A revolta dos “marginalizados”
Que pontos em comum pode haver entre a revolta zapatista no México e a islâmica no Egito? Em ambos os casos, grupos marginalizados, empobrecidos pelas políticas do Estado e apoiados num discurso religioso, estão engajados num combate desigual, que consideram justoDan Tschirqi
À primeira vista, a rebelião zapatista no México e a islâmica do Jama’a Islamiya parecem muito diferentes. Uma, depois do começo sangrento, parece ter se transformado, em certa medida, num happening internacional da esquerda, enquanto a outra se desintegrou face ao poder de fogo adversário, dos cadáveres mutilados e da comoção popular diante dos atentados sangrentos.
No entanto, os zapatistas e o Jama’a islamiya são reflexo de uma mesma realidade: em determinadas condições bem definidas, os excluídos se sublevam, independentemente de suas chances de êxito. As duas revoltas são características de grupos marginalizados pela comunidade nacional; por outro lado, nenhuma das duas representa uma ameaça militar ao poder. Ambas as rebeliões são, portanto, duplamente marginalizadas.
Manifestações do mesmo tipo
Mas entre as duas existem elos ainda mais estreitos. A despeito de suas diferenças, são duas manifestações do mesmo tipo de dinâmica e podem ser definidas como conflitos internos violentos e marginais. Os rumos práticos e éticas dessa perspectiva remetem às decisões tomadas em nome do desenvolvimento econômico por governos supostamente preocupados com o futuro de seus concidadãos.
“Eles podem acabar com Chus, acabar com nossos chefes” diz o homem. “Mas ganhariam mais acabando com a miséria que vai continuar gerando gente como nós.” A poucos metros dali, diante do fogo, sua mulher prepara o jantar, enquanto as crianças brincam com um cachorrinho no chão de terra batida. O homem fala pausadamente, lembrando sempre a necessidade de conquistar o “respeito” e a “dignidade”. Ele também é decididamente otimista — não quanto a seu próprio futuro mas talvez quanto ao dos filhos ou dos netos.
O homem que fala é Chus, e está num cenário que resume toda a miséria a que ele se refere: um choupana sombria no vale chuvoso coberto pela floresta que desce das alturas de Chiapas até a selva Lacandona. Estamos no verão de 1995, dezoito meses depois de o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) irromper na cena política mexicana tomando várias cidades em Chiapas central, antes de recuar para o terreno acidentado dos vales periféricos. Os zapatistas permanecerão lá, na chamada “zona de conflito”, tentando ganhar no plano político o que não têm a menor esperança “racional” de ganhar pela força das armas. Mas Chus, e como ele muitos outros, não se deixa impressionar pela pura “racionalidade”. Seu otimismo a longo prazo é tão inquebrantável quanto sua convicção de que, se a via política é um beco sem saída, a estrada do futuro há de ser aberta pela força das armas.
Uma garantia para a democracia
Em última análise, é o contexto político nacional em que eclode o movimento zapatista que impedirá o governo mexicano de enviar tropas para esmagar os, então, não mais de mil combatentes mal-armados. Porque a principal demanda dos zapatistas, a de uma reforma do sistema político que garanta a democracia, logo encontra forte eco nessa sociedade que deixou de confiar nas instituições e nos seus governantes. O mesmo pode-se dizer do libelo que eles constróem contra uma classe dirigente e um governo egoístas, que viraram as costas para as verdadeiras prioridades nacionais e culturais do México.
Embora a maioria dos ativistas seja originária de uma população marginalizada — os maias de Chiapas — e os direitos dos indígenas ocupem um lugar importante nas reivindicações zapatistas, os objetivos declarados e as justificações da rebelião fundam-se exclusivamente em valores de ordem nacional. Com suas modestas reformas eleitorais suspensas, e, levando em conta a simpatia dos partidos de oposição e da sociedade civil pelos zapatistas, o governo preferiu a negociação ao confronto militar.
Um poder local clientelista
Mas, antes do cessar-fogo, os combates farão entre 1000 e 1500 mortos, números que demonstram amplamente a dedicação dos rebeldes à sua causa. O monsenhor Samuel Ruiz, bispo de San Cristóbal de las Casas, não precisará contar os cadáveres para enxergar isso com clareza. Aceito como mediador pelas duas partes, seus trinta anos de sacerdócio na região conferem-lhe não só uma profunda compreensão do destino de suas ovelhas indígenas, mas também uma responsabilidade considerável no aumento do ativismo revolucionário em Chiapas. Monsenhor Ruiz fará o possível para encontrar uma saída política, mas renunciará em 1998, em protesto contra o que considerou como táticas protelatórias do governo. Resta saber se algum dia haverá uma solução pacífica para o conflito.
Nesse mesmo verão em que Chus se mostra tão otimista quanto à resolução final de uma rebelião sem esperança, os membros do Jama’a Islamiya recebem, em julgamento no Cairo, sua sentença de morte com gritos de alegria e fé na vitória final de sua causa. Ao contrário da luta dos zapatistas, a dos egípcios não será aplacada por nenhum tipo de negociação. A carnificina durará mais e custará mais caro ao Egito que ao México.
O início da campanha do Jama’a, no começo dos anos 90, não é marcado por nenhum acontecimento especial. Mas, desde 1992, é evidente que o Cairo terá de se haver com uma ofensiva longa e determinada que tem suas origens no sul do país, no Alto Egito. Graças a redes formadas, ao longo dos anos, nos bairros pobres do Cairo e de outras cidades, o Jama’a conseguirá estender sua luta, principalmente terrorista, por grande parte do país. Mas o foco principal continua sendo o Alto Egito.
Violência divide o movimento
Livre dos entraves políticos enfrentados pelos dirigentes mexicanos, o governo autoritário do Egito não hesita em golpear o Jama’a Islamiya. Medidas de exceção draconianas, prisões em massa, pena de morte, e — desde outubro de 1992 — corte marcial para os militantes suspeitos. Em 1996, o Cairo toma, claramente, a dianteira. Os ataques não cessam completamente, mas tornam-se raros o bastante para permitir que os turistas comecem a voltar. Apesar de vários choques esporádicos no Alto Egito, alguns dirigentes propõem um cessar-fogo na primavera de 1996, oferta refeita um ano depois, quando seis importantes líderes do Jama’a apelam para o fim da violência. Rejeitadas pelo governo, essas iniciativas são vistas como sinal de divisão nas fileiras da organização, o que se confirmará em novembro de 1997, quando cerca de sessenta turistas serão massacrados em Luxor…
Com o atentado de Luxor, o Jama’a tocou o fundo do poço. A imensa maioria dos egípcios ficou chocada com a carnificina perpetrada em nome do Islã. A divisão no interior do movimento é patente, seus principais líderes só aparentemente estão unidos na condenação de uma “violação” que será mais prejudicial ao Jama’a que ao governo. Enquanto as autoridades continuam a prender, a julgar e até a executar membros da organização, a ação desta se reduz a alguns ataques relativamente menores. Em 1999, o turismo, embora não totalmente refeito do massacre de Luxor, esboça uma recuperação. Em todo caso, por ora, o Jama’a parece empenhado em manter um perfil baixo. Resta saber se se trata mesmo do abandono da violência ou de uma calmaria passageira.
Podemos estabelecer, entre essas duas insurreições, vários e surpreendentes paralelos que permitem compreender as condições em que as estratégias neoliberais levam uma população normalmente pacífica a se expor a um confronto armado com forças infinitamente superiores.
Em ambos os casos, o principal foco da rebelião encontra-se numa região historicamente marginalizada em relação aos centros da vida política, econômica, social e cultural do país. Tanto em Chiapas como no Alto Egito, as grandes distâncias e um terreno difícil determinaram um modo de vida (e uma visão das coisas) muito diferente do predominante no conjunto da sociedade. Lá e aqui, a atitude mais comum quanto a essas regiões marginalizadas e seus habitantes tornou-se, de certa forma, negativa: no México, desde muito, os chiapanecos são vistos como limitados, lerdos e um tanto estranhos; no Egito, os habitantes do Alto Egito — os Sai’dis — são igualmente ridicularizados. O que não impede nem uns nem outros de se considerarem membros plenos da nação.
Hierarquias de exclusão
Outras semelhanças dizem respeito às estruturas locais. Em Chiapas, o topo da hierarquia social é ocupado pelos “ladinos” (brancos), que reivindicam para si uma herança exclusivamente européia. Abaixo vêm os mestiços e mais abaixo, bem na base da pirâmide, os indígenas. No Alto Egito, predominantemente muçulmano, a hierarquia funda-se nas divisões tribais. No topo estão os Ashrafs, que se pretendem descendentes do profeta Maomé, seguidos dos árabes, cuja herança remontaria às tribos vindas da Arábia. Bem embaixo estão os felás, cuja posição inferior tem por origem a crença de que são descendentes dos habitantes pré-islâmicos, convertidos ao Islã. [1]
Outro paralelo se esboça na natureza das relações entre o Estado central moderno e as duas regiões em questão, dominadas pelo clientelismo. Os vínculos entre os poderosos locais e os governos centrais são, há muito tempo, a via principal por onde passa a autoridade do Estado. A revolução mexicana dos anos 20 não alterou fundamentalmente o estado de coisas em Chiapas. Quando o Partido Revolucionário Institucional (PRI) emerge como principal força política — posição que manterá por mais de seis décadas —, o esquema clientelista garantirá a lealdade da elite ladina de Chiapas. A experiência nasseriana (1952-1970) não se sairá melhor na erradicação do clientelismo, característica essencial do aparelho político-administrativo do Alto Egito. Embora a reforma agrária beneficie amplamente os felás, os grandes proprietários tradicionais usarão dos mais diversos estratagemas para conservar a maior parte de seus bens. E o Cairo continuará recrutando pessoal de origem ashraf ou árabe para a polícia e as forças de segurança.
O que é a “tradição”?
O que aproxima particularmente Chiapas do Alto Egito é a miséria de suas populações. Os imensos recursos de Chiapas em nada beneficiaram a maioria de seus habitantes, sendo um dos estados mais pobres do México. A população, basicamente rural e formada sobretudo por indígenas e camponeses mestiços, sempre sofreu de um alto índice de natalidade e com as tensões decorrentes da escassez de terras cultiváveis. As doenças e outras provações ligadas à pobreza grassam por toda parte, mas principalmente nas Terras Altas, onde a rebelião zapatista eclodiu. O Alto Egito também possui imensos recursos agrícolas, mas é, há muito tempo, a região mais pobre do país. Em meados dos anos 90, contava com 72% dos pobres do Egito. Os indicadores demográficos, de benefícios sociais, saúde e qualidade de vida revelam a mesma disparidade entre o Alto Egito e o resto do país. E, obviamente, são os estratos mais baixos da população que pagam o tributo mais pesado.
Os indígenas de Chiapas e os felás do Alto Egito são freqüentemente descritos como grupos “tradicionais”. Mas o uso desse rótulo requer certo cuidado. Se por “tradicional” se entende que certas práticas ou costumes históricos conservam seu valor e continuam a ser observados, ele é exato. Mas se for sinônimo de estagnação e resistência à mudança, os esforços de ambas as populações, ao longo de décadas, para mudar seu destino estão aí para desmenti-lo.
Nos anos 60, um grande número de indígenas miseráveis de Chiapas partem como pioneiros para o coração da selva, na esperança de construir uma colônia, uma vida melhor num ambiente hostil. Ao longo dos anos 70, quando as Terras Altas tornaram-se alvo privilegiado dos programas governamentais que visavam integrar as comunidades indígenas ao desenvolvimento nacional, os índios afluem aos milhares para trabalhar na construção civil e em outros setores. Ao mesmo tempo, milhares de outros dirigem-se à cidade em busca de oportunidades econômicas.
Já os felás do Alto Egito respondem com entusiasmo às promessas populistas de Gamal Abdel Nasser, que não só despertam a esperança de uma melhora geral e de uma distribuição mais justa de renda, mas que se concretizam efetivamente. A reforma agrária, ainda que menos ampla que a prometida, de fato beneficia os felás. E a abertura das universidades gratuitas nos anos 60 logo faz surgir um grande contingente de estudantes, de jovens que se atiram ao que lhes aparece uma forma de escapar da miséria e dos entraves de uma estrutura social rígida. Com o governo empenhado em empregar todos os universitários diplomados, a burocracia nacional garante um cargo e certo prestígio aos filhos de camponeses que não tinham a menor chance de adquirir terras. Para os que não podem ambicionar um curso superior, a esperança de se livrar das dificuldades encontra-se no boom do petróleo dos anos 70. Estes partem rumo à Arábia Saudita e outros países do Golfo Pérsico, dispostos a voltar com dinheiro suficiente para comprar terras, montar uma pequena empresa ou construir uma casa. O duplo objetivo dos felás, assim como o dos índios de Chiapas, é a segurança econômica e a mobilidade social.
Religião, rebelião e neoliberalismo
Infelizmente, o paralelismo entre os dois grupos não termina aí. Ambos conhecerão um crescente desencanto. Devido à corrupção no governo, a selva Lacandona deixará de ser uma nova fronteira. Os anos 80 verão a derrocada econômica do México: o projeto de integração das comunidades indígenas ao esforço de desenvolvimento nacional será varrido pela tormenta. Os constantes cortes nos investimentos federais contribuirão para o enfraquecimento ou a extinção das organizações governamentais de ajuda aos camponeses e agricultores indígenas.
As expectativas da população faminta do Alto Egito também serão brutalmente frustradas. A gratuidade do ensino público superior e a contratação de funcionários perdem suas proporções quando a burocracia atinge tal grau que suscita, ora a criação de cargos absurdos, ora anos de espera para quem deseja um bom emprego. A partir de agora, os formados não têm mais o direito automático a um cargo. Além disso, um felá, quer volte com suas economias de um trabalho temporário no Golfo, quer saia do meio universitário, logo descobre que a rígida estrutura social do Alto Egito oferece pouca chance de mobilidade sócio-econômica. [2] Além do mais, na medida em que o boom reflui, as oportunidades para a mão-de-obra imigrante se reduzem.
O impacto do neoliberalismo
Outro ponto em comum entre os índios de Chiapas e os felás do Alto Egito é o impacto que têm sobre as duas comunidades as estratégias econômicas neoliberais adotadas pelo México e pelo Cairo. O Egito esboça essa virada no decorrer dos anos 70, quando o presidente Anuar Sadat começa a abandonar a política de Nasser. A reorientação que dá à economia leva-o a buscar o apoio das elites rurais tradicionais. O aumento do poder dos latifundiários do Alto Egito — que resulta, muitas vezes, na expulsão dos camponeses manu militari das terras em litígio — põe em risco não só as aspirações dos felás mas também suas parcas conquistas. Durante os anos 80, o presidente Hosni Mubarak, timidamente no início, mas depois com redobrada energia, dará continuidade à política de liberalização, sobretudo com a redução dos subsídios à agricultura e ao consumo e a liberação dos preços.
Quem mais sofre com isso são os pobres. O Alto Egito continuou sendo a região mais esquecida do país, ao passo que, em meados dos anos 80, as economias petrolíferas do Oriente-Médio, atingidas pela recessão, passam a restringir a entrada de trabalhadores estrangeiros. A crise e a guerra do Golfo de 1990-1991 provocam o retorno maciço dos emigrantes egípcios ao país e uma grande incerteza quanto ao próprio futuro da emigração. Mas os camponeses vêem seus piores temores confirmados em 1992, quando o governo põe em votação, ao final de um debate iniciado em 1985, uma lei que — após uma trégua de cinco anos — terá como conseqüência a anulação das disposições que regem o arrendamento de terras. Naturalmente o texto é aprovado em nome da racionalização do setor agrícola. Mais conhecida como “lei para expulsar os camponeses de suas terras”, ela abalará profundamente o que as camadas rurais mais pobres consideram “uma base importante da ordem moral e política”. [3]
A guinada neoliberal no México começa nos anos 80 e terá um impacto semelhante sobre os indígenas de Chiapas. A redução de subsídios agrícolas — e especialmente o corte da ajuda à produção do café — prejudicam a economia camponesa. A situação dos pequenos agricultores se agrava com a liberalização da política comercial, que leva a uma invasão de produtos agrícolas estrangeiros mais baratos. Ao mesmo tempo, o fim dos grandes programas do governo e a privatização de importantes complexos agrícolas extinguem muitos empregos rurais. Ironicamente, o balanço global dos setores rurais de Chiapas mostra-se florescente ao longo de toda a década de 80, graças aos altos lucros acumulados pelos latifundiários, que se aproveitaram da disposição do governo de privilegiar a indústria agro-alimentícia. A virada decisiva virá em 1992, quando a alteração do artigo 27 da Constituição acaba definitivamente com a reforma agrária e autoriza a venda das terras comunais distribuídas no passado.
As relações entre religião, rebelião e neoliberalismo oferecem outro ponto de convergência entre a sublevação de Chiapas e a do Alto Egito. O catolicismo, na primeira, e o islamismo, na segunda, sempre estiveram no coração da cultura das duas regiões. Cá e lá, as crenças religiosas dominantes são fruto sincrético de crenças ortodoxas e populares, com influências pré-colombianas ou pré-islâmicas. Um dos traços mais importantes desse fenômeno é que o cotidiano religioso, tanto em Chiapas como no Alto Egito, está permeado pela fé no milagroso ou no mágico — pela crença na possibilidade de manipulação sobrenatural da realidade, impossível por qualquer outro meio. E isso vale sobretudo para as populações marginalizadas.
Tradicionalmente, as instituições religiosas das duas regiões militaram a favor do status quo, mas a religião serviu também de fermento para as rebeliões, e os líderes puderam transformar orientações outrora conservadoras numa militância revolucionária de coloração religiosa.
Esperanças traídas
Essa mudança tem início, entre os marginalizados de Chiapas, nos anos 60, quando Samuel Ruiz é nomeado bispo de San Cristóbal. O establishment “ladino” pensa estar tratando com um conservador, mas logo perderá as ilusões. “Era um homem muito tranqüilo”, explica um “ladino” eminente, “e jantava ou tomava o café da manhã nas melhores casas de San Cristóbal… Depois, pouco a pouco, foi mudando”. Essa mudança se explica pela adesão de monsenhor Ruiz à teologia da libertação. [4] Denunciando a divisão de classes na sociedade chiapaneca, ele apóia organizações camponesas independentes que lutam pela melhoria das condições de vida no campo. A partir de 1970, os esforços de Ruiz serão secundados por jovens mexicanos da extrema esquerda refugiados em Chiapas para fugir das forças de segurança. Esses homens e mulheres, aos quais, em 1980, se juntará uma nova geração de jovens de esquerda, mobilizam os camponeses em torno de objetivos afins aos da Igreja de monsenhor Ruiz. Sua abordagem mais militante levará, em 1983, à criação do EZLN.
A teologia da libertação, à qual o bispo adere, era compatível com o marxismo dos recém-chegados e durante muitos anos os dois grupos construirão juntos organizações camponesas imbricadas umas às outras. Ao longo de toda a década de 80, as elites de Chiapas usarão os aparelhos de Estado locais e nacionais para intimidar (e, muitas vezes, liquidar) os militantes camponeses. Isso aumenta as tensões entre militantes religiosos e marxistas no interior do nascente movimento camponês, com os últimos ganhando cada vez mais simpatizantes da luta armada. No início dos anos 90, as duas correntes se separam. Contudo, o EZLN continua contando com a simpatia dos partidários não violentos de monsenhor Ruiz e os membros do EZLN continuam a ter pelo bispo um misto de respeito e temor.
Embora a passagem ao ativismo religioso no Alto Egito não seja dominada por nenhuma figura carismática, ela se dará conforme um esquema quase idêntico. O contato com a Arábia Saudita e com os outros países do Golfo teve um papel importante para os trabalhadores que emigraram. Durante os anos 70, proliferam as mesquitas privadas, muitas vezes financiadas por felás que voltaram do estrangeiro onde puderam usufruir de um bem-estar social que a estrutura do poder no Alto Egito continua a lhes negar. Serão criados, assim, centros de onde partem cada vez mais vozes de um islamismo militante, socialmente consciente e contestador da visão conservadora da religião dominante entre os ashrafs e os árabes.
A expansão do Jama’s
O Jama’a Islamiya expandiu-se principalmente entre os estudantes da Universidade de Assiout, no início dos anos 70, e tem ligações com organizações islâmicas militantes nas diversas regiões do país. Entretanto, Mamoun Fandy, “um dos primeiros filhos de agricultores a se beneficiar das reformas de ensino nasserianas” e colega de turma de muitos dos fundadores da organização, lembra que o Jama’a Islamiya se diferencia de outros grupos islâmicos do Egito por seu caráter explicitamente “alto-egípcio” e felá. [5] Embora o Jama’a considere o regime do Cairo responsável pela traição aos valores islâmicos e veja a solução num Estado islâmico sujeito à “charia”, está igualmente decidido a mudar a relação de forças no Alto Egito. Quando, nos anos 90, o Jama’a Islamiya lança sua grande ofensiva, o tempo que seus militantes passaram mobilizando as massas se revelará proveitoso. Embora os combatentes militantes não passem de alguns milhares, a simpatia que despertam no campo e nos bairros pobres das cidades do Alto Egito — equivalente à despertada pelos zapatistas de Chiapas — lhes permitirá manter-se em franca atividade por cinco anos.
O relativamente recente abandono da violência por parte do Jama’a indica, sem dúvida, o reconhecimento da necessidade de buscar seus objetivos pela via política. Se assim for, também estaria repetindo, algum tempo depois, o reconhecimento dos zapatistas dessa mesma realidade. Mas o que teria levado os dois grupos a, num primeiro momento, empreender um combate tão desigual? A resposta a essa pergunta pode, sem dúvida, ser encontrada numa mescla de fatores estruturais e culturais. Ela vem simultaneamente da história da marginalização econômica, política e social dos índios de Chiapas e dos felás do Alto Egito; do fato de esses dois grupos sociais terem sido relegados ao status de “quarto-mundo” nas hierarquias locais; do aumento das esperanças, logo frustradas, de uma vida melhor; e do efeito catalisador das políticas liberais adotadas pelo México e pelo Egito. E ainda da dinâmica que modificou a visão religiosa desses dois grupos e, naturalmente, da natureza inicial dessa visão.
Decepção e mudanças funestas
Os índios de Chiapas e os felás do Alto Egito, esses dois povos “tradicionais”, receberam com entusiasmo a perspectiva de mudança oferecida pelas políticas nacionalistas dos anos 60. Viveram primeiro a decepção e depois as mudanças funestas decorrentes do impacto da globalização neoliberal. Ao longo dos anos 80, a própria noção de mudança — formulada em instâncias que escapam ao controle e até à compreensão dos marginalizados — tornou-se sinônimo de uma terrível e multiforme ameaça.
Em tais circunstâncias, o poder mobilizador da religião não deveria causar surpresa. O principal atrativo de sua mensagem é oferecer aos que a ela aderem uma promessa crível de mudança e, ao mesmo tempo, de resistência à mudança. Isso explica a importância dada, tanto pelos zapatistas como pelo Jama’a Islamiya, às reformas sócio-econômicas e, ao mesmo tempo, à preservação da integridade cultural.
O caráter sincrético do ambiente religioso pode tornar crível tal promessa. Uma cultura caracterizada por uma religião popular, em que magia e milagres fazem parte do cotidiano, favorece o surgimento — mesmo nas pessoas mais expostas a outros pontos de vista — de formas de pensamento facilmente compatíveis com a noção de que uma causa justa deve um dia triunfar. Se assim for, é provável que, à medida que a globalização neoliberal se estenda aos confins da Terra, continue a encontrar grupos que teimarão em desafiar os poderes constituídos, apesar da desproporção das forças em jogo.
Dois países em números
|México| Egito|
|Superfície (mil km2) |1.958 |1.001|
|População(milhões)| 96| 61|
|Produto interno bruto (PIB, em bilhões de dólares) |380,9| 79,2|
|PIB/habitantes (dólares)| 3.970| 1.290|
|Crescimento anual do PIB/habitantes (19