A reconquista do protagonismo ambiental do Brasil
Parlamento Europeu aprovou nova legislação que proíbe a importação de commodities oriundas de desmatamento. A norma vem em boa hora. Brasil terá de livrar-se de seus perrengues ambientais se quiser dormir em berço esplêndido
O combate ao desmatamento ganhou novo patamar na Europa. Provocado por 200 mil cidadãos, o Parlamento Europeu aprovou, por 453 votos a favor e apenas 53 contrários, nova legislação que proíbe a importação de commodities oriundas de desmatamento, seja este legal ou ilegal. A norma segue agora para aprovação nos parlamentos de cada um dos 27 países-membros da União Europeia.
A firme postura da lei europeia contra desmatamentos legais e ilegais visa evitar fragilizações na legislação de países exportadores. Fecham o espaço para artimanhas como ocorridas no Congresso Nacional brasileiro, com as alterações no Código Florestal, quando ruralistas atropelaram ciência e ecologia, apesar da oposição de representações científicas como a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
No Congresso falta equilíbrio entre interesses econômicos e ambientais. As votações da última gestão demonstraram que 68% dos parlamentares votaram contra a proteção do meio ambiente e em defesa de interesses econômicos, desguarnecendo indígenas e trabalhadores rurais.

Essa característica lobística também ocorre porque o próprio Ministério do Meio Ambiente passou a ser um mero puxadinho do setor ruralista mais atrasado.
A nova bancada eleita para assumir em 2023 promete ser ainda mais antiambiental que a anterior. Como exemplo, o PL de Jair Bolsonaro cresceu de 76 para 99 deputados. Certamente essa influência antiambiental se refletirá na realidade brasileira.
O desregramento normativo é um fato que ficou patente na gestão de Jair Bolsonaro e na última legislatura da Câmara dos Deputados e do Senado.
A realidade dos diferentes biomas é alarmante. A Rede Cerrado afirma que o cerrado brasileiro produz aproximadamente 15% da soja exportada para a União Europeia. Desse total, dois terços são provenientes de áreas desmatadas.
O Mapbiomas publicou recentemente um levantamento sobre os efeitos do agronegócio na Caatinga, onde o bioma perdeu 160 mil hectares de superfície da água, com supressão de 10% das áreas naturais nos últimos 37 anos. A Floresta Amazônica está entrando em colapso diante da destruição mensal de áreas equivalentes à da cidade de São Paulo.
Essas agressões aos biomas, somadas aos efeitos das mudanças do clima, apontam intensificação de processos de desertização e perda futura na capacidade de produção de alimentos.
O processo já está atingindo o cerrado paulista. Comunidades vulneráveis têm um futuro incerto, como é o caso da metade das comunidades quilombolas certificadas no Brasil, estabelecidas no semiárido brasileiro.
A correlação das perdas ambientais com a emissão brasileira de Gases Efeito Estufa (GEE) é imediata. O Brasil é o quinto maior emissor global de GEE, só ficando atrás da China, Estados Unidos, Índia e Rússia. Dados do Mapbiomas apontam que a emissão brasileira decorre em 46% das mudanças no uso do solo, o que inclui o desmatamento — e em 27% da agricultura e pecuária.
A norma europeia vem em boa hora. Carne bovina e suína, soja, óleo de palma, borracha, madeira, cacau e café deverão comprovar a integridade ambiental de sua origem – e isso inclui regularidade em direitos humanos e respeito aos direitos dos povos indígenas.
Se a democracia europeia nos inspira, a história nos ensina. Em quatro séculos o Brasil recebeu quase 5 milhões de pessoas escravizadas. Mesmo depois de proibido o tráfico, em 1833, os legisladores europeus tiveram dificuldades em cortar laços econômicos com o fruto do trabalho escravo, em razão da grande lucratividade que isso proporcionava ao seu sistema bancário. Nota-se agora uma postura determinada, até mesmo porque o aquecimento global vem provocando severos danos em território europeu.
O Brasil não deve se orgulhar dos números atuais do PIB nas condições em que se dá sua produção. Não contabiliza o estágio da degradação ambiental e o depauperamento dos ecossistemas naturais.
Em 1861, antes da Guerra da Secessão, o sul dos Estados Unidos orgulhava-se de sua produção agrícola crescente com mão de obra escrava, à custa de um processo de degradação humanitária.
Novos tempos, novas regras. Estamos adentrando um novo cenário, que exigirá evitar o financiamento da degradação. A missão da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) está iniciando preparativos para sua instalação oficial no Brasil.
Serão ajustes difíceis, uma vez que a OCDE rebaixou o Brasil em seu ranking de combate à corrupção em assuntos que tangenciam o desmatamento por causa da falta de independência da Procuradoria Geral da República e da Polícia Federal.
A atual situação de criminalidade ambiental na Amazônia, associada a capitais externos, será um permanente entrave nessas negociações.
O Brasil terá de livrar-se de seus perrengues ambientais se quiser dormir em berço esplêndido. O descontrole na Amazônia poderá gerar novos conflitos, desta vez externos, uma vez que o desmatamento desregrado assume, cada vez mais, dimensões de tensão geopolítica.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) tem agora em suas prioridades combater agressões ao meio ambiente. A Colômbia já abriu as portas para a Otan combater não só o narcotráfico, mas também queimadas e desmatamento. Uma dúzia de helicópteros Black Hawk deverão entrar em ação para conter as queimadas na Amazônia colombiana.
De outro lado da fronteira, na Venezuela, aninham-se estruturas bélicas russas e chinesas.
Segundo Evan Ellis, professor e pesquisador de estudos latino-americanos do Instituto de Estudos Estratégicos da Escola de Guerra do Exército dos Estados Unidos, os destacamentos periódicos russos na Venezuela “incluíram apoio para equipamentos militares e sistemas de defesa aérea comprados da Rússia pela Venezuela e por mercenários do grupo paramilitar russo Wagner”.
O conflito Ocidente-Oriente está potencialmente se espalhando pelas bordas da Amazônia, território de interesse internacional para conter as mudanças climáticas. O ex-embaixador brasileiro em Washington, Rubens Barbosa, afirma ser urgente a convocação do Tratado de Cooperação Amazônica para construir um processo de diálogo na região.
A estabilidade da soberania e da segurança alimentar estão sendo gradualmente ameaçadas no Brasil não por interesses externos, como costumam afirmar de forma simplista as carpideiras da ditadura, esquecendo-se do saque diário de recursos naturais praticados ilegalmente na Amazônia. Há um evidente processo de descuramento do território em função de interesses econômicos imediatistas e degradadores, que continuam a aumentar apesar do novo paradigma humanitário de proteção ambiental em vigor, que com amplo respaldo científico e assegurado por tratados internacionais já se instalou globalmente desde a Conferência de Estocolmo, em 1972.
O Brasil precisa cuidar da Amazônia e colocar em prática um diálogo internacional de soberania colaborativa. Mas isso não ocorrerá sem um sistema de gestão estatal brasileiro sólido e responsável, de modo a provocar resposta internacional correspondente.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).