em regiões majoritariamente desassistidas da cidade.
Nasce, nesse contexto, o Coletivo Conviva Diferente. As atividades do Coletivo iniciaram-se em agosto de 2014, um período de aumento significativo no ingresso de imigrantes e refugiados no país (os dados oficiais registraram alta de 2.131% no número de pedidos de refúgio entre 2010 e 2014, a título de exemplo). Um dos integrantes do Conviva à época, que era assistente social no Centro Pop Barra Funda[1], observou um aumento exponencial no número de imigrantes e refugiados que chegavam ao equipamento para solicitar auxílio e informações sobre trabalho e moradia. Por meio desses atendimentos, verificou-se que vários deles forneciam um mesmo endereço: o de uma igreja nigeriana no centro da cidade, a CCMI – Christian Community of Ministry International. Foi quando, através do bispo responsável pela igreja, o Conviva foi convidado a prestar assistência social e ministrar aulas de português a imigrantes africanos, oriundos principalmente da Nigéria, e abrigados temporariamente naquela instituição[2].
A partir de então, ampliou-se o diálogo com os imigrantes e as diversas redes de relações que eles estabeleciam. Desde essa constatação preliminar, percebemos que aqueles que conseguiam sair dessa situação de moradia temporária iam morar em bairros periféricos, como Guaianases, Artur Alvim e Itaquera, na zona leste de São Paulo. Isso se dava em especial com alguns grupos específicos de imigrantes, como os africanos e os latino-americanos de diversas origens – que também são aqueles que mais costumeiramente vão morar nas ocupações, ou nas ruas. A transferência, então, da atuação do Conviva Diferente para Guaianases a partir de julho de 2016 nasce, em parte, por conta da percepção sobre esse processo de transição territorial.
O bairro de Guaianases, localizado no extremo leste da cidade, tem uma profunda ligação com movimentos migratórios, internos ou externos. Povoado inicialmente por indígenas da etnia dos Guaianás, recebeu um grande contingente de imigrantes europeus, inicialmente, e depois de brasileiros vindos de diversas partes do país, e em especial do Nordeste. Hoje, o bairro é um dos locais mais procurados pelos imigrantes e refugiados recém-chegados ao Brasil. Quem anda pelas ruas de Guaianases logo percebe a presença deles: nas feiras, nas igrejas, na estação de trem e nas praças podemos encontrar diversos haitianos, nigerianos, bolivianos, angolanos, sul-africanos, cabo-verdianos e congoleses. Esses imigrantes e refugiados encontram no bairro uma maior facilidade de conseguir moradia devido a menores preços dos aluguéis e menor burocracia para alugar imóveis – muitas vezes é possível alugar uma casa dispensando a apresentação de um fiador, por exemplo, o que, para recém-chegados ou para imigrantes que não construíram uma rede de relacionamentos no país (em especial, relacionamentos com pessoas com imóvel próprio quitado, condição para ser fiador da dívida de alguém perante as imobiliárias) é fundamental.
Em oposição a isso, o bairro apresenta problemas estruturais típicos das periferias das grandes cidades brasileiras, como a violência endêmica associada a uma grande truculência policial, dificuldades de mobilidade pela escassez de opções de transporte – além de seu custo muitas vezes proibitivo -, falta de saneamento básico, ausência de aparatos estatais de promoção e implementação de políticas públicas, entre outros. Os distritos com as maiores taxas de homicídios localizam-se nas regiões extremas do município. Guaianases faz parte das regiões endêmicas da violência em São Paulo – seja a violência policial, seja a oriunda da criminalidade. E é nesse território marcado pela violência e pelas desigualdades de distribuição de políticas públicas que milhares de pessoas se estabelecem em busca de melhores condições de vida ou por fugirem de guerras civis, conflitos religiosos, catástrofes ambientais, opressões étnicas e perseguições por orientação sexual ou posição política.
É bom que se pontue, a exemplo do que foi superficialmente feito acima, que não são todos os que compõem esse novo fluxo migratório que vão habitar às margens da cidade, senão aqueles que, muitas vezes, se encaixam em critérios específicos formulados aqui, na sociedade de chegada. A maior parte dos imigrantes que chegam a Guaianases são africanos e latino americanos. Muitos desses são escolarizados, e alguns com ensino superior completo. Há, portanto, uma hierarquia de alteridades que classifica esses imigrantes com critérios articulados desde o Brasil, levando em especial os negros e latinos a serem segregados nas periferias e impondo fronteiras geográficas – e existenciais – que definem o acesso dessas pessoas à cidade, aos serviços públicos e à cidadania. A maioria dos serviços de assistência migratória localizam-se no centro da cidade – que, a bem da verdade, também abriga um grande número desses imigrantes -, e a dificuldade de acesso a cursos de português, auxílio para regularização, e aquisição de documentação e até acesso a serviços de saúde é bastante marcada entre essas pessoas.
É comum que se lembre frequentemente da ameaça representada pelos venezuelanos na introdução de um agente patogênico externo, associando quase automaticamente o retorno de doenças como a poliomielite e o sarampo a esse fluxo migratório – como se, nesses discursos, o agente patogênico não fosse menos o vírus, e mais o imigrante em si. Assim, erguem-se hospitais de campanha na fronteira Brasil – Venezuela, mas não se pensa em arquitetar uma política de saúde que respeite o princípio da equidade do SUS – acesso diferenciado àqueles com necessidades específicas -, fornecendo, no mínimo, capacitação para as equipes de saúde, ou um serviço de tradução para acompanhamento da consulta, em especial para os recém chegados – e sabemos que isso talvez já seja sonhar demais, em especial em um país onde, por vezes, nem a Polícia Federal, responsável pela primeira recepção desses imigrantes, conta com funcionários capazes de se comunicar com aqueles que atendem.
Hoje, o Conviva Diferente, cuja equipe é constituída totalmente por voluntários, busca diminuir esse abismo que separa os imigrantes de Guaianases do acesso a serviços básicos e a novas oportunidades de vida. O Coletivo foi o primeiro grupo a oferecer aulas de português na região, e continua a ser um dos únicos. São atendidas, em média, mais de 300 pessoas por ano, entre homens e mulheres de todas as idades, computando os alunos fixos e a demanda flutuante. A atividade principal do Coletivo é ministrar aulas de português, mas também atua em outras vertentes: auxiliando em demandas de empregabilidade, fazendo mediação entre os alunos e serviços públicos e organizando mutirões para que os serviços de assistência a imigrantes cheguem até Guaianases. De pires na mão, os integrantes do Conviva trabalharam por muito tempo tirando recursos dos próprios bolsos – e isso, por vezes, se repete até os dias de hoje. Recentemente, foi firmada uma parceria com o Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante – CDHIC -, garantindo a possibilidade da entrega de um certificado de conclusão de curso aos alunos, o que os auxilia na busca por um emprego. O Conviva também conta com a ajuda do CEU Jambeiro, que tem sido um grande parceiro e que cedeu o espaço para que as aulas e outras atividades aconteçam.
Ainda assim, e como o próprio CDHIC encontra obstáculos na captação de recursos, o Coletivo continua enfrentando grandes dificuldades – foi realizado recentemente, por exemplo, um passeio ao Museu Catavento, e, apesar de o Museu ter gentilmente cedido cortesias para as entradas todos os alunos, foi preciso garantir com recursos próprios as passagens e a alimentação para eles. Tudo bancado por vendagem de camisetas e doações esporádicas daqueles que se compadecem com a causa. O Conviva Diferente também já recebeu oferta para enviar alunos a um curso direcionado à preparação para o Celpe-Bras, exame de certificação de proficiência na língua portuguesa exigido para o ingresso de imigrantes e refugiados em universidades – e para uma eventual aquisição de nacionalidade brasileira por eles -, mas não possuía caixa à época para bancar o transporte dos alunos interessados até a Universidade de São Paulo, onde o curso era realizado.
E o horizonte se apresenta nefasto. Em meio às disputas políticas comuns a um ano eleitoral, o tema da imigração torna-se fetichizado – para o bem e para o mal -, sem que haja uma discussão séria sobre a questão. Dos candidatos à presidência da República em 2018, apenas Guilherme Boulos (PSOL), Fernando Haddad (PT), Vera Lúcia (PSTU) e Jair Bolsonaro (PSL) mencionam o tema – o último, entretanto, só para dizer que os médicos cubanos do Programa Mais Médicos “serão libertados”, e suas famílias “poderão imigrar para o Brasil” (sic). Ainda assim, com exceção de Guilherme Boulos, que cita as violências sofridas por imigrantes e refugiados e propõe o cumprimento da Nova Lei da Migração (13.445/2017) – e, convenhamos, cumprir a lei, amputada por Michel Temer em seu sancionamento, é obrigação, não proposta de governo -, e Fernando Haddad, que propõe a criação de uma Política Nacional de Migrações, sem, entretanto, especificar quais pontos ela contemplaria, todos os outros candidatos mencionam o tema pouquíssimas vezes, e de maneira bastante genérica.
Não parece o país que teve demonstrações inequívocas de xenofobia e racismo direcionadas a imigrantes de diversas origens. Não parece o país que, tendo em mãos a possibilidade de planejar criteriosamente uma política imigratória satisfatória, continua realizando um programa de interiorização de venezuelanos sem qualquer planejamento, jogando-os em abrigos distantes e desprovidos de órgãos de assistência, além de desalojar centenas de moradores de rua dos Centros Temporários de Acolhimento – causando, com isso, mais conflitos entre imigrantes e brasileiros. Não parece o país onde uma mãe congolesa se matou em 2016, pulando nos trilhos do metrô junto com seus filhos, ou onde um imigrante venezuelano morreu vítima de pneumonia dentro de um abrigo municipal, ou onde imigrantes são mortos a pedradas e pauladas.
O Coletivo Conviva Diferente está e continuará na linha de frente da assistência a imigrantes e refugiados às margens. Sem o apoio do Estado, sem o comprometimento político de gestores dos diversos níveis da administração pública e com ataques que frequentemente escalam para a violência, o Conviva e seus alunos resistem e resistirão. Aos imigrantes que assistimos, e a todos os outros, pedimos: aguentem firme. Que a tradição de invisibilizar existências que esse país insiste em honrar seja abandonada a tempo.
* Alexandre Branco Pereira é Mestrando em Antropologia do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSCar (PPGAS/UFSCar), atua como professor de português no Coletivo Conviva Diferente. Também atua como antropólogo no Programa de Psiquiatria Social e Cultural do Hospital das Clínicas (FMUSP) e é pesquisador no Laboratório de Estudos Migratórios da UFSCar (LEM/UFSCar). Erika Andrea Butikofer é Cientista Social e especialista em Direitos Humanos, Diversidade e Violência pela UFABC, é fundadora e professora de português no Coletivo Conviva Diferente. Trabalha com migração há 4 anos, desenvolvendo pesquisa atualmente em Guaianases.