A raiz radical que fortalece o bolsonarismo
Confira reportagem da edição uruguaia do Le Monde Diplomatique sobre as eleições brasileiras
Os dois candidatos polarizados que se enfrentaram no capítulo presidencial das eleições brasileiras de 2 de outubro, Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro, deram origem a correntes de ideias que transcendem um programa de governo e transbordam suas fronteiras. Paradoxalmente, a mais nova entre essas correntes é a que mais se conecta com as fontes do pensamento político tradicional do país.
A intriga também está polarizada. Por um lado, permanece a incerteza sobre se o atual presidente de extrema-direita aceitará os resultados do segundo turno. Em suas declarações na noite do primeiro turno, ele foi menos incendiário, mas insistiu que um sistema eletrônico como o brasileiro não é 100% confiável. Por outro lado, fica a dúvida se o que voltará com a provável vitória de Lula será o lulismo ou uma versão ainda mais diluída deste.
Isso porque, mesmo tendo recebido dois pontos percentuais a menos que o teto otimista da margem de erro nas pesquisas eleitorais, um terceiro mandato para Lula, candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), de esquerda, é o cenário mais provável para o 30 de outubro. Por que, então, a carranca ao comparecer perante a imprensa na noite das eleições? O problema para Lula não foram os dois pontos que lhe faltaram para vencer no primeiro turno, no qual obteve 48,43% dos votos, mas o fortalecimento conquistado por Bolsonaro, que chegou a 43,2%. O atual presidente não só superou a média prevista nas pesquisas, como sua candidatura foi a locomotiva para o seu partido eleger 99 deputados e se tornar a maior bancada da Câmara dos Deputados.
Seja pela confusão que se erguia no horizonte, seja por tática eleitoral, o último trecho da campanha de Lula ganhou um tom de “salvação democrática” que levou seus correligionários a falar em uma “eleição de transição”, quase como se o país estivesse saindo de uma ditadura. Precisar do segundo turno significa fazer ainda mais concessões do que ele já fez, uma ação essencial para manter o apoio dos candidatos que ficaram em terceiro e quarto lugar em 2 de outubro: Simone Tebet, do Movimento Democrático Brasileiro (4,2%), e Ciro Gomes, do Partido Democrático Trabalhista (3%).

Transformar com limites
O lulismo é um conceito cunhado pelo cientista político André Singer, porta-voz do primeiro governo Lula (2003-2006). Em termos econômicos, ele não busca a redistribuição da riqueza, como faz a esquerda clássica, mas sim um ajuste progressivo que possa amenizar as injustiças (especialmente a pobreza extrema) sem confrontar diretamente o capital. Suas expressões programáticas mais visíveis foram o programa “Fome Zero”, que tirou mais de 20 milhões de brasileiros da miséria e rendeu a Lula a maior distinção das Nações Unidas no combate à fome. Em seus governos, também houve aumento de 53,6% no poder de compra do salário mínimo.[1] Embora sua real ênfase não tenha sido a redistribuição, houve um crescimento de mais de três pontos na participação da renda dos trabalhadores no Produto Interno Bruto do país.
No entanto, em termos culturais, o lulismo é muito mais. Políticas afirmativas, como a lei de cotas raciais de 2012, que reserva até metade das vagas nas universidades federais para negros, índios e alunos de escolas públicas, e um clima menos sufocante para mulheres e pessoas LGBT+ contribuíram para forjar uma forte associação de Lula com a agenda de direitos. Graças às votações que a esquerda recebeu no capítulo legislativo das eleições de 2 de outubro, o Brasil terá as primeiras mulheres trans a conquistar uma cadeira em sua história, e a bancada indígena conseguiu aumentar seu modesto número.
É nesse ponto que Lula e Bolsonaro divergem mais fortemente. Lembre-se que durante a eleição brasileira anterior, movimentos sociais, especialmente feministas, levantaram o slogan “ele não” contra Bolsonaro. De fato, o bolsonarismo tem uma de suas principais marcas na oposição ao que a direita chama de “ideologia de gênero”. E nas primeiras declarações à imprensa na noite do primeiro turno, Bolsonaro criticou a proposta de Lula de criar mais áreas protegidas na Amazônia, já que, na sua opinião, isso afetaria o agronegócio e a segurança alimentar.
Bases do bolsonarismo
À medida que a campanha brasileira entra em sua fase decisiva, o título deste artigo traz uma dúvida que não é apenas gramatical. É essa raiz de direita que fortalece o bolsonarismo, ou é a emergência do bolsonarismo que permite que esse radicalismo conservador se estabeleça com mais força?
Para além das páginas amareladas dos livros de história que mostram desde a abolição muito tardia da escravidão (1888) até a existência de grupos pró-fascistas na década de 1930, o golpe de Estado de 1964 é a primeira coisa que vem à mente quando se pensa em um exemplo da capilaridade social da direita brasileira. Não apenas por sua precocidade (a primeira das ditaduras latino-americanas que caracterizariam a década seguinte) ou por sua duração (quase o dobro de suas congêneres do Cone Sul), mas também pelas dificuldades em forjar, na sociedade, um consenso semelhante ao alcançado na Argentina para julgar os crimes contra a humanidade cometidos por agentes de Estado no período. Soma-se a isso o surgimento de think tanks ultraliberais,[2] o avanço de setores fundamentalistas de direita dentro das igrejas evangélicas tradicionais[3] e a retórica da luta contra o “marxismo cultural”. Esse foi o terreno fértil para o ódio visceral exposto durante o impeachment que em agosto de 2016 destituiu a então presidenta Dilma Rousseff, que havia sido ungida sucessora por Lula seis anos antes.
O golpe constitucional contra Dilma expõe os limites do lulismo ao mesmo tempo em que é a cena em que surge o primeiro lampejo do bolsonarismo. A destituição da presidenta foi apoiada por setores empresariais e de centro-direita que haviam participado de sua candidatura, sendo a mais notável dessas figuras Michel Temer, seu vice-presidente. No entanto, essa mesma virada dificultava que seus promotores fossem vistos como a encarnação do novo que se abriria após o fim da presidência de Dilma. Se no hinduísmo Shiva é uma divindade que destrói o universo e depois o reconstrói regenerado, Temer, que era uma parte muito óbvia daquele mundo de pactos de que o lulismo precisava para sobreviver, não poderia ser sua superação.
O lulismo foi construído em dois mandatos de governo (2003-2010) e nasceu de uma derrota: o reconhecimento da “questão setentrional” que permite a Lula analisar, após as eleições de 1989, que perdeu por não se conectar com os eleitores mais pobres do Norte e Nordeste do país.[4] Em contraposição, o bolsonarismo aparece em uma única campanha vitoriosa. Obra do acaso? Ou o avanço da extrema direita é uma construção muito mais rápida pois se enraíza em um solo já fertilizado pela tradição política e social brasileira, como sugere inclusive o lema da bandeira nacional: ordem e progresso?
Gênese
A referência é conhecida. Durante a transmissão ao vivo do impeachment de Dilma Rousseff, as câmeras de televisão mostram um deputado obscuro que, no momento de justificar seu voto a favor da derrubada, o dedica a um policial que teria torturado Dilma durante a ditadura militar. Entrevistado após essa entrada em cena, Bolsonaro disse que se apresentaria como candidato à presidência da República, apesar de não ultrapassar 8% nas pesquisas. Já então estava testando seus primeiros ataques contra a credibilidade das sondagens de opinião pública: “Se me deram 8, devo ter 24”. Descontando o apoio dos nostálgicos da ditadura e aguardando com razoável expectativa o dos evangélicos fundamentalistas, Bolsonaro apelava naquelas aparições inaugurais de sua candidatura aos latifundiários e aos colecionadores de armas paramilitares. Quem protesta por terra deve ser recebido à bala, disse na mesma entrevista.[5]
A partir desse ponto, ele construiu uma imagem de extremista, violenta e misógina, que rapidamente aglutinou a direita tradicional e os setores cidadãos ao seu redor que, por questões de classe ou conservadorismo, sentiam que a ampliação de direitos promovida pelos governos petistas havia sido feita em detrimento de algo que lhes pertencia. A isso se somou o descontentamento derivado do agravamento da situação econômica, combustível para os protestos de rua de 2013. Com esse capital recentemente acumulado, Bolsonaro chegou à eleição de 2018, que o confrontaria com Lula, o favorito nas pesquisas. O caminho estaria definitivamente pavimentado para ele em razão da prisão do ex-presidente por decisão do então juiz Sergio Moro, a seguir escolhido ministro da Justiça por Bolsonaro e hoje senador de direita recém-eleito.
Esse estilo, que poderia ter sido uma pose de campanha, consolidou-se quando Bolsonaro se tornou chefe de governo. É nessa consolidação que nasce o bolsonarismo. Essa série descontrolada de diatribes contra o feminismo e o marxismo começa a ser articulada, embora nunca perca seu caráter de extrema simplificação. E toma o significado de uma estratégia para travar uma guerra cultural.[6]
A pandemia de coronavírus, que se espalha pela América do Sul no primeiro trimestre de 2020, coloca Bolsonaro em uma postura negacionista. Longe de diminuir sua popularidade, essa posição permite que ele se conecte com uma linha de pensamento que sempre desconfiou das abordagens científicas: se o criacionismo ensinado nas escolas fundamentalistas pentecostais está acima do Big Bang e da teoria da evolução de Charles Darwin, o presidente pode muito bem gabar-se de ser uma das poucas lideranças que não foram vacinadas contra a “gripezinha”. Sua ameaça de deixar a Organização Mundial da Saúde, os obstáculos colocados à produção nacional de vacinas, a proposta ultrapassada de se tratar tomando cloroquina (um medicamento contra a malária), estavam longe de ser ações idiossincráticas inócuas. Tanto que a prestigiosa revista científica The Lancet considerou que Bolsonaro era “talvez a maior ameaça à resposta à Covid-19” em seu país.[7] A opinião tinha fundamento: em 13 de junho de 2022, “a taxa acumulada de mortalidade por Covid-19 no Brasil era de 3.122 óbitos por milhão de habitantes, enquanto a média mundial era de 801 por milhão”.[8]
Os golpes de sua gestão da pandemia foram ouvidos pela boca do próprio Bolsonaro no dia 2 de outubro quando enfrentou a imprensa – o uso do verbo é metafórico, mas reflete o desconforto e aborrecimento que demonstrou diante das perguntas – e incluiu entre suas conquistas, com relutância, as vacinas que foi obrigado a disponibilizar para aqueles que queriam ser vacinados.
Um Trump do Sul
A presidência de Bolsonaro pode ser lida como semelhante aos desvios típicos do populismo neoliberal. Por exemplo, substituindo a participação cidadã genuína por selfies com cidadãos isolados em situações cotidianas, geralmente em barracas de comida de rua ou em ambientes e situações esportivas (no caso, passeios de moto em grupo). Porém, ela é muito mais do que isso. O conteúdo com que ele dota esse conjunto de elementos o torna cada vez mais parecido com o trumpismo. Assim, o compromisso da política externa com o multilateralismo que o PT havia construído, em especial com a criação do grupo de países conhecido como Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), foi substituído por um alinhamento com os Estados Unidos e pela desconfiança em relação à China – pelo menos no campo discursivo, já que 32% das exportações dos empresários do agronegócio (uma das bases do bolsonarismo) têm como destino o país asiático.[9]
A derrota de Trump em outubro de 2020 inicialmente privou Bolsonaro de um aliado, mas o deixou livre para apertar a mão de outro correligionário do lado oposto do mundo: o presidente russo Vladimir Putin, cuja agenda anti-direitos o converteu em um parente ideológico. Isso colocou o Brasil em uma posição desfavorável em relação à unanimidade ocidental pós-invasão russa na Ucrânia. Brasília não somente não aderiu às sanções comerciais contra Moscou, como em setembro os chanceleres de ambos os países “reiteraram sua preocupação com o impacto das sanções unilaterais na segurança alimentar e energética mundial”.[10] E em sua incômoda coletiva de imprensa na noite da eleição, Bolsonaro mencionou a chegada de um navio russo com combustível como uma das soluções imediatas para a alta de preços.
A contratendência
Se o imaginário que o lulismo propõe é de construção transformadora – para além dos limites colocados no presente –, o tom do bolsonarismo é messiânico e de salvação. Assim, enquanto Lula, na noite das eleições de 2 de outubro, fala em recuperar o lugar do Brasil no concerto internacional, já tendo mencionado a intenção de recolocar em funcionamento a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), Bolsonaro retoma naquela mesma noite seus ataques contra os governos progressistas da região. Sua principal missão no segundo turno, diz, será evitar que os brasileiros sigam o caminho da Argentina de Alberto Fernández – ele nomeia especificamente o presidente vizinho –, da Venezuela ou da Colômbia. Ele se esquece num primeiro momento do Chile, mas o assessor que o acompanha o impede de deixá-lo de fora e, antes de mudar de assunto, menciona a Nicarágua.
Em uma chave regional, ambos estão cientes do poder gravitacional produzido pelo Brasil. E usam-no para obter simpatias por meio de declarações sobre política externa que resultem em votos dentro das fronteiras. Lula lembra que, se vencer, a América do Sul terá governos progressistas na Argentina, Brasil, Chile e Colômbia, e poderá olhar para o norte para encontrar o México de Andrés López Obrador. Os governos de centro-direita de países menores, como Equador, Paraguai e Uruguai, podem ficar sozinhos demais, diz Bolsonaro, que, ao olhar para o norte com otimismo, o que vê são as eleições para o Senado dos Estados Unidos que ocorrerão no dia 8 de novembro. Lá, as melhores chances são para o Partido Republicano de Donald Trump, esse bolsonarista boreal.
Dois casos laterais, mas importantes
Dois resultados com forte significado simbólico emergiram do primeiro turno, um a favor de Lula e outro a favor de Bolsonaro
Nas eleições de 2 de outubro, não só a presidência da República do Brasil estava em disputa. Também foram eleitos 27 governadores, 27 senadores, 513 deputados federais e 1.059 deputados estaduais. Dois resultados com forte significado simbólico emergiram desse intrincado labirinto, um a favor de Lula e outro a favor de Bolsonaro.
Para apontar a persistência do bolsonarismo além de sua eventual derrota no segundo turno, não é preciso nos limitarmos ao percentual inesperado que o presidente alcançou no primeiro turno. A eleição da pastora evangélica Damares Alves para o Senado foi uma das vitórias do bolsonarismo no dia 2 de outubro. A nova senadora pelo Distrito Federal foi ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos até 31 de março. Nesse cargo, ela liderou uma agenda política que os movimentos feministas consideram contrária aos direitos das mulheres. Disseminadora da frase “Meninas vestem rosa; meninos, azul”, é contra o aborto mesmo em casos de estupro.[1] Ela não é apenas uma das candidatas preferidas da esposa do presidente, mas também uma das faces visíveis do fundamentalismo pentecostal. Em sua opinião, a presença de Bolsonaro na chefia do governo marca “o momento de a Igreja ocupar a nação”.[2]
Uma vitória de Tarciso Freitas, do Partido Republicano, na disputa para governo de São Paulo, teria sido mais uma demonstração da força do Bolsonaro e quase uma alegria pessoal para Bolsonaro. Não só por quem teria vencido (seu ministro da Infraestrutura), mas também por quem teria perdido e onde. O rival de Freitas é Fernando Haddad, ministro da Educação em dois governos petistas (2005-2012), prefeito da cidade de São Paulo (2013-2016) e, sobretudo, candidato à presidência do PT nas eleições nacionais de 2018. O lugar também não é menor. Não só pela importância econômica e financeira do estado, mas igualmente porque o atual companheiro de chapa de Lula, o centrista Geraldo Alckmin, foi governador de São Paulo por mais de dez anos (de 2001 a 2006 e de 2011 a 2018).
Bolsonaro ainda pode receber essa alegria, mas terá que esperar até domingo, dia 30, já que Freitas e Haddad foram para o segundo turno. Sabendo da importância dessa queda de braço, quando Lula falou à imprensa após saber dos resultados, destacou que a campanha agora era para a presidência e também para o governo de São Paulo.
[1] AFP, “Damares Alves, la ministra de Bolsonaro que ve la vida de color rosa” [Damares Alves, a ministra que vê a vida em cor de rosa], France 24, 25 out. 2019.
[2] Karina Gomes, “‘É o momento de a igreja ocupar a nação’, diz Damares Alves”, Deutsche Welle, 28 fev. 2020.
Rafael Trejo é jornalista.
[1] Geisa Maria Rocha, “El balance social de los años de Lula” [O balanço social dos anos de Lula]. Explorador Brasil, Le Monde Diplomatique/Capital intelectual, 2013.
[2] Pedro Carvalho Oliveira, “Nos modernos jardins da eloquência conservadora”. Le Monde Diplomatique Brasil, nov. 2017.
[3] Robson Santos Dias, “O avanço do fundamentalismo nas igrejas protestantes históricas do Brasil”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2018.
[4] André Singer, Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador. Companhia das letras, 2012.
[5] Democracia em vertigem, filme de Petra Costa, 2019. Disponible en Netflix.
[6] Vinicius do Valle, “Ideologia, bases sociais e as perspectivas do bolsonarismo”, Le Monde Diplomatique Brasil, abr. 2021.
[7] The Lancet, “COVID-19 in Brazil: ‘So what?’” [Covid-19 no Brasil: “e daí?”] maio 2020.
[8] Pedro Hallal, “SOS Brazil: democracy under attack” [SOS Brasil: democracia sob ataque], The Lancet, jul. 2022.
[9] Flávio Rocha de Oliveira, “Bolsonaro, ideologia e militares”, Nueva Sociedad, ago.-set. 2021.
[10] Agência Brasil, “Cancilleres de Brasil y Rusia se reúnen en la ONU” [Chanceleres do Brasil e da Rússia reúnem-se na ONU], 22 set. 2022.
Este artigo faz parte da série especial Diplôs América Latina, acesse os outros artigos clicando aqui