A questão palestina e a guerra Israel-Hamas um ano após o 7 de Outubro
Eliminação do Hamas apenas levaria à criação de novos movimentos de resistência
Em 7 de outubro de 2023, a revista estadunidense Foreign Affairs publicou uma entrevista com Martin Indyk, ex-embaixador dos Estados Unidos em Israel e assessor especial de Barack Obama para negociações entre Israel e Palestina, para tentar entender por que o Hamas havia atacado Israel.[1] Segundo Indyk, a região estava vivendo um processo de normalização nas relações com Israel, mediado pelos Estados Unidos, especialmente com a Arábia Saudita. Além disso, o ataque aconteceu cinquenta anos após a Guerra do Yom Kippur (1973), quando Egito e Síria lançaram um ataque surpresa partindo do Sinai e das Colinas de Golan. Israel chegou perto de ser derrotado, mas a maré começou a virar na segunda semana de conflito, com um contra-ataque alimentado pelos Estados Unidos. Embora Israel tenha vencido a guerra, as vitórias nos primeiros dias da invasão são comemoradas no mundo árabe até hoje.
É significativo, portanto, que o Hamas tenha escolhido essa data para o seu ataque surpresa, que também coincidiu com os trinta anos dos Acordos de Oslo (1993), quando a Organização para Libertação da Palestina (OLP) reconheceu o Estado de Israel e abriu mão da luta armada para governar partes do território palestino – a Faixa de Gaza e as Áreas A e B da Cisjordânia, com a criação da Autoridade Palestina (AP) em 1994. Nesse sentido, a operação também simbolizou a oposição do Hamas a negociações internacionais, à divisão do território palestino e ao reconhecimento de Israel, deslegitimando a AP e a OLP enquanto representantes do povo palestino. Para o ex-embaixador, foi a arrogância de Israel, tanto em 1973 – com a crença na superioridade militar – quanto em 2023 – ao acreditarem que a Faixa de Gaza estava “sob controle” –, que levou a falhas na inteligência e ao sucesso nos ataques surpresa.
Embora no calor dos acontecimentos, a análise de Indyk permanece pertinente: os objetivos estratégicos do Hamas incluíam sabotar o processo de normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita; provocar uma contra ofensiva e a escalada do conflito, com levantes na Cisjordânia, ataques do Hezbollah e revolta em Jerusalém; e chamar atenção do mundo árabe para a questão palestina, sobretudo quando vissem Israel usando armas norte-americanas para matar civis. Além disso, caso Israel vencesse essa guerra, como faria para se retirar? Para quem entregaria o poder? Há de se esperar o desenrolar das negociações para um eventual cessar fogo permanente, libertação dos reféns, reconstrução e reorganização política de Gaza; porém, o governo de Netanyahu enxerga o cessar fogo como permissivo para o Hamas se reorganizar e continuar atacando. Netanyahu acredita que, eliminando o Hamas e proporcionando melhores condições econômicas para os palestinos, trará maior estabilidade, mas isso não tem se confirmado. A eliminação do Hamas apenas levaria à criação de novos movimentos de resistência, uma vez que não resolve a Questão Palestina: desocupação do território estabelecido em 1947, reconhecimento do Estado Palestino, acolhimento dos refugiados e redefinição do status de Jerusalém.
Vale ressaltar que a Faixa de Gaza é um quadrilátero de 365 km², cercada por um muro de 64 quilômetros de distância e 6 metros de altura que custou US$ 1 bilhão para ser construído. Ele foi reformado em 2021 para evitar infiltrações, com a instalação de câmeras, radares, sensores e barreiras subterrâneas para impedir a construção de túneis,[2] entre outras tecnologias de defesa, como torres de observação equipadas com metralhadoras automáticas controladas remotamente e posicionadas a cada 15 quilômetros em algumas áreas ao longo da fronteira. Para superar esse sofisticado sistema de apartheid colonial, o Hamas utilizou drones comerciais quadcopter para lançar explosivos nas torres de observação, destruir os sensores, as armas e interromper a comunicação com as bases militares, além de explosivos e retroescavadeiras para abrir cerca de 30 brechas nos muros e nas cercas de arame farpado, permitindo que aproximadamente 1.200 combatentes entrassem em Israel por terra, mar e ar (voando em paramotores), sob uma “chuva” de foguetes e mísseis, com transmissão ao vivo em plataformas de streaming.
Em uma análise para o Center for Strategic & International Studies,[3] Daniel Byman et al. consideram que a operação foi inovadora em termos de escala e sofisticação, se assemelhando a ações de forças especiais das grandes potências, com emprego de pequenas unidades táticas bem treinadas, equipadas e organizadas para alcançar resultados estratégicos ótimos: 1) tomada de um grande número de reféns, civis e militares; 2) criação de uma atmosfera de terror que levou a população a pressionar o governo, que, por sua vez, mostrou sua verdadeira natureza; 3) chamar atenção da opinião pública e da comunidade internacional para a questão palestina; 4) mobilização dos palestinos em prol do Hamas e da resistência contra o projeto sionista. Foi o maior ataque terrorista da história de Israel. O segundo é o Coastal Road Massacre, de 1978, quando militantes do Fatah sequestraram um ônibus e mataram 38 israelenses com o intuito de interromper negociações entre Israel e Egito.
A tomada de reféns também não encontra precedente, visto que incluiu cidadãos de várias nacionalidades, distribuídos em vários pontos da Faixa de Gaza e esforços de negociação em meio a enormes operações militares. Como ressaltaram Byman et al., apesar de uma variedade de casos em outros países, cada crise de reféns é única e requer ações sob medida por parte das autoridades em um trade off complicado: resgatar os reféns com vida sem ceder às demandas dos sequestradores. No entanto, a estratégia israelense tem sido a de negociar a soltura dos reféns ao mesmo tempo em que intensifica a ofensiva no terreno, trocando reféns por cessar fogo ou por prisioneiros palestinos. Vale lembrar que em 2011 o Hamas trocou um prisioneiro israelense, o soldado Gilad Shalit, por 1.027 prisioneiros palestinos, o que mostra, por um lado, a vantagem estratégica que tanto o Hamas como Israel adquirem ao manter reféns, prisioneiros de guerra e/ou prisioneiros políticos, e por outro, a estrutura hierárquica que é estabelecida entre vidas palestinas e israelenses.[4]
Outro ponto importante é que, o último ataque do Hamas contra Israel havia sido em maio de 2021, quando lançou mais de 4 mil foguetes e morteiros após a AP adiar eleições gerais – supostamente para evitar que o Hamas vencesse, considerando que estava com alta popularidade – deixando dez civis mortos e mais de trezentos feridos.[5] Israel respondeu com ataques aéreos e de artilharia contra alvos do Hamas, resultando em 260 mortes e 950 feridos, fazendo com que as tensões durassem onze dias e terminando com um cessar fogo negociado por Estados Unidos e Egito.[6] Dez anos antes, em 2002, o Hamas havia realizado outro massacre, matando trinta civis no Park Hotel, em Netanya, no feriado de Passover, que levou a uma contra ofensiva na Cisjordânia – Operação Escudo de Defesa – a qual deixou quinhentos palestinos mortos e um rastro de destruição.[7] Ou seja, ataques menores já haviam gerado retaliações desproporcionais, com invasões e operações militares de grandes proporções. Isso leva a crer que os líderes do Hamas sabiam que a operação de outubro teria consequências desproporcionais parecidas, e estas foram incluídas no cálculo político-estratégico.
Para ranquear atentados terroristas, a análise de Byman et al. utiliza a base de dados START, da Universidade de Maryland, complementada com dados de 2021 a 2023 a partir da Armed Conflict Location & Event Data (ACLED), uma organização estadunidense independente sem fins lucrativos. Ela classifica os atentados conforme as seguintes categorias: 1) ataques contra alvos militares; 2) ataques que são parte de uma campanha militar mais ampla para conquistar ou manter território 3) ataques que são parte de uma campanha de limpeza étnica, massacre e/ou genocídio; 4) ataques que são parte de táticas insurgentes ou de guerrilha em um conflito corrente. Embora os autores não tenham classificado o ataque do Hamas, é possível afirmar que ele está representado pelas categorias 1, 2 e 4, ao passo que as ações das Forças de Defesa de Israel são representadas por 1, 2 e 3. Como ressaltou Héctor Saint-Pierre, o “terrorista” é sempre o outro e o termo vem sendo empregado para desumanizar ou desacreditar adversários políticos e para justificar todos e quaisquer meios na sua eliminação, inclusive crimes de guerra e violações do direito humanitário.[8] Na visão israelense e de seus aliados no Ocidente, o Hamas é uma organização terrorista. Contudo, na visão do Hamas, Israel é o terrorista. É sobre essa diferença irreconciliável que a questão palestina está colocada.
Segundo o comandante da Brigada al-Qassam, Mohammed Deif, a “Operação tempestade al-aqsa”, foi uma resposta à “ocupação colonial sionista” e seus vários crimes contra o povo palestino: deslocamentos forçados, destruição de cidades e vilas, massacres, incluindo mulheres, crianças e idosos, demolição de casas com moradores dentro, entre outras violações do Direito Internacional e da Convenção de Direitos Humanos.[9] “Nós advertimos previamente à ocupação israelense contra a continuidade de seus crimes e apelamos aos líderes mundiais” para que pressionassem Israel a respeitar as leis e convenções, mas “nossas demandas” não foram atendidas, pelo contrário, Israel intensificou sua ocupação, inclusive em Jerusalém Oriental e na Mesquita al-Aqsa – a terceira mais sagrada para os muçulmanos – além de fazer vista grossa para os colonos invasores. Além da profanação da mesquita, os israelenses insultaram o profeta Maomé, rasgaram exemplares do Corão, levaram cachorros ao local sagrado, perseguiram e expulsaram centenas de Palestinos da Cidade Sagrada somente no ano passado e tratam os prisioneiros com humilhações, tortura, penas desproporcionais, negligência médica, entre outras práticas ilegais numa estratégia deliberada de “morte lenta”, afirmou Deif.[10]
Para o leitor mais atento, as palavras do comandante podem soar como propaganda política; tentativa de justificar atos de violência terrorista injustificáveis, ou como manipulação, ao apresentar dados que não podem ser confirmados. No entanto, chama atenção que as mesmas denúncias foram feitas na Resolução 2535B da Assembleia Geral da ONU, em 1969: “negação de direitos” dos palestinos; “atos de punição coletiva, detenção arbitrária, toque de recolher, destruição de casas e propriedade, deportação e outros atos repressivos contra refugiados e outros habitantes dos territórios ocupados”.[11] Como argumentou Said em termos quantitativos, em números brutos de corpos e propriedades destruídas, não há absolutamente nada a comparar entre o que o sionismo faz com os palestinos e o que, em retaliação, os palestinos fazem com os sionistas. Embora os meios de comunicação e aliados de Israel insistam em fazer uma associação quase automática entre palestinos, refugiados, extremistas, e/ou “terroristas”, Said não entra na discussão sobre terrorismo, argumentando que poderia soar como justificativa ou negação de atos de terrorismo, quando a realidade é muito mais complexa.
Apesar de ser classificado como uma “organização terrorista” pelos Estados Unidos, por Israel e pela União Europeia, o que permite uma série de sanções, como congelamento de ativos e bloqueios de bens, obviamente que o Hamas não se autointitula uma “organização terrorista”.[12] No entanto, é comum vermos o movimento ser apresentado simplesmente como “terrorista” nos meios de comunicação, sem explicar como é sua estrutura organizacional e sua atuação política na gestão do território e da população de cerca de 2 milhões de palestinos. Também não vemos nenhuma distinção entre “organizações terroristas” e “táticas terroristas”, muito menos suas justificativas para o uso da violência, independente de juízos de valor, ainda que, seguindo a perspectiva crítica de Edward Said, entendamos que não há postura neutra nesse debate.
Para Said, o ponto é tentar mudar os termos e as perspectivas sobre os quais problemas aparentemente sem solução são entendidos. O uso da violência terrorista, a desproporcionalidade da guerra, assim como a percepção desequilibrada do terrorismo são alguns desses problemas aparentemente sem solução, por estarem envolvidos por termos e perspectivas enviesadas.
Um dos pontos centrais nessa discussão, do ponto de vista dos Estudos Estratégicos, é a superioridade militar e tecnológica de Israel, além da parceria com os Estados Unidos, o que lhe permite exercer e projetar poder na região, controlando o acesso a territórios sagrados; a exploração de recursos naturais; a migração dos palestinos; o fornecimento de ajuda humanitária; impor sanções econômicas, entre outras ações que minam a capacidade de organização política, econômica e militar dos palestinos, em geral, e do Hamas, em particular, e que seria a condição de possibilidade para a criação do seu Estado e de suas Forças Armadas. Justamente por não ser possível enfrentar um inimigo tão superior em uma guerra regular é que movimentos de resistência e libertação nacional como o Hamas lançam mão de táticas não convencionais, como sequestros, explosões suicidas, lançamento de mísseis e ataques contra civis.
O que fica evidente em tantos relatos de provocações, ataques e agressões é que Israel recebe apoio e legitimidade para contra-atacar e constrói um discurso de superioridade moral ao ser vítima de ataques terroristas, mas logo perde essa sustentação quando suas reações se mostram desproporcionais. Isso porque visam a eliminação dos movimentos de resistência e a remoção do apoio popular – com ataques aéreos em cidades densamente habitadas, o que poderíamos chamar de terrorismo de Estado – ou “uma campanha de limpeza étnica, massacre e/ou genocídio”.[13] Assim, a questão que se coloca não é sobre a legitimidade do direito de defesa de Israel, mas sobre a legitimidade de um governo que já matou mais de 40 mil e feriu cerca de 100 mil cidadãos palestinos – a grande maioria civis – diante da comunidade internacional, violando sistematicamente o direito humanitário internacional, ao passo que a Palestina não é reconhecida enquanto Estado soberano.
Gabriel Gama de Oliveira Brasilino é mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected].
[1] VOGT, Justin. Why Hamas Attacked – and Why Israel Was Taken by Surprise. A Conversation With Martin Indyk. Foreign Affairs, October 7, 2023.
[2] As Forças de Defesa de Israel expuseram essa rede de túneis próxima à fronteira de Erez, com cerca de 4 quilômetros, chegando a 50 metros de profundidade, reforçados com concreto e equipados com eletricidade, ventilação, esgoto, rede de comunicação e transporte. Alguns túneis contam com portas fortificadas para bloquear o acesso. Não há evidências de túneis cruzando a fronteira, mas estão a apenas 400 metros e são construídos sob hospitais, escolas, creches e outros pontos sensíveis. Em 2006, tanto Israel como o Egito fecharam a fronteira com a Faixa de Gaza e a construção dos túneis foi uma alternativa que o Hamas encontrou para manter o comércio com o vizinho africano (desde alimentos até armas, passando por remédios, gás de cozinha, material de construção e dinheiro), de onde vem boa parte das suas receitas. A fronteira com Rafah só foi reaberta em 2018, mas passou a ser controlada por Israel em 2024.
[3] Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, sediado em Washington, EUA. BYMAN, Daniel et al. Hamas’ October 7 Attack: Visualizing the Data. Center for Strategic & International Studies. December 19, 2023.
[4] WILKINSON, Peter. Why Israelis believe one soldier is Worth 1,000 Palestinian prisoners. CNN, October 18, 2011.
[5] ROBINSON, Kali. What is Hamas? Council on Foreign Relations, April 18, 2024.
[6] AL-MUGHRABI, Nidal & Farrell, Stephen. Israel pounds Gaza to curb Palestinian militants but rockets still fly. REUTERS, May 13, 2021.
[7] BYMAN, Daniel et al., 2023.
[8] SAINT-PIERRE, Héctor Luis. Terrorismo. In: SAINT-PIERRE, Héctor Luis & VITELLI, Marina (Orgs.). Dicionário de Segurança e Defesa. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
[9] MIDDLE EAST MONITOR. Statement by Hamas’s Al-Qassam Brigades top military commander. October 7, 2023.
[10] Tradução do autor.
[11] SAID, Edward. The Question of Palestine. New York: Vintage Books, 1979. Tradução do autor.
[12] Além dos países mencionados, apenas Austrália, Canadá, Japão, Paraguai e Reino Unido designaram o Hamas como organização terrorista. Este último designava apenas a ala militar do Hamas como terrorista, desde 2001, mas passou a designar a organização como um todo em 2021.
[13] BYMAN, Daniel et al., 2023.