A raposa e o galinheiro
Na Amazônia Legal, as terras cadastradas com a designação equivocada de “posse” somam 297,9 mil imóveis. Desse total, 62,3 mil imóveis, classificados como médias e grandes propriedades, não poderiam ser legitimados de acordo com a legislação vigente. Eles ocupam uma área de 35,6 milhões de hectares
A área total da Amazônia Legal é enorme – soma 508,8 milhões de hectares. Nessa região, as terras públicas, devolutas ou não, estão sob jurisdição da União e dos governos estaduais, e há também áreas sob domínio privado.
A União não só detém a jurisdição das terras indígenas (127,1 milhões) e das unidades de conservação ambientais federais (80 milhões) da região, como também tem poder exclusivo sobre as terras da faixa de fronteira (150 km), os terrenos de marinha – 33 metros de largura, contando a partir da linha da preamar média de 1831 – e os 15 metros de terrenos marginais – área de faixa seca inundada pelas enchentes dos rios.
Além dessas áreas, a União arrecadou e discriminou, através do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e do decreto-lei nº 1.164/71, um total de 105,8 milhões de hectares da Amazônia Legal, situados ao longo das rodovias federais. Esse decreto foi revogado parcialmente (decreto-lei nº 2.375/87), mas ficaram ainda sob jurisdição federal exclusiva os municípios de Humaitá (AM), São Gabriel da Cachoeira (AM), Caracaraí (RR), Porto Velho (RO), Ji-Paraná (RO), Vilhena (RO), Altamira (PA), Itaituba (PA), Marabá (PA) e Imperatriz (MA). São essas as terras que estão ocupadas ilegalmente pelos grileiros.
As terras declaradas pelo Incra como de domínio privado somam, na região, 180,7 milhões de hectares. Um grupo de fazendeiros que detém 135 milhões de hectares declara possuir documentos comprobatórios da propriedade sobre elas, porém outro, que detém 45,7 milhões de hectares, declara ter apenas a apropriação dessas terras, sem possuir documentos legais para tal.
A ocupação de terras devolutas da União é regulada pela lei nº 6.383/76, que em seu artigo 29 diz: “O ocupante de terras públicas, que as tenha tornado produtivas com o seu trabalho e o de sua família, fará jus à legitimação da posse de área contínua até 100 (cem) hectares, desde que preencha os seguintes requisitos: I – não seja proprietário de imóvel rural; II – comprove a morada permanente e cultura efetiva, pelo prazo mínimo de 1 (um) ano.”
Essa legislação continua sendo utilizada pelo Incra, muito embora a Constituição de 1988, no artigo 191, determine o limite da posse em 50 hectares.
As terras cadastradas com a designação equivocada de “posse” somam 297,9 mil imóveis. Desse total, 235,5 mil imóveis, que ocupam 9,8 milhões de hectares, atendem à legislação e, portanto, poderiam ter suas terras poderiam legitimadas. Mas há outros 62,3 mil imóveis, classificados como médias e grandes propriedades, que ocupam a área de 35,6 milhões de hectares, e que até a chamada Medida Provisória do Bem e a MP 422/08 não poderiam ser legitimados.
Assim, são as pequenas propriedades que vão justificar a legitimação da grilagem dos médios e grandes imóveis. No Pará, dos 16,4 milhões de hectares sob apropriação ilegal, 14 milhões estão sob controle dos médios e grandes proprietários. No Mato Grosso, do total de 11,4 milhões de hectares, os grandes e médios apropriaram-se de 10,4 milhões. São esses grileiros do agrobanditismo os contemplados pela política de regularização fundiária do governo Lula na Amazônia Legal.
Um pouco da história da grilagem
A prática da grilagem foi se sofisticando. Agora, não é mais necessário envelhecer os documentos com a ajuda dos grilos. A estratégia passou a ser a de tentar regularizar as terras por meio de “laranjas”, via falsas procurações. Este foi o período denominado “grilagem legalizada”, durante os governos militares. Conseguia-se “comprar” do governo militar ou dos estaduais, uma área maior do que a Constituição permitia.
A denúncia deste expediente culminou com a introdução do artigo 51 nos Atos das Disposições Transitórias da Constituição de 1988. Aí se prevê a revisão por Comissão Mista do Congresso Nacional de “todas as doações, vendas e concessões de terras públicas com área superior a três mil hectares, realizadas no período de 1º de janeiro de 1962 a 31 de dezembro de 1987”. Entretanto, até hoje o Congresso nada fez para providenciar essa revisão.
Na década de 1980, com o Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária e a nova Constituição Federal, de 1988, o destino das terras públicas, devolutas ou não, passou a ser regido pelo artigo 188: “A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária”.
Em decorrência desse preceito legal, montou-se uma nova estratégia para continuar favorecendo os grileiros do agronegócio — a banda podre dos funcionários do Incra passou a “oferecer” e “reservar” as terras públicas para os grileiros, indicando o caminho “legal” para obtê-las.
O Incra, desde os governos militares, arrecadou e/ou discriminou nos estados da Amazônia Legal 105,8 milhões de hectares. Desse total, até o ano de 2003 haviam sido destinados 37,9 milhões e continuavam sem destinação 67,9 milhões, assim distribuídos: Rondônia, 4,9 milhões de hectares; Acre, 6,3 milhões; Amazonas, 20,9 milhões; Roraima, 9,3 milhões; Pará, 17,9 milhões; Tocantins, 1,1 milhão; Mato Grosso, 5,8 milhões, e Maranhão, 1,7 milhão.
Hoje, todas essas terras estão “cercadas e apropriadas privadamente” por grileiros madeireiros, pecuaristas, sojeiros etc. Os funcionários do Incra que “venderam” ilegalmente quase todo esse patrimônio público passaram a propor ao governo Lula “soluções jurídicas” para legalizar tais crimes. Nesse sentido, dois caminhos foram utilizados: o uso da reforma agrária e o da regularização fundiária.
Reforma agrária contra o agrobanditismo
A reforma agrária na Amazônia tem sido usada para transferir milhões de hectares de terras públicas do Incra para o agrobanditismo. Essa política dilapidadora do patrimônio público vem sendo desenvolvida de forma articulada entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Incra, o Ministério do Meio Ambiente e os governos estaduais
, em “cumprimento” aos acordos feitos com o setor madeireiro. Segundo a Associação das Indústrias Madeireiras de Santarém e Região Oeste do Pará (ASIMAS), “o uso dos assentamentos para o fornecimento de matéria-prima legalizada para as indústrias da região foi proposto pelo próprio governo federal, como forma legal e lícita de superar a crise do setor florestal, vivida especialmente por causa da falta de regularização fundiária na região”1.
Em decorrência das pressões nacionais e internacionais provocadas pelo crescimento do desmatamento na Amazônia, o Ibama intensificou a fiscalização para contê-lo. Como consequência, o setor madeireiro, que sempre operou na ilegalidade, tratou de realizar manifestações e bloqueios de rodovias no oeste do Pará.
Para aplacar a ira dos integrantes do agrobanditismo, o governo Lula promoveu, em meados de 2004, uma reunião em Itaituba (PA) entre os madeireiros e o superintendente do Incra em Belém, Roberto Faro. Nessa reunião, ele negociou a suspensão de uma grande manifestação contra as ações do Ibama de Itaituba e “os diretores do SIMASPA (Sindicato da Indústria Madeireira do Sudoeste do Pará) encaminharam ao IBAMA uma indicação de ‘projetos prioritários’ a ser vistoriados pelo INCRA. No dia 23 de setembro, o IBAMA redirecionou ao INCRA a tal lista de áreas prioritárias (ofício 361/2004)” para fazer o geo-referenciamento das terras públicas griladas pelos madeireiros. Porém, como a ilegalidade havia sido denunciada, no dia 7 de dezembro de 2004 Roberto Faro foi “preso e exonerado sob a acusação de corrupção e formação de quadrilha para liberação de títulos de terras da União” pela Operação Faroeste realizada pela Polícia Federal2.
No início de 2006, o agronegócio da madeira assumiu publicamente o apoio à implantação dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) pelo Incra, “depois que os empresários perceberam que poderiam ganhar explorando a madeira da reserva legal dos projetos”. E para que isso ocorresse as entidades empresariais deveriam “incentivar os sócios a devolverem as áreas públicas [com florestas primárias griladas] ao INCRA, com as devidas coordenadas geográficas”. E mais, o órgão deveria criar os “PDS, juntando as áreas devolvidas em blocos de 20 mil hectares, e assentar os sem terra em lotes de apenas 20 hectares3”
Assim, a reforma agrária, no Pará, passou a ser oficialmente usada para favorecer o agrobanditismo, ou seja, a política de reforma agrária do governo Lula estava marcada por dois princípios: não aplicá-la nas áreas de domínio do agronegócio, mas sim nas áreas onde o agronegócio poderia ser “favorecido” por ela.
Em um movimento contrário, o Ministério Público Federal ingressou na Justiça Federal de Santarém com uma ação civil pública para anular 99 portarias de criação de assentamentos pela reforma agrária, emitidas em 2005 e 2006 pela SR 30 de Santarém, sem licença ambiental. A justificativa decorria do fato de que eles “não atendem a uma autêntica demanda de potenciais clientes da reforma agrária e são resultado da pressão do setor madeireiro junto às esferas governamentais, que vislumbram nos assentamentos um estoque de matéria-prima cujo manejo é objeto de um licenciamento mais rápido”4.
A denúncia foi acatada pela Justiça Federal e uma liminar foi concedida, embargando o acordo com as madeireiras. Assumindo o crime que cometera, a SR 30 de Santarém cancelou as portarias que haviam criado cinco assentamentos sobrepostos ao Parque Nacional da Amazônia em áreas griladas por madeireiros.
A intervenção do MPF visou impedir estas ações, “uma vez que a prática irregular pode eventualmente camuflar a obtenção de vantagens ilícitas como meio de agilização da distribuição de parcelas das terras públicas”5.
Essa política foi claramente apresentada pelo diretor do Incra, Raimundo de Araújo Lima, na 6ª Reunião da Comissão de Gestão de Florestas Públicas: “Não existe, por parte do INCRA, nenhum problema com relação às empresas que se fixaram na Amazônia. E fomos extremamente tolerantes com relação à exploração florestal em terras públicas sem nenhuma autorização, algumas griladas e outras ocupadas irregularmente”.
“Municípios como de Novo Progresso, com certeza, 90% da renda gerada ali vem do setor madeireiro e precisava encontrar uma forma de transição que possibilitasse as empresas manejar dentro das terras públicas e fizemos.6”
Devido à pressão dos madeireiros, diretamente interessados nessa política, o caminho legal apontado para legalizar a grilagem passou a ser o uso da regularização fundiária.
A regularização como solução
No final do ano de 2005, o governo Lula premiou os grileiros das terras públicas da Amazônia através do artigo 118 da lei nº 11.196/05 (a chamada “Medida Provisória do Bem”). Essa medida alterou a lei de licitações públicas (lei nº 8.666/93), permitindo a regularização, através da venda, das terras públicas com área de até 500 hectares. Mas a banda podre dos funcionários do MDA/Incra não se deu por satisfeita, e, via deputado paraense Asdrúbal Bentes (PMDB), apresentou no final de 2008 um projeto de lei que ampliava para até 15 módulos fiscais (1.500 hectares) a dispensa de licitação e, consequentemente, a autorização para venda das terras do Incra aos grileiros.
Não foi necessário esperar a tramitação do projeto, pois o presidente Lula e o ministro Cassel, em nome da reivindicação da base aliada, transformaram o projeto de lei do deputado Asdrúbal Bentes na Medida Provisória nº 422/08, convertida depois na Lei nº 11.763/08.
Esses atos aparentemente legais revelam o “esforço” do MDA/Incra em tentar, a todo custo, alterar a legislação para ampliar a área passível de regularização fundiária ou de alienação, favorecendo os ocupantes ilegais de terras públicas: “Agora eles poderão comprar do governo federal as terras que já ocupavam há anos e não vão precisa
r concorrer com outros interessados”7.
Outro aspecto da engenhosa operação de legalização da grilagem de terras do Incra na Amazônia Legal foi o aproveitamento do aumento do desmatamento naquela região para fazer o recadastramento dos imóveis. Esse recadastramento permitiu que os grileiros que ainda não haviam cadastrado as terras públicas griladas até dezembro de 2004, pudessem agora fazê-lo, tornando-se habilitados para “comprar” as terras griladas sem licitação8.
Trata-se, pois de uma grande operação de caráter político que entregar o patrimônio público para o agrobanditismo da Amazônia. Assim, o agronegócio está vencendo a luta pelo controle da terra destinada à reforma agrária e segue grilando o território brasileiro.
As ações ilícitas do Incra não saem da mídia: “PF prende cúpula do Incra em Mato Grosso”. Entre os envolvidos no caso, encontravam-se o superintendente, o vice, o procurador regional e o chefe da Divisão de Obtenção de Terras, além de madeireiros e fazendeiros9.
Felizmente, há também ações que visam combater a grilagem de terras públicas na Amazônia, iniciativas da parte ilibada dos procuradores do Incra: “CNJ devolve à União terras griladas no AM. Sem poder para mandar prender integrantes de uma máfia de grileiros com atuação no Amazonas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ‘expropriou’ as terras que eram ilegalmente negociadas pelo grupo. O CNJ devolveu, em setembro, 587 mil hectares de terras griladas na região ao governo federal, uma área do tamanho do Distrito Federal10”.
Cabe lembrar que mais de 212 milhões de hectares de terras públicas, devolutas ou não, estão fora dos registros do Incra, dos institutos de terras estaduais e dos cartórios de registro de imóveis. Ou seja, essas terras estão cercadas, mas não existem para o Estado. Outros 84 milhões de hectares aparecem no cadastro do Incra como posse, e, dentre elas, apenas 21 milhões de hectares são posses legalizáveis pela legislação em vigor. Outros 63 milhões vão se somar aos 212 milhões, totalizando 275 milhões de hectares de terras cercadas ilegalmente no país, e, em sua maioria, a áreas médias e grandes que não podem ser legalizadas. Essa é a razão pela qual os grileiros sempre atuaram politicamente, ou seja, procurando impedir que os governos estaduais e a União fizessem as ações discriminatórias das terras devolutas sob suas jurisdições.
Permitir a transferência das terras públicas do Incra para os grileiros com área até 15 módulos fiscais, como faz Lei nº 11.762, é permitir a continuidade da corrupção na administração pública e da dilapidação do patrimônio público.
É necessário destacar, também, que a encenação política que envolveu o debate sobre a divisão do Incra e a criação de um novo órgão para realizar a regularização fundiária na Amazônia Legal, apenas encobriu o principal: o abandono da reforma agrária e a opção pela regularização fundiária, ou seja, a “legitimação” da grilagem das terras públicas da Amazônia Legal.
É no MDA/Incra que está a “estrutura pensante” da venda das terras públicas aos grileiros. Assim, tudo segue como antes: “a raposa vai continuar tomando conta do galinheiro”.
*Ariovaldo Umbelino de Oliveira é doutor em Geografia Humana e professor titular da Universidade de São Paulo.