A renda básica e seus falsos cognatos
Do Fórum Econômico de Davos ao Vale do Silício, passando pelas assembleias do movimento Nuit Debout, a renda básica está, há alguns meses, em todas as bocas. A Finlândia anuncia querer instaurá-la; os suíços votaram a respeito em junho. Mas, entre a utopia emancipadora e uma tímida reforma, há um mundo de opções…Mona Chollet
Falar em estabelecer uma renda básica sem especificar o que se entende por isso é como discutir a adoção de um felino sem dizer se será um gatinho ou um tigre”, destaca Olli Kangas, diretor de pesquisa do Kela, o instituto finlandês de proteção social.1 Mesmo assim, nos últimos meses, a ideia tem encontrado cada vez mais ressonância, na Europa e alhures. Diante disso, quem há anos defende a renda mínima não consegue evitar a impressão de que há gatinhos, tigres e criaturas híbridas pulando em todas as direções diante de seus olhos atordoados.
Sobre uma definição mínima da renda básica, todo mundo concorda. Cada indivíduo receberia da coletividade, desde o nascimento até a morte, sem nenhuma condição ou contrapartida, uma soma regular, cumulativa com outros rendimentos, inclusive aqueles obtidos por meio do trabalho. Nas versões da esquerda, imagina-se um montante próximo ao salário mínimo,2 alto o suficiente para cobrir as necessidades básicas (cerca de 1.000 euros, na França), o que permitiria recusar um emprego considerado desinteressante, danoso e/ou mal pago.3 É um modo de reconhecer as diversas formas que pode tomar a contribuição de cada um para a sociedade: trabalho remunerado ou não, formação – antes de entrar no mercado de trabalho ou para mudar de área –, ajuda aos entes próximos, investimento associativo, criação etc. Baptiste Mylondo, um dos defensores atuais dessa versão na França,4 associa-a a medidas drásticas de redução da desigualdade: imposto de renda fortemente progressivo, taxação do patrimônio e instauração da renda máxima (com um desvio máximo autorizado de um a quatro).5
No outro extremo do espectro, na versão liberal – teorizada pelo economista norte-americano Milton Friedman (1912-2006), com seu “imposto negativo”6 –, o montante é muito pequeno para que se possa viver sem emprego. Nesse caso, em vez de fortalecer o poder de negociação dos trabalhadores, a renda básica pode funcionar como um subsídio aos empregadores, que ficarão tentados a reduzir os salários. Além disso, ela atuaria como uma “solução total e definitiva”, substituindo os benefícios sociais existentes (seguro-saúde, seguro-desemprego, seguro-família, seguro-velhice). Em suma, a ferramenta pode ser colocada a serviço de visões de mundo e projetos de sociedade antípodas. “Ora nos chamam de liberais, ora de comunistas”, lamentam Nicole Teke e Yin Yue, membros do Movimento Francês para a Renda Básica (MFRB), fundado em 2013 e hoje com novecentos membros.
Para qual desses polos tende o debate hoje? Curiosamente, as análises divergem: há quem só veja gatos, enquanto outros só enxergam tigres. À direita, o engenheiro Marc de Basquiat, um dos principais teóricos da ideia na França, observa: “Duas pesquisas realizadas entre os militantes de partidos políticos, com um ano de diferença, mostraram que a ideia tem sido cada vez mais entendida como ‘de esquerda’. Isso é muito ruim, pois, se ela for percebida como um capricho de esquerdistas, será ainda mais difícil fazê-la avançar”. As assembleias do Nuit Debout, que debateram amplamente a renda básica e seus méritos em comparação com o salário vitalício teorizado por Bernard Friot,7 não melhoraram as coisas…
A mesma contrariedade, mas por razões diferentes, vemos em Corinne Morel Darleux, membro do secretariado nacional do Partido de Esquerda (PG) da França. Ela descobriu a renda garantida há cerca de oito anos, com Mylondo, dentro do Movimento Utopia (transversal aos Verdes e ao PG): “Para mim, ela continua sendo a ideia mais subversiva do campo político. O problema é que hoje está sendo retomada em toda parte, porém de um modo que esvazia seu sentido”. De fato, as divulgadíssimas experiências empreendidas na Holanda e na Finlândia, por exemplo, não têm nada de revolucionário. Nas vinte cidades holandesas que a estão avaliando, trata-se mais de “reformas da assistência social inspiradas por certos princípios da renda básica”, diz o economista Sjir Hoeijmakers.
Em Helsinque, o Partido de Centro, no poder desde abril de 2015, fez campanha pela renda básica como solução para melhorar a eficiência da proteção social, em um contexto de austeridade, e impulsionar a atividade econômica, empurrando beneficiários da seguridade social para o mercado de trabalho. O princípio é amplamente apoiado pela população, assim como pelos Verdes e pela Aliança de Esquerda. Cumulativa com o emprego, a renda básica permitiria eliminar os efeitos de permanência na inatividade, ou seja, o risco de que o retorno ao trabalho remunerado faça a renda cair em razão da perda de benefícios sociais. Um relatório definitivo deve permitir lançar, no início de 2017, uma experiência de dois anos, mas os primeiros elementos tornados públicos mostram que as ambições foram revistas para baixo. O projeto-piloto prevê uma renda de apenas 550 euros, cumulativa com a assistência habitacional e paga a 10 mil pessoas. “É um espírito muito diferente daquele do referendo suíço [ver boxe]”, insiste o economista Otto Lehto, membro da seção finlandesa da Basic Income Earth Network (Bien – Rede Global de Renda Básica). “Não se trata de lutar contra a pobreza nem de estabelecer o direito à renda, muito menos de liberdade em relação ao emprego.”
Alianças suprapartidárias
Ainda pouco numerosos e muitas vezes isolados em seus respectivos círculos ou partidos, os adeptos franceses da renda básica trabalham em conjunto, embora continuem lúcidos a respeito daquilo que os separa. “Eu amo Baptiste [Mylondo], mas ele é um idealista”, diz Basquiat. “Querer limitar as diferenças de renda a uma escala de um a quatro é um grande golpe para a liberdade!” Velho amigo de Nicolas Sarkozy, o deputado Frédéric Lefebvre (Os Republicanos), candidato às primárias de seu partido para a eleição presidencial de 2017, conta como Julien Bayou, porta-voz do Europa Ecologia – Os Verdes (EELV), levou-o a discutir a renda básica com um sem-teto alojado em uma ocupação da associação Jeudi Noir. Em janeiro de 2016, na Assembleia Nacional, ele também defendeu sua colega socialista Delphine Batho no quadro da revisão da Lei República Digital, com emendas solicitando que o governo apresente ao Parlamento um relatório sobre a viabilidade da renda básica. “Eu assumo totalmente o aspecto suprapartidário dessa questão”, comenta Batho. “Os partidos não produzem mais uma única ideia nova. O mais importante está acontecendo fora deles. E esse assunto encontra divisões tanto dentro como fora. Nós não concordamos em tudo, mas temos de trabalhar para criar maiorias de ideias.”
Entre nossos entrevistados, nenhum defende abertamente o desmantelamento da proteção social. Nem mesmo Lefebvre ou Gaspard Koenig, fundador do think tank liberal Geração Livre. Embora o MFRB reivindique-se “nem de direita nem de esquerda”, ele esclarece em seu estatuto que a instauração de uma renda básica “não deve afetar os sistemas públicos de segurança social, mas complementar e melhorar a proteção social existente”. Ela poderia substituir alguns benefícios do regime de solidariedade financiado pelos impostos, como a renda de solidariedade ativa (RSA), mas ninguém pretende mexer no regime de seguro financiado pela cotização (pensões, seguro contra o desemprego e de saúde). Somente os benefícios prestados às famílias seriam substituídos por uma renda básica paga a cada filho, em um montante menor que o dos adultos.
Uma exceção: num relatório publicado em maio,8 a Fundação Jean-Jaurès, próxima do Partido Socialista (PS), propôs três cenários de financiamento que, inspirados pela preocupação de “não gerar endividamento adicional”, implicam retalhar sem remorsos a seguridade social. O primeiro prevê distribuir a todos os adultos 500 euros por mês, em troca do desmonte do seguro contra doença e desemprego; o segundo – considerado o mais crível pelos autores –, com 750 euros, “recicla” até os benefícios de aposentadoria. Apenas o terceiro, com um montante de 1.000 euros, prevê pagamentos suplementares. Consternado, Jean-Éric Hyafil, membro do MFRB que prepara uma tese em Economia sobre a renda universal, denunciou as “grandes bobagens” contidas nesse relatório, durante um debate com Jérôme Héricourt, coordenador do grupo de trabalho da fundação, em um café parisiense, no dia 26 de maio de 2016. “A renda básica é perfeitamente compatível com a proteção social e com uma despesa pública alta!”, insistiu. Envergonhado, Héricourt respondeu que os autores do relatório não viam na renda básica “a grande solução para os problemas do século XXI”, mas não quiseram especificar isso no documento, que fora redigido “em um espírito de neutralidade”. De modo que os cenários por ele apresentados foram divulgados por toda a imprensa como recomendações…
Uma mesma soma para todos, não importa sua situação: todos os defensores da renda básica concordam em acabar com a intromissão na vida privada realizada pelo atual regime de solidariedade, cujos benefícios estão sujeitos às condições do beneficiário (de renda, situação familiar…). “É inaceitável que estejamos pagando funcionários para ir ao banheiro dos outros contar escovas de dentes a fim de garantir que os beneficiários da RSA não vivam em concubinato,9 quando tudo o que eles querem é matar a fome”, avalia Basquiat. O mesmo discurso é repetido por Koenig: “Temos de lutar contra a pobreza de maneira mais eficaz e menos paternalista, dando às pessoas o mínimo de que precisam, sem interferir em sua vida privada ou verificando seu apego ao valor do trabalho”. Além disso, a própria economia gerada pela incondicionalidade contribuiria para o financiamento da renda básica: Lefebvre destaca o custo que representam hoje “a produção de normas, o acompanhamento público, a verificação, a sanção”. E também o “círculo virtuoso” de economias que seria gerado pela medida: “Menos crime, menos gastos com a saúde, melhor nível de educação…”. Ao contrário de outras personalidades de direita que defendem a ideia, ele recomenda um montante situado em uma faixa alta, “entre 800 e 1.000 euros”.
Uma mistura de audácia e acanhamento
Devemos ao filósofo belga Philippe van Parijs a reativação do conceito na Europa, com o nome de “alocação universal”, no início dos anos 1980. Ex-membro em seu país do Partido Ecologista, ele acredita que dar a cada um a possibilidade de organizar a própria vida e o trabalho é algo que mexe tanto com os padrões de pensamento da direita como com os da esquerda. “Em um discurso para o Partido Liberal Flamengo”, conta, “perguntei: ‘Quem acha que a liberdade é um valor fundamental?’. Todos levantaram a mão. Então acrescentei: ‘E quem acha que ela deveria ser reservada apenas aos ricos…?’. Ao contrário, em um encontro com ativistas gregos, espanhóis e italianos do Syriza, Podemos e Rifondazione Comunista, em Bari, tive a oportunidade de perguntar se a esquerda não estava errada em acantonar-se na defesa do Estado e da igualdade e abandonar a liberdade à direita.”
Evidentemente, persistem diferenças fundamentais: Koenig e Basquiat, que desenvolveram um projeto comum,10 querem lutar contra a pobreza, mas não contra a desigualdade. Eles defendem um imposto negativo (benefício) de 450 euros por adulto e 225 euros por criança, financiado por um imposto de 23% sobre todos os rendimentos.11 “Isso quase não mudaria o atual equilíbrio da redistribuição na França”, explica Basquiat. “Os ricos receberiam um pouquinho menos, e os pobres, um pouquinho mais. Mas isso racionalizaria o sistema; acabaria com a estigmatização e o paternalismo; eliminaria os efeitos de retenção em rendimentos mínimos e no desemprego; e combateria de maneira eficaz a pobreza.” Eles baseiam-se em uma definição “absoluta”, e não “relativa”, de pobreza; para Koenig, esta última seria uma definição “invejosa”: “Você não deveria se importar que os outros fiquem ricos, se sente que vive bem”.
Quais outros argumentos justificariam a instauração da renda básica? Todos mencionam o número de empregos que vão desaparecer em razão da automação e da digitalização. Na Suíça, os autores da iniciativa “Por uma renda básica incondicional” marcharam pelas ruas vestidos como robôs, proclamando seu desejo de trabalhar no lugar dos seres humanos. Mas um relatório recente da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) ameniza as conclusões de estudos anteriores, que previam “desemprego tecnológico” maciço: ele estima que apenas 9% dos empregos “apresentam alto risco de automação”, advertindo, no entanto, que “os trabalhadores menos instruídos são os que correm mais riscos”.12
“Nove por cento já é uma enormidade”, comenta Hyafil. “Especialmente somado a nosso nível de desemprego atual! Todavia, eu não acredito nos discursos sobre o ‘fim do trabalho’. A transição ecológica, por exemplo, cria muitos empregos. Como disse o economista John Gadrey, menos crescimento não implica necessariamente menos emprego, pelo contrário! Mas devemos nos preocupar com sua qualidade, não com sua quantidade. E, mesmo com pleno emprego, ainda precisaríamos da renda básica para que cada um pudesse escolher seu trabalho, e não submeter-se a ele.” O panfleto do antropólogo norte-americano David Graeber, personalidade do movimento Occupy Wall Street, contra os bullshit jobs (“empregos de merda”, sem interesse nem utilidade social) teve grande ressonância.13 Outro defensor da renda básica, o ex-ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis considera essencial a possibilidade de recusar um emprego, “tanto para uma sociedade civilizada como para um mercado de trabalho que funcione bem”.14
Também se trata de dar segurança às trajetórias de vida diante da precarização generalizada, com o risco de endossar o desequilíbrio na distribuição da riqueza criada entre salários e lucros. Isso é flagrante quando Lefebvre cita o exemplo do Earned Income Tax Credit, por meio do qual, nos Estados Unidos, o Estado completa os rendimentos de alguns trabalhadores pobres. Outra armadilha: que a renda básica deixe livre o caminho para o desmantelamento do direito trabalhista e das conquistas salariais iniciado por aplicativos como o Uber.15 “Precisamos construir um novo compromisso social, mais adaptado à nossa época do que aquele herdado do pós-Segunda Guerra Mundial, sem, no entanto, que a renda básica se torne a muleta da uberização”, resume Batho. Mas como garantir isso?
Tudo depende do poder de negociação que o montante de renda garantida daria aos trabalhadores, bem como dos pagamentos e da redistribuição da riqueza operados por outros dispositivos. Sobre esses temas, o acanhamento de muitos defensores da renda básica contrasta com a ousadia da ideia que eles defendem. Van Parijs reivindica uma instauração gradual, começando com um pequeno montante; mas Mylondo retruca: “Nada garante que um pequeno montante vá ser elevado depois”. O MFRB louva os méritos emancipatórios da medida, a “mudança de paradigma” que ela traria; no entanto, aplaude inclusive os projetos que recomendam um montante baixo – em torno da atual RSA. Ele chegou a trabalhar com a conservadoríssima Christine Boutin, presidente do Partido Democrata Cristão francês, quando ela propôs uma renda básica de 400 euros. Uma posição coerente com o apolitismo reivindicado pelo movimento, mas inaceitável para Mylondo, que nunca aderiu a ela. Melhor “nada do que uma renda básica rebaixada”: “Não sou um defensor incondicional da renda incondicional”, diz. Morel Darleux também nega qualquer “fetichismo”.
Quanto ao financiamento, o argumento do “realismo” e do “pragmatismo” reflete certo fatalismo diante das relações de forças sociais e políticas. O MFRB participa da campanha “Quantitative Easing [Flexibilização Quantitativa] para o Povo”, a qual milita a favor de que o Banco Central Europeu (BCE) coloque sua iniciativa de criação monetária diretamente a serviço dos cidadãos, e não de bancos privados. Ele vê aí uma oportunidade de lançar as bases de uma renda universal europeia. Sem sucesso contra uma deflação que poderia ser devastadora, o BCE também não descarta a possibilidade de apelar à “moeda helicóptero”, despejada sobre todos para impulsionar a demanda. Mas o movimento mostra-se muito mais prudente no que concerne à desigualdade. Hyafil considera desnecessário “bater nos mais ricos”, sob pena de aumentar ainda mais a evasão fiscal, e reivindica uma abordagem “consensual”, “centrista”, que se preocupe em manter a união. “Após a Segunda Guerra Mundial, os patrões se mantiveram discretos, pois tinham colaborado com a ocupação alemã; não é o caso hoje!”, destaca Martine Alcorta, vice-presidente do EELV do Conselho Regional da Aquitânia, que está preparando uma experiência de renda básica. Basquiat acredita que, até que se consiga reunir uma maioria em torno da renda garantida de esquerda, serão necessárias “uma ou duas guerras”… Sobre a hipótese de haver, finalmente, uma luta eficaz contra a evasão fiscal,16 desejada por muitos defensores da medida, ele dá risada: “Se houvesse uma vontade real de acabar com ela, teríamos feito isso há muito tempo!”.
Como qualquer projeto progressista, a renda garantida na versão de esquerda enfrenta a falta de um poder em posição de colocá-la em prática. A isso se soma, à medida que o princípio se populariza, um risco crescente de que ele seja desviado. Embora a hipótese da renda básica ainda suscite, em geral, indiferença ou desaprovação, ela parece surgir para alguns como uma tábua de salvação conveniente com a aproximação das eleições – as parlamentares e a presidencial – de 2017, em um contexto de escassez de novas ideias e descrédito da ação política. Nesta primavera [no Hemisfério Norte], em plena batalha em torno do direito trabalhista, Guillaume Mathelier, prefeito socialista de Ambilly (Haute-Savoie) e autor de uma tese sobre a renda universal, indicou que o primeiro secretário do PS, Jean-Christophe Cambadélis, embora cético, o havia encarregado de “levantar a questão” dentro do partido. Já o primeiro-ministro Manuel Valls declarou no Facebook, em 19 de abril, que queria “abrir o caminho da renda universal”, antes de acrescentar, logo em seguida, que ela não seria um subsídio “pago a todos”, pois “isso seria caro e não faria nenhum sentido”. Em outras palavras, podemos ter renda universal – por que não? –, desde que não seja universal…
De qualquer forma, como podemos esperar assentar a legitimidade de um direito à renda em uma sociedade estrangulada pela austeridade, atacada por discursos ferozes sobre o “assistencialismo” e na qual a visão do trabalho continua dominada, como diz Mathelier, “pelo mito do pecado original”? Morel Darleux prefere desconfiar de qualquer precipitação: “Se a questão é exigir medidas urgentes, prefiro insistir na revalorização do salário mínimo ou na regularização dos precários do serviço público. Nesses campos, trata-se de reconquista, enquanto a renda básica é algo a conquistar. Os debates que ela desperta me parecem, aliás, tão interessantes quanto sua aplicação. A viagem é tão importante como o destino! Basta mencionar a ideia para despertar discussões acaloradas sobre o que queremos fazer de nossa vida, sobre a organização da sociedade…”. Ter tempo para conduzir a batalha cultural e política: talvez seja essa a melhor maneira de garantir que, uma vez colocado na sala, o gatinho não se torne um tigre pronto para devorar seus proprietários.
BOX
Na Suíça, um debate sem precedentes
Um homem obeso, vestindo uma camiseta regata toda manchada, largado em um sofá diante de fatias de pizza e latas de cerveja. Na Suíça, o cartaz dos adversários da iniciativa popular “Por uma renda básica incondicional” mostra a vivacidade dos fantasmas associados à ociosidade dos pobres. Ironicamente, o personagem ostenta uma coroa de papelão dourado. Ela remete à distribuição de coroas de papelão nas estações de trem, organizada pelos autores da iniciativa, que a utilizaram como um símbolo do poder que, a seu ver, a renda básica poderia dar a cada um sobre a própria vida. No dia 7 de junho, sua utopia foi rejeitada por quase 77% da população (com uma participação de 46,4%), mas encontrou mais apoio (cerca de 35%) na Basileia, em Genebra e no Jura. Alguns bairros de Zurique e Genebra disseram “sim”.
O texto apresentado aos eleitores não especificava o montante nem a forma de financiamento. Dizia apenas que a renda básica, paga a todos os cidadãos, independentemente de seu trabalho remunerado, iria “permitir a toda a população levar uma vida digna e participar da vida pública”. Desde o início da campanha, no entanto, seus autores falavam em 2.500 francos suíços (R$ 8.400) por adulto e 625 francos por criança – soma apenas ligeiramente acima da linha de pobreza (2.200 francos), em um país onde o custo de vida é muito elevado. Ela poderia custear a vida de um estudante que mora em uma república de uma cidadezinha, mas com certeza não seria suficiente “para uma pessoa sozinha e doente vivendo em Zurique ou Genebra”, afirma Benito Perez, corredator do jornal de esquerda Le Courrier. As duas cidades citadas estão entre as cinco mais caras do mundo, segundo a classificação de 2016 da Economist Intelligence Unit. Além disso, o seguro-saúde, inteiramente privado1 (os trabalhadores só contribuem para o desemprego e a aposentadoria), pode sozinho afundar o orçamento.
A iniciativa foi lançada em 2012, na Suíça germânica, após o sucesso do filme de Enno Schmidt e Daniel Hani, A renda básica. Um impulso cultural, transmitido pela internet.2 “A precarização geral observada na vizinha Alemanha após a reforma Hartz IV, em 2005, também teve um papel importante”, diz Julien Dubouchet Corthay, membro da seção suíça da Basic Income Earth Network (Bien). O Conselho Federal, que representa o governo suíço, pronunciou-se contrário, mencionando seu custo e o perigo para a economia. Os Verdes foram o único partido a apoiar o texto. A autonomia deixada às seções cantonais, no entanto, permitiu que algumas apoiassem o “sim”. Foi o caso principalmente dos partidos de esquerda de Genebra, dos socialistas aos trotskistas.
A campanha foi realizada com estrondo. Ao apresentar o texto em 5 de outubro de 2013, depois de colher as 100 mil assinaturas necessárias para submetê-lo à população, seus autores jogaram sobre a Praça Federal, em Berna, 8 milhões de cédulas amarelas de 5 centavos, uma por habitante do país. Em 14 de maio de 2016, repetiram a dose, montando em Genebra um cartaz de 8 mil metros quadrados, no qual figurava “a maior pergunta do mundo” – “O que você faria se sua renda estivesse garantida?” – e o qual entrou para o Guinness Book.
“Francamente, o que é mais cafona que o Guinness Book?”, lamenta Dubouchet Corthay, embora constate que essas ações espetaculares tenham chamado atenção. Autor de uma tese em Ciência Econômica sobre a renda básica, defendida em 2000, e militante do Partido Socialista, ele observa os novos convertidos com uma mistura de espanto e interesse. “Eles não têm cultura política; muitos são abstencionistas e até partidários de teorias da conspiração. Mas os partidos de esquerda que procuram em vão ampliar sua base para projetos anticapitalistas não podem simplesmente deixar para lá o entusiasmo e a capacidade de mobilização que eles revelam.”
Ele é cético quanto às formas de financiamento mencionadas, como uma microtaxa sobre todas as transações financeiras – de pagamentos com cartão de crédito ao trading de alta frequência. Somente a ideia de uma retenção na fonte sobre a produção das empresas, antes da divisão entre salário e lucro, recebe suas graças. Ele lamenta o acanhamento dos autores da iniciativa, que têm se esforçado em tranquilizar, em vez de assumir seu caráter conflituoso. “Neste país, a maioria das pessoas que votam é mais velha e se preocupa facilmente”, justifica Ralph Kundig, presidente da Bien-Suíça. “Uma campanha radical não traria melhores resultados.”
No entanto, a renda básica não teve chance. Com exceção da iniciativa “Contra as remunerações abusivas”, aprovada com quase 68% em 2013, os suíços têm se mostrado socialmente pouco progressistas nos últimos anos. Eles rejeitaram, com 66,5%, em 2012, a passagem de quatro para seis semanas de férias pagas por ano; depois, com 73%, em 2014, a instauração de um salário mínimo bruto de 4 mil francos (R$ 13.700). Perez observa “uma identificação dos interesses do país aos interesses do patronato”, assim como a convicção de que precisamos de “ainda mais liberalismo para salvar a exceção suíça, sob pena de sermos engolidos pela crise europeia e o fim do sigilo bancário”.
A campanha, porém, foi animada. Multiplicaram-se artigos, debates, reuniões públicas e programas de televisão a respeito. O site do jornal Le Temps quebrou todos os recordes de público quando convidou seus leitores a interagir com Kundig, no dia 25 de maio. Como a iniciativa “Por uma Suíça sem Exército”, em 1989 (recusada por 64% dos votantes), a da renda básica pretendia antes de mais nada abrir um debate público – e isso ela conseguiu muito bem. (M.C.)