A resistência feminista frente às mudanças climáticas
Falar de mudanças climáticas em um mundo crescentemente negacionista não é fácil, ainda mais ao relacionar a questão com gênero. Lideranças feministas despontam no Brasil e no mundo, trazendo resistência, movimento e ação no campo das mudanças climáticas, apesar do momento desafiador para avanços no campo da política institucional. Confira mais um artigo do especial Feminismos transnacionais
Quando falamos de mudanças climáticas estamos nos referindo ao processo de agravamento do efeito estufa pela emissão de gases resultantes de atividades desenvolvidas pelo homem. O efeito estufa, em si, é um fenômeno natural de retenção de calor do planeta, sem o qual a vida na Terra não seria possível. Entretanto, o acúmulo dos Gases de Efeito Estufa (GEE) na atmosfera desde a Revolução Industrial, e a aceleração deste processo nas últimas décadas, tem elevado a temperatura média do planeta.
O atual regime internacional sobre mudanças climáticas – a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (em inglês, UNFCCC) – busca estabelecer ações conjuntas entre os países membros para evitar ainda mais acúmulo de GEE que levaria a ultrapassar o limite de aquecimento de até 1,5°C informado pela ciência. Ultrapassando este limite, o aquecimento atuaria ainda mais fortemente na alteração dos ciclos naturais da terra, levando, por exemplo, a eventos extremos (e.g. secas, tempestades etc.) mais intensos.
Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, em inglês, IPCC, as mudanças climáticas são, hoje, uma realidade. Já se observa que a atmosfera e o oceano aqueceram, que a quantidade de gelo e neve diminuíram, o nível do mar e as concentrações de GEE aumentaram. Fala-se de 40% a mais de gases desde a era pré-industrial pela queima de combustíveis fósseis e uso da terra. Ademais, já estamos no marco de aumento de 0,85°C da média global da temperatura da superfície da terra e do mar (considerando o período de 1880-2012). Isto implica que em alguns lugares da Terra a discussão não será apenas a da prevenção ou mitigação, mas de adaptação às mudanças climáticas.
O IPCC faz projeções de quais seriam os impactos na Terra dado cenários de aquecimento mais ou menos rigorosos baseados na maior ou menor intensidade de redução de emissões pelos países. Estas projeções subsidiam os diálogos no âmbito da UNFCCC sobre a necessidade de combate às mudanças climáticas, informando o grau de ambição das medidas a serem adotadas pelos países – metas de redução de emissões, de modo que enfrentemos o cenário mais ameno possível em termos de aquecimento no final do século.
O regime existe há algumas décadas e apresentou avanços no discurso e na ação, mas, a verdade é que, não está em seu melhor momento. A virada da década seria um momento de renovação de compromissos e aumento da ambição dos países, mas a realidade tem sido outra. O Climate Tracker mostra que a soma dos compromissos dos países em termos de redução de emissões nos levaria a um aquecimento de 2,8°C até o final do século.
Ademais, os EUA, o segundo maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, deixou o Acordo de Paris – principal acordo do regime, acabando por enfraquecê-lo. Somado a isto, a crise da Covid-19 gera ainda mais incerteza considerando o previsível enfoque na retomada do crescimento econômico dos países na pós pandemia, muito provavelmente em bases não sustentáveis.
Ao fim e ao cabo, ao falar do combate às mudanças climáticas, estamos falando da realização de escolhas que impactem o modelo de desenvolvimento dos países, em escala global, para que emitam menos GEE, sendo compatíveis com os limites do planeta. Dado que as estruturas dos modelos de desenvolvimento já existentes atuam de modo opressor e excludente sobre as mulheres, pergunta-se: como se dá esta relação no âmbito das mudanças climáticas?
Mudanças climáticas e gênero
Já é comprovado que as populações empobrecidas e em situação de vulnerabilidade são as que tendem a ser mais vulneráveis e, portanto, a sofrer mais com o impacto das mudanças climáticas. Entre estas, são vários os exemplos que apontam como mulheres e homens sofrem de modo diferenciado a tal fenômeno.
No caso de uma grande seca agravada pelas mudanças climáticas, as mulheres, devido ao papel (atribuído) de cuidadoras primárias e provedoras de alimentos, tendem a se deslocar mais, tornando-as mais vulneráveis a abusos e outros tipos de violência.
Quando um furacão ou tsunami acontecem (também agravados pelas mudanças climáticas), mulheres levam mais tempo em evacuações de emergência, novamente, devido ao seu papel atribuído de cuidadoras, buscando filhos e parceiros, levando a uma menor taxa de sobrevivência. Ademais, por terem suas redes de sobrevivência destroçadas pelo evento, tendem a ficar mais vulneráveis e necessitar tanto de ajuda imediata focada quanto para a recuperação das condições de moradia, emprego etc.
Neste sentido, é possível afirmar que as mulheres tendem a estar mais vulneráveis em um contexto de enfrentamento das mudanças climáticas, mas isto não quer dizer que elas sejam inerentemente vulneráveis. Esta condição vem permeada pela intersecção com outros fatores como idade, etnia, status socioeconômico e impedimentos (de natureza física, mental ou sensorial) que são únicos dadas as dinâmicas locais de desigualdade.
As mudanças climáticas afetam então, dado o contexto, as mulheres de modo diferenciado. Isto leva, naturalmente, a questionar quem vem tomando decisões e que decisões vêm sendo tomadas sobre os impactos das mudanças climáticas; e, ademais, quem, se beneficia das ações tomadas para combater mudanças climáticas.
Abre-se, então, o campo de questionamento da participação e liderança das mulheres nas discussões sobre mudanças climáticas.
Nas Nações Unidas, a representação de mulheres nas delegações da Convenção do Clima estaria abaixo dos 30% e entre 12 e 15% nos cargos de liderança. Seja nas grandes instituições ou nas comunidades, regras e costumes de base patriarcal tendem a excluir as mulheres destes espaços de tomada de decisão, formulação e implementação de políticas. Ou seja, a causa raiz da baixa participação das mulheres nas discussões climáticas é a mesma que em outros campos, apesar da compreensão que a participação equitativa de homens e mulheres leva a maior efetividade dos resultados da ação climática.
O empoderamento das mulheres, em especial, em situação de vulnerabilidade, mas também com um alto potencial de contribuir para as soluções, como de grupos étnicos e com baixo poder socioeconômico, consiste em um pilar fundamental do combate às mudanças climáticas.
O que vem sendo feito?
No âmbito do regime global sobre mudanças climáticas, os avanços podem ser considerados tímidos.
Note-se que a aquilo que é acordado no nível internacional tende a desencadear um processo de implementação nos estados nacionais. Ou seja, as implicações da tranversalização do debate de gênero no regime internacional de mudanças climáticas, pode ter efeitos estruturantes e relevantes na implementação de políticas nacionais que, por conseguinte, se implementadas, teriam impactos nos territórios.
Somente em 2009, igualdade e equidade de gênero foram abordadas diretamente no contexto das negociações climáticas. Na sequência, em 2014, lançou-se o Programa de Ação de Lima. Apesar do seu enfoque discursivo em “balanço” e não igualdade de gênero, tinha como objetivo aumentar a participação das mulheres nas negociações, bem como aplicar a perspectiva de gênero à formulação de políticas climáticas internacionais.
Em 2017, veio o anúncio do Plano de Ação de Gênero (GAP, em inglês) da UNFCCC com o objetivo pragmático de implementar e monitorar decisões e mandatos relacionados a agenda de gênero no âmbito do regime. Em 2019, este foi atualizado e expandido para mais 5 anos, destacando o reconhecimento dos desafios enfrentados por povos indígena como parte do GAP.
A falta de dotação orçamentária para a condução das atividades previstas, de caminhos para acesso a espaços de negociação chave e instrumentos de monitoramento acaba tornando o esforço mais de efeito político dentro do regime do que uma real proposta de transformação do mesmo à partir da perspectiva de gênero.
No Brasil, os principais instrumentos de implementação das metas adotadas no âmbito da UNFCCC – a Política Nacional de Mudanças Climática e Planos de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia e do Cerrado – não possuem nenhuma linguagem voltada à gênero. Ocasionalmente, esta aparece (na terceira fase do PPCDAm e no Plano de Adaptação), mas não configura nem o primeiro passo de uma abordagem de transversalização da questão de gênero e mudanças climáticas no Brasil.
Neste momento, o cenário é ainda mais crítico tanto para agenda climática quanto para agenda de gênero para avanços na política nacional em conexão com o regime internacional.
O governo Federal tem dado inúmeros sinais políticos de relativização da importância do fenômeno das mudanças climáticas, incluindo questionamento do fenômeno em si. E, ademais, tomado várias decisões – como eliminação das estruturas que compunham a governança climática para a tomada de decisões, eliminação de Departamentos dedicados na estrutura do governo, redução de recursos dedicados, passar a oportunidade de sediar a Conferência das Partes (COP) da Convenção, ameaça de saída do Acordo de Paris – que afetam a capacidade de atuar no nível institucional com o enfrentamento das mudanças climáticas.
Na agenda de gênero não é diferente. Ainda durante as eleições, o movimento #elenão tomou as ruas no Brasil para manifestar a não aderência aos posicionamentos do hoje Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, nas questões de gênero e outras. As resistências, e por vezes, contraposições, vindas do governo Federal, fazem supor que avanços na esfera institucional são muito difíceis. O mesmo se aplicaria para agenda de gênero e mudanças climáticas.
Onde está a esperança?
A esperança está na sociedade civil organizada e nos movimentos sociais que, apesar das evidentes dificuldades de posicionamento e encaminhamento político no atual contexto, não cessam de olhar para possibilidades de cooperações entre os movimentos para fortalecer a luta. E o mesmo acontece entre os movimentos pela ação climática e pela igualdade de gênero.
Neste momento, enquanto você lê este artigo, as conexões e sinergias estão sendo fortalecidas e tecidas. Um movimento apoiando o outro e encontrando as interseccionalidades antes não vislumbradas. Observando o que já “estava lá” como a liderança das mulheres indígenas na luta pela terra e na manutenção do conhecimento tradicional que mantêm vivas nossas florestas, como a Amazônica e a vegetação nativa do Cerrado. Mas, também, construindo o entendimento dessas interconexões entre mudança climática, gênero e luta pela terra, como é o caso do movimento quilombola no Brasil.
Indo além, a esperança, para mim, pessoalmente, está na atuação de lideranças mulheres que vão tecendo e inspirando algo ainda maior: a resistência. Esta que atua nas rachaduras e vai questionando o ideal heteronormativo de liderança.
Deixo com vocês 3 inspirações de lideranças femininas maravilhosas, cada uma na sua força, na sua verdade, a partir do seu lugar de fala, inspirando a mudança no mundo.
Sônia Guajajara, do território indígena Araribóia no Maranhão, é Coordenadora Executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) que luta pela defesa e proteção dos territórios indígenas que tanto contribuem para a regulação climática. Foi a primeira indígena a compor chapa para concorrer à Presidência em 2018 e, em 2019, encabeçou a “Jornada Sangue Indígena: nenhuma gota a mais”.
Dona Dijé, mulher, negra, quilombola, maranhense, nos deixou em 2018 e teve sua trajetória marcada por muita luta. Foi Conselheira Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e fundadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) que representa mais de 300 mil mulheres que vivem do extrativismo do babaçu em processo harmonioso com a manutenção do Cerrado brasileiro.
Greta Thunberg, jovem, sueca, ativista climática, inspirou a eclosão do movimento global de greves pelo clima, conhecido como Fridays for Future, porque começou a fazer greves às sextas feiras em frente do Parlamento Sueco demandando ação climática. Ela cunhou a expressão agora amplamente utilizada mundo afora da “crise climática” (e não mais mudança climática). O movimento, que denuncia a urgência e a falta de ação dos governos e outros atores, se espalhou pelo mundo e continua ativo. No Brasil, o Jovens pelo Clima e o Fridays for Future Brasil surgiram como expressão local do movimento iniciado pela jovem ativista.
Seja no nível político, global ou nacional, e na manutenção dos seus modos de vida que constroem o mundo sustentável de que falamos, esta resistência faz enxergar que por um lado não estamos parados, há movimento – movimento este que empodera mulheres nos cantos deste Brasil. Por outro, que o que estamos passando é uma onda e, que vai passar. E, em alguns anos, teremos uma nova chance de reestabelecer o diálogo como um pilar fundamental da nossa democracia, aventando a possibilidade de avançarmos em larga escala no nível institucional o debate sobre mudanças climáticas e gênero no Brasil.
Raíssa Ferreira é ambientalista e internacionalista. Especialista em desenvolvimento sustentável e Mestre em Análise Política Internacional pela PUC-Rio.