A realidade a ser enfrentada pelo próximo presidente do Panamá
- Eleitores escolhem neste domingo mandatário para os próximos cinco anos tentando encontrar as diferenças entre as agendas conservadoras da maioria dos candidatos
Nos arredores do famoso canal do Panamá e dos milionários bancos que por anos abrigaram a condição de paraíso fiscal a massa anônima e empobrecida de panamenhos enfrenta cotidianamente a décima pior distribuição de renda do mundo conforme o Banco Mundial. O contraste entre a moderno Casco Viejo no malecón da capital – construída pela Odebrecht – e as condições de vida de parte significativa dos cidadãos nas ruas próximas ao ponto turístico sintetizam a realidade da nação que elege seu próximo presidente neste domingo, dividida entre os partidos tradicionais que governam desde a redemocratização, a candidatura de independentes e a possibilidade de uma nova constituição.
“A desigualdade não é um tema importante na campanha, embora ela seja muito visível. A riqueza está concentrada estatística e geograficamente em poucas zonas. Os mais pobres testemunham e convivem com a opulência na qual vivem poucos panamenhos”, observa o diretor do Centro Internacional de Estudos Políticos e Sociais, Harry Brown Araúz.
Para se ter uma idéia da disparidade, apenas o “corregimiento” de São Franscisco, como são chamadas a divisão das zonas políticas e geográficas, situado nas proximidades do Canal corresponde a 5% do PIB de todo o país, enquanto a totalidade do setor agropecuário alcança 3%. As áreas mais distantes do centro econômico onde vive 50% da população de mais de quatro milhões de panamenhos produz apenas 15% da riqueza material do país, situação que fica evidenciada na falta de iluminação pública e carências sanitárias em Bocas del Toro ou nas casas abandonadas de Portobelo, em Colón, devido à falta de oportunidades.
“Não parece estar no radar das pessoas manter o atual governo dos panamenistas, que junto ao Cambio Democrático (CD) e ao Partido Revolucionário Democrático (PRD) dominam a política beneficiando as cúpulas partidárias em detrimento do povo, por isso muitos tem apoiado nomes independentes. Há muita desesperança e apatia”, comenta Sonia Santamaria, direto da costa caribenha.
Os sete candidatos presidenciais apresentam poucas nuances em suas agendas baseadas no conservadorismo social e na ênfase ao livre mercado na esfera econômica – com exceção à candidatura de esquerda levada por Saúl Mendez pela Frente Amplio. A estratégia neoliberal vem demonstrando-se ineficiente para melhorar a vida das maiorias, como comprova o quadro de desnutrição infantil – o quarto pior da América Latina conforme a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) – e a morte de um cidadão a cada quatro dias pela fome, afora os 9% subalimentados.
Afastado do poder há uma década o PRD, sigla mais forte do país, articulou propostas nessa direção, “estudar sem fome” para os estudantes carentes e “o campo em sua mesa”, a fim de ofertar alimentos a preços baixos são dois exemplos. A legenda, que desponta como favorita nas pesquisas com a Saúl Mendez pela Frente Amplio, apesar da contestação dos adversários sobre as projeções de voto, botou a maquinária de 500 mil filiados para funcionar e elaborou seu projeto junto a diversos setores. O grupo, majoritário no parlamento, fala em corrigir erros das gestões anteriores numa reaproximação com a origem do partido, que já participou do Foro de São Paulo e da Internacional Socialista e atualmente é crítico em relação à prisão do ex-presidente Lula no Brasil.
“Somos um partido da esquerda democrática, nascemos produto da luta pela recuperação da nossa soberania e do nosso canal, conquistado sob a condução do General Omar Torrijos. Essa essência mantém-se e se traduz numa opção e identificação com os setores populares. Nesses últimos anos o PRD fez a autocrítica dos erros cometidos quando governamos e assim nos reconectamos à nossa proposta social”, assegura Hector Aleman, membro do PRD, além de ex-deputado e ex-ministro da segurança.
O dirigente destaca a urgência de uma reforma tributária e da duplicação dos investimentos em educação, atualmente estacionado nos 3% do orçamento, contingenciamento que obriga a muitos estudantes do interior a enfrentarem as conhecidas “aulas rancho”, as quais muitas vezes nem banheiro possuem. A gestão do presidente Juan Varela diminuiu o número de unidades inadequadas, mas elas persistem em determinadas localidades.
A improvável continuidade
Afora a má avaliação de Varela cuja administração desagrada dois entre três pessoas segundo levantamento divulgado por La Prensa, um dos principais veículos de comunicação do país, o Partido Panamenista têm contra si o retrospecto. A oposição sempre vence as eleições, quadro que desfavorece as chances do ex-prefeito da Cidade do Panamá José Blandón e sua aposta no “cambio profundo” junto da formação de uma Assembleia Constituinte.
O candidato considera que distorções a exemplo da concentração de poderes do executivo, o qual inclusive nomeia os governadores e da subrepresentação de apenas 13 mulheres ante 71 postos no parlamento são produto da atual constituição. “Blandón conseguiu modernizar a prefeitura fazendo com que a Cidade do Panamá seja transparente. Ele defende a paridade de gêneros em sua equipe e a descentralização para que os recursos cheguem às comunidades. Sucede também que a relação Varela Blandon é distante. São correntes distintas no partido, Blandon é mais de centro”, alega um integrante da campanha que pediu para não ser citado.
O governo de direita de Varela estancou o poder de compra do salário mínimo, apesar de ser o mais alto da América Latina devido à economia dolarizada, e foi criticado pelo desabastecimento de medicamentos na caixa de seguro social, destinada aos trabalhadores que contribuem para ter acesso ao serviço. Em contrapartida, os situacionistas exaltam a duplicação da capacidade do principal aeroporto, reforçado como centro regional de conexões e responsável por 260 mil empregos diretos e indiretos e o fim dos paraísos fiscais em virtude das modificações no sistema financeiro após a revelação do Panamá Pappers, quando demonstrou-se que o país era utilizado para lavagem de dinheiro e sonegação de fortunas de representantes das elites de todo o mundo.
Enquanto o atual mandatário desperta pouco entusiasmo popular, a maior liderança do Cambio Democrático, outra força relevante politicamente, o ex-presidente Ricardo Martinelli (2009 a 2014) continua a agradar parte do eleitorado mesmo impedido de concorrer por estar preso preventivamente acusado de abuso de autoridade em função de supostamente ter aprovado escutas telefônicas ilegais durante seu mandato. O postulante presidencial do partido Rómulo Roux, em segundo lugar nas pesquisas, aposta no legado de seu correligionário com o slogan “o bom volta” a partir do qual destaca o crescimento de médio de 8%, a redução dos níveis de pobreza e a construção do primeiro metrô da América Central – a inflação e a corrupção costumam ser os defeitos apontados da época.
Quem também sonha em chegar à presidência é o independente Ricardo Lombana, desvinculado de partido e também defensor de uma nova constituição, a candidatura sem espaço na televisão aparentemente atrai o voto dos mais jovens que não se identificam com as legendas tradicionais. “Não há polarização e diversidade de ideologias, as políticas sociais entre os últimos três governos tiveram pouca diferença e isso se repete entre os candidatos nesta eleição”, avalia Brown.
A ferida aberta da invasão norteamericana e o racismo estrutural
O Panamá completa 30 anos de retorno à democracia nas eleições gerais deste domingo. Mais consolidado do que o sistema democrático, o racismo estrutural marca o país invisibilizando a população afro antilhana, mensurada em 15% pelo Instituto Nacional de Estatística e Censo , embora o índice pareça estar aquém do que se observa pelo país. A frase “En Panamá el que no tien de tinga, tien de mandinga” evidencia a conformação étnica do povo.
“Existe negação da verdadeira identidade por falta de educação. Aqui se diz que não há racismo, embora persista o perfilamento racial, com abuso policial, exclusão da agenda do estado. Desde 2000 lutamos e conseguimos desenvolver um plano de inclusão da população afropanamenha. Conquistamos a Secretaria Nacional de Assuntos Afrodescendentes criada em 2017, entretanto sua grande debilidade é não contar com estrutura e recursos para iniciar verdadeiras políticas públicas”, explica Samuel Samuels, coordenador nacional de Organizações Negras Panamenhas.
Segundo o Observatório Afro somente quatro presidenciáveis fazem menção ao segmento em seus programas, Nito Cortizo, Saul Mendez, José Blandon e Ana Matilde Gómez, única mulher a concorrer ao posto máximo da república. A revisão histórica passa também por outro campo, o fato de o Panamá carregar a marca de ser o último país a ter sofrido uma invasão militar dos americanos, em 1989, sem que até hoje se tenha a real dimensão do acontecimento e das mortes causadas pela operação cuja justificativa pública era a retirada do ditador Manuel Noriega, ex-agente da CIA que presidia o Panamá e era envolvido com o narcotráfico.
A Comissão 20 de dezembro, originada em 2016 no parlamento para investigar o caso publicou uma lista provisória de 341 vítimas, mas estudos de entidades civis estimam que podem ser até três mil os óbitos de 20 de dezembro de 1989 a 13 de fevereiro de 1990, período no qual mais de 20 mil militares norteamericanos permaneceram em território estrangeiro. “Antes alguns defendiam a tese de uma liberação, mas agora caminha-se para um consenso que houve invasão. Existe uma geração marcada por esse episódio e a ferida ainda está aberta”, descreve Román Rodriguez, de 62 anos, morador da capital.
Mirando o futuro e carregando suas trajetórias, 2,7 milhões de eleitores elegem para os próximos cinco anos além do presidente, prefeitos e conselheiros municipais. Situado na ligação da América do Sul com a América Central e detentor do gigante canal oceânico que leva seu nome, o grande desafio do Panamá está dentro de suas fronteiras para incluir uma ampla população vulnerabilizada e assim finalmente para prestar contas ao seu povo.
Murilo Matias é jornalista