A "receita" do manga revisionista
Irritado com tanta injustiça e tantas inverdades, o protagonista de Kobayashi investiga, relata, explode, se insurge e insulta o leitor, para lhe impor o seu ponto de vista ou bombardeá-lo com seus sarcasmos, dando à narrativa um tom provocadorPhilippe Pons
Nos dez volumes até hoje editados de sua obra Manifesto do Novo Orgulhismo, Yoshinori Kobayashi segue sempre o mesmo procedimento: a personagem principal, uma espécie de seu alter ego ? e que, por sinal, tem as feições do autor: cabelos amarrados atrás da cabeça, óculos redondos, sempre vestido de preto ? organiza a narrativa como faz um moderador em um debate pela televisão. Irritado com tanta injustiça e tantas inverdades, ele investiga, relata, explode, se insurge e insulta o leitor, para lhe impor o seu ponto de vista ou bombardeá-lo com seus sarcasmos, dando assim à narrativa um tom vivo e provocador. Começa sempre seus sermões com um refrão: “Você me permite demonstrar o meu orgulhismo?” Na opinião de Kobayashi, o “orgulhismo” significa mostrar caráter e querer acabar com a doença da “compaixão” que assola o Japão desde a derrota.
Na revista Da Guerra, publicada em 1998 pela editora Gentosha com uma tiragem de 600 mil exemplares e que até hoje é uma das mais vendidas nas livrarias, o protagonista habitual está na varanda de sua casa e olha a cidade: é a paz, constata, mas “ninguém conhece a verdadeira natureza da paz”. Seria o contrário da guerra? Não, a paz “é a ordem”. E aí, a nossa personagem começa a contar à juventude o que foi a guerra. Como um Virgílio no Inferno, ele irá nos guiar pelas profundezas da “verdadeira guerra que travaram os japoneses, através de vitórias miraculosas, no início, e da beleza trágica das batalhas da derrota”. “Tirem esses eletrodos de suas cabeças, essa guerra foi justa!”, berra, dirigindo-se ao leitor (numa referência aos capacetes dos adeptos da seita Aum, que diziam estar assim em contato espiritual permanente com seu guru).
“Contra racistas brancos”
Da Guerra parece-se bastante com os temas recorrentes em histórias em quadrinhos anteriores de Kobayashi. O autor começa por denunciar um individualismo que teria feito seus semelhantes perderem o sentido do civismo e estigmatiza a “guerra da informação” travada pela esquerda e pelos meios de comunicação, que estariam veiculando suas idéias para calar a verdade sobre o passado: “As pessoas dóceis são manipuladas pelos marxistas”, afirma.
Sobre as mulheres forçadas a se prostituir para o exército japonês, ele diz que “foi uma promoção, pois elas preferiam os bordéis militares aos civis”
Um dos temas prediletos de Kobayashi é o caráter “justo” de uma guerra dirigida, antes de tudo, “contra os racistas brancos”, colonizadores da Ásia, e a quem o exército japonês deu uma lição merecedora de aplausos. Apresentada com visíveis excessos, a tese do expansionismo como guerra de libertação dos povos da Ásia foi amplamente desenvolvida por intelectuais de direita durante o pós-guerra (Fusao Hayashi, falecido em 1975, por exemplo).
“Promoção” pelo estupro
Kobayashi aborda sem grande dificuldade uma outra questão, negando uma das mais graves atrocidades cometidas pelo exército imperial: o massacre de Nanquim. “Se houve algum crime que tenha sido falseado durante o processo do Tribunal Internacional de Tóquio, esse foi o do incidente de Nanquim. (…) Eles [os vencedores] precisavam que existisse um crime que se pudesse contrapor aos 300 mil mortos japoneses em Hiroshima e Nagasaki.” Com relação às mulheres forçadas à prostituição (leia, nesta edição, no artigo “A guerra da História da Ásia”, a denúncia das cerca de 200 mil mulheres asiáticas forçadas a se prostituir para o exército japonês), Yoshinori Kobayashi também nega o fato. É ainda mais explícito em sua rejeição às responsabilidades do Japão numa edição anterior de seu Manifesto do Novo Orgulhismo (vol. III), onde denuncia o trabalho do historiador Yoshiaki Yoshimi, que revelou os documentos dos arquivos do exército demonstrando a responsabilidade do Estado-Maior nesse “tráfico” de “mulheres para soldados”. Em sua opinião, Yoshimi extrapola, a partir de instruções dadas pelo exército com o objetivo de evitar que os soldados fossem punidos por estupro. Também em sua mais recente revista, Sobre Taiwan (Taiwan ron), ele demonstra seu revisionismo quando, citando uma fonte chinesa, afirma que aquelas mulheres já eram prostitutas e, para elas, “tornar-se uma mulher revigorante1 equivalia a uma promoção, pois elas preferiam os bordéis militares aos civis”. Poderia dizer-se que aí, os excessos beiram o desprezo. (
Philippe Pons é jornalista, autor particularmente de Misère et crime au Japon, du XVII e siècle à nos jours, 1999, e D’Edo à Tokyo, 1998, ambos pela Gallimard, Paris.