A revolta por liberdade e emprego
A revolução acaba de decapitar o Estado e a Tunísia vive dias caóticos. Livres da censura, as organizações políticas subitamente se veem projetadas à frente do país. Formados pela escola da clandestinidade e marcados por sectarismos, esses grupos são obrigados a entrar em acordo enquanto as ruas seguem ocupadasOlivier Piot
em dúvida, o gesto trágico de Mohamed Bouazizi foi o estopim da onda de protestos na Tunísia. Mas o ato do rapaz de 26 anos, que ateou fogo em si mesmo em 17 de dezembro último, em Sidi Bouzid (centro do país), não é um caso isolado. Em 2010, outros dois jovens imolaram-se da mesma maneira: um deles em Monastir (cidade da costa), em 3 de março, e o outro em Metlaoui (sudoeste do país), em 20 de novembro.
Um estudo realizado pelo setor de queimaduras graves de um hospital da capital, Túnis, divulgado por um site na internet em dezembro de 2010, estima que “o suicídio por fogo” representa “15,1% dos casos atendidos no hospital”. Os autores do relatório consideram essa prática “de extraordinária violência” e avaliam que se trata de “uma resposta dos jovens a outra violência, cuja causa reside em nosso país. O estudo remonta a 1998, o que insere o caso de Bouazizi em uma longa série de atos desesperados. Contudo, é o gesto desse jovem que ficará gravado na memória coletiva da Tunísia. “Esse rapaz era parte de uma velha tribo que vive na porção sul do país. Seu nome é derivado da palavra aziz, que significa ‘orgulho’”, explica Mohamed Khemili, 60 anos, docente aposentado, membro da Anistia Internacional e militante da oposição tunisiana. Herança da longa história da Tunísia, o poder das tribos forjou uma trama de relações sociais em numerosas regiões, muito antes da presença francesa no país (1881-1956). O peso desse emaranhado social certamente influenciou os acontecimentos em Sidi Bouzid, Kasserine e Thala. De forma análoga, nas regiões com forte tradição no comércio, como o Norte (Bizerte) e o Sahel (Sfax e Sousse), os nomes de família e os protocolos sociais conformaram o papel primordial das antigas corporações profissionais.
“Mohamed perdeu sua ferramenta de trabalho [seu carrinho de vendedor ambulante], confiscada por uma mulher, agente municipal. Para nossa cultura, isso é inadmissível!”, afirma Khemili. Tratava-se de um atentado contra a honra dele, o que causou indignação coletiva. Desde 19 de dezembro, enfrentamentos opõem jovens e policiais em Sidi Bouzid. Os protestos e conflitos se espalharam pelas pequenas cidades vizinhas: Menzel, Bouzaienne, Meknassy, Regueb, Mazzouna, Jabbes. Desde então, deflagrou-se uma série de acontecimentos. Enfrentamentos, violências policiais, prisões massivas, manifestações de apoio, novos enfrentamentos. Os conflitos chegaram a tal ponto que o presidente Zine Al-Abidine Ben Ali decidiu intervir pessoalmente pela televisão. O primeiro discurso, veiculado em 28 de dezembro, foi acompanhado por milhões de tunisianos, mas passou despercebido pela mídia internacional – com exceção da rede árabe Al-Jazeera, que desde 24 de dezembro tem dado ampla cobertura aos acontecimentos.
No canal TV7, com ar confiante e traje sóbrio, Ben Ali denunciou, então, a “exploração [excessiva] de casos isolados” e falou de uma “instrumentalização política” antes de ser fotografado ao lado de Bouazizi, naquele momento hospitalizado. Essas imagens de propaganda surtiram efeito reverso e se transformaram nos primeiros estopins da revolta. Em 4 de janeiro de 2011, Bouazizi não resistiu aos ferimentos e, no dia seguinte, foi enterrado em Grannebour, com a presença de 6 mil manifestantes furiosos. Em 6 de janeiro, em Metlaoui, um homem de 30 anos se imolou em protesto.
Metlaoui é uma pequena cidade mineira de 50 mil habitantes, assolada pelo desemprego, que atinge 40% da população ativa, de acordo com a seção local do sindicato único, a União Geral Tunisiana do Trabalho (UGTT), sobretudo em razão das reestruturações massivas realizadas na bacia mineira de fosfato de Gafsa. Os efetivos foram reduzidos em 75% nos últimos 25 anos. Uma cidade arruinada, que há 15 anos amarga a evasão de imigrantes clandestinos em direção à Itália. Enquanto isso, Kasserine e Thale estão em chamas: a indignação local cedeu lugar a uma revolta social que se espalha por regiões abandonadas, do Centro ao Oeste. Na internet, aparece o famoso “Erro 404” da censura. O governo ainda considera possível ganhar a batalha da informação.
No Sudoeste do país, a reputada cidade turística de Tozeur ainda se mantém apartada dos conflitos. No que se refere à televisão, o canal France 24 decidiu seguir o exemplo da Al-Jazeera. Da filial parisiense, a apresentadora comenta em árabe as “violências” que assolam o país, enquanto Youssef, dono de um pequeno restaurante em Tozeur, acompanha as imagens e explica: “O problema é o desemprego de jovens diplomados. Meus dois irmãos mais novos possuem, respectivamente, graduação em informática e mestrado em gestão. O primeiro é garçom em um hotel de Sousse, e o outro fica o dia todo em casa, está sem trabalho. Isso não pode continuar assim!”.
O desemprego de jovens bem formados. Essa é a primeira acusação que explode com a faísca de Sidi Bouzid. Certamente, Bouazizi não tinha ensino superior. Contudo, num país em que algumas regiões ainda possuem 50% de iletrados, o baccalauréat [equivalente ao diploma do Ensino Médio] é sagrado. Ascensão social pela educação e sucesso profissional por esforço e merecimento: essa crença, sacralizada desde a era do presidente Habib Bourguiba (1956-1987), fabricou batalhões de jovens diplomados. “Entre 2008 e 2010, cerca de 75 mil estudantes por ano com diploma de ensino superior chegaram ao mercado de trabalho, enquanto na década de 1980 esse número era de apenas 8 mil”, argumenta Mahmoud Ben Romdhane, professor de economia da Universidade de Túnis e autor de um livro sobre o tema. Celebrada nos relatórios oficiais como prova de dinamismo, essa tendência à escolarização apenas postergou o problema estrutural da falta de postos de trabalho.
Entre 2000 e 2008, a economia manteve taxas de crescimento anual de 4% a 5%. O turismo, que corresponde a 8% do Produto Interno Bruto (PIB) – dos quais 10% vão para a agricultura, 54% para o setor de serviços e 35% para a indústria –, confere à Tunísia a imagem de prosperidade. Essa “boa saúde” do país, no entanto, mascara disparidades importantes. De acordo com um estudo recente, o desemprego da população ativa entre 15 e 29 anos atingia a cifra de 31,2% em 2008, ano em que os jovens diplomados e sem trabalho somavam 22% (contra 14% da média nacional). Cerca de três quartos dos desempregados (72%) têm menos de 30 anos. Para alguns especialistas, a economia precisaria crescer 8% ao ano para gerar trabalho para todos eles.
Assoladas pelo desemprego e acossadas pela desilusão, as cidades de Thala, Sbeitla, Sidi Bouzid, Regueb, Douz e Kairouan foram as primeiras a protestar. Em 7 de janeiro o exército foi enviado a Kasserine. O balanço oficial afirma que os conflitos resultaram em 14 mortes, embora a Federação Internacional dos Direitos do Homem (FIDH) fale em mais de 20. Imagens difundidas via redes sociais demonstram a violência policial empregada na repressão dos protestos. Também circula um rumor: o de que “snipers” – atiradores de elite – estariam estrategicamente localizados no alto de prédios, acompanhados de oficiais munidos de binóculos, para selecionar os alvos entre os jovens manifestantes.
A repressão brutal nesses episódios deflagrou a segunda onda de levantes nos dias 7 e 8 de janeiro – reação de milhares de tunisianos à sorte reservada aos jovens revoltados de bairros pobres. Somou-se ao cenário o antigo rancor em relação à polícia tunisiana (cerca de 150 mil agentes), famosa há décadas pela arrogância, corrupção e desprezo pela população. “Desta vez, a revolta ganha contornos políticos bem marcados. A Tunísia inteira vai se rebelar”, diz Khemili.
Mas quem são os atores dessa rebelião generalizada? Os jovens, principalmente, já que 40% da população tem menos de 25 anos. Os diplomados desempregados, certamente, mas também todos aqueles que não chegaram até o Ensino Médio – dos 4 milhões de jovens com menos de 25 anos, apenas 500 mil estão na escola. Essa juventude conhece apenas Ben Ali e seu regime sem liberdade. Adepta das tecnologias da informação – mais de um tunisiano a cada três utiliza a internet –, “essa geração cavou seu espaço de liberdade e contestação na rede mundial de computadores, por meio de blogs, Twitter e Facebook”, comenta Tawfik Thameur Driss, professor de filosofia em Sfax.
As manifestações, contudo, estão repletas de adultos, pais e avós igualmente atingidos pelo desemprego e, sobretudo, furiosos pelas privações dos últimos anos para que seus filhos frequentassem a escola. Levada a cabo pelas camadas populares em um primeiro momento, a revolta agora se espalha por outros setores sociais, em particular entre as classes médias formadas pelo crescimento econômico no início dos anos de 1990: professores, advogados, comerciantes, economistas, médicos. Essa nova base social corresponde à extensão geográfica dos protestos.
Túnis, Sousse, Sfax, Gafsa, Gabes, Bizerte: foi a vez das maiores cidades do país entrarem em ebulição, principalmente a partir da vitoriosa greve geral do dia 12 de janeiro, em Sfax. A burguesia liberal, mercantil e financeira não ficou atrás. Tradicionalmente associada ao regime Bourguiba e depois a Ben Ali no início de seu reinado, não gostou nada de ser descartada das redes mafiosas constituídas pela família do último governante e do clã dos Trabelsi – de nome Leïla, a segunda esposa de Ben Ali desde 1992. “No dia 8 de janeiro, uma delegação de homens de negócios de Sousse – a base territorial de Ben Ali e, antes dele, de Bourguiba – se dirigiu ao palácio presidencial de Cathage para intimar o presidente a entregar o poder a eles”, conta Khemili.
No dia 10 de janeiro pela manhã, “Ben Ali ainda não estava pessoalmente visado, mas o tom subiu. As reivindicações sociais e populares foram apoiadas por advogados e professores, duas categorias desprezadas pelo regime e diretamente em contato com as dificuldades da população. Aumentou a denúncia da repressão, mas uma questão permanece sem resposta: qual a direção política desse movimento? Até agora, parece não haver nenhuma”, questiona Ridha Radaoui, advogado e secretário geral da Anistia Internacional na Tunísia.
Quem são os atores políticos capazes de direcionar o movimento? Em seu célebre discurso de posse, no dia 7 de novembro de 1987, ovacionado por milhões de tunisianos, Ben Ali exaltava a “maturidade” do país para a “nova democracia”, fundada com base no “multipartidarismo e na pluralidade das organizações de massa”. No entanto, após uma “primavera” de alguns meses, o novo governante amordaçou a vida social e política.
Ao instituir a Agrupação Constitucional Democrática (RDC) – herdeira do grande Partido Neo-Destour criado por Habib Bourguiba em 1934 e rebatizado, em 1964, de Partido Socialista Destouriano (PSD) –, Ben Ali forjou um multipartidarismo de fachada (apelidado de “Decoração” pelos tunisianos), constituído por grupos menores chamados de “oposição legal”. Alguns, como o Movimento dos Democratas Socialistas (MDS) ou o Movimento Ettadjiid (“A Renovação”), contam com deputados no Parlamento. Outros, como o Partido Democrático Progressista (PDP), boicotam a “farsa eleitoral”.
No segundo escalão da política tunisiana, gravita uma miríade de organizações identificadas como “oposição ilegal”. O sindicalismo é monopolizado pela UGTT, enquanto o movimento estudantil – ativo e organizado nas décadas de 1970 e 1980 em torno da União Geral dos Estudantes Tunisianos (UGET) – permanece “preso” na clandestinidade há muitos anos.
Outro ator importante desse jogo político é a sociedade civil, com sua rede de contestação (rádios, grupos musicais, agremiações) e associações de defesa dos direitos humanos. Algumas se declaram “apolíticas”, como a Anistia Internacional, mas outras foram criadas por antigos quadros da oposição a Bourguiba e depois a Ben Ali. É o caso,da Liga Tunisiana de Direitos do Homem (LTDH), a mais antiga associação pelos direitos humanos da África e do mundo árabe, fundada em 1976.
reputação positiva
Enfim, o exército. Criado em 1956 por Bourguiba com a regra absoluta de não ingerência nos “assuntos políticos”, esse modesto corpo militar conta com 30 mil soldados, dos quais 20 mil são da força terrestre. Contrariamente às forças policiais cujo número triplicou no reinado Ben Ali, essa força “republicana” se beneficia de uma reputação positiva junto à população. Uma lei de 1957 proibiu os militares de pertencer a grupos políticos, e nunca na história do país – inclusive em grandes levantes como o movimento estudantil (1972), a insurreição do pão (1984) ou a greve das minas (1984) – os soldados intervieram para reprimir. Essa imagem de neutralidade do exército foi glorificada pelo gesto de um de seus chefes, Rachid Ammar, destituído no dia 12 de janeiro por se recusar publicamente a “atentar contra o povo”.
Gafsa, manhã de 10 de janeiro. Na direção regional da UGTT, cerca de 30 militantes discutem acaloradamente. Desde o dia 6 de janeiro, tentam convencer a seção local a organizar um apoio ao movimento insurgente. Mas a direção nacional – situada em Gafsa e sob a liderança de Abassi Amara, secretário regional do sindicato, famoso por ser corrupto e aliado a Ben Ali – resiste. O mesmo ocorre nas regionais do sindicato em Sfax, Tozeur e Sousse.
Durante o dia, Ben Ali proferiu seu segundo discurso, fustigando os “terroristas” que “manipulam” a cólera social. Faz promessas e anuncia a criação de “300 mil novos empregos” até 2012, algo que não fazia desde 1990. Temeroso de um protesto estudantil organizado, Ben Ali decidiu fechar todos os estabelecimentos escolares do país. Algumas horas mais tarde, a UGTT finalmente reagiu: a direção nacional autorizou as seções regionais de Sfax, Kairouan e Tozeur a organizar uma greve geral para o dia seguinte, e no dia 14 de janeiro em Túnis. Nessa mesma noite, os primeiros levantes estouraram nos bairros populares (Ettadhamen e Mnihla) da capital.
A greve geral é um sucesso em Sfax, antiga cidade portuária e mercantil de 600 mil habitantes, rica e próspera, dominada por uma burguesia financeira e por uma importante classe média. Em Sousse, cidade cara ao turismo, agentes do hospital Farhat Hached organizaram uma grande marcha de protesto. Se juntaram a eles assalariados do setor hoteleiro, que com a crise de 2008 e 2009 sofreram a precarização do trabalho e dos contratos. Na véspera, policiais haviam interditado o acesso de feridos ao hospital.
Ben Ali sente mais uma vez a virada do jogo. No dia 13 de janeiro, faz um terceiro discurso em rede nacional. Em tom subitamente humilde, fala de “liberdade de imprensa” e dos “direitos dos partidos de oposição”, destitui o ministro do Interior e diz que não se apresentará nas eleições de 2014. Tarde demais, pois a contestação política já havia ganhado contornos de revolução. Uma terceira onda de revolta, até então contida, explode e revela a hostilidade com a máfia dos Trabelsi.
Antes conhecidas apenas por intelectuais e militantes políticos, as infâmias desse clã passaram a alimentar as discussões em todos os lares. Monopólios de empresas em programas de privatização (entre 1995 e 2005), propriedades de meios de comunicação e bens imóveis (palácios), concessões à indústria automotiva, supermercados, bancos, companhias aéreas, corporações de telecomunicação: durante 15 anos, os parentes da senhora Trabelsi se aproveitaram de todos os setores da economia em benefício próprio.
No dia 14 de janeiro, o mais improvável acontece: Ben Ali foge do país. A revolução acaba de decapitar o Estado e a Tunísia vive dias caóticos. Livres da censura e da opressão, as organizações políticas subitamente se veem projetadas à frente do país. Formados pela escola da clandestinidade e marcados por sectarismos, esses grupos são obrigados a entrar em acordo, pois as ruas seguem ocupadas.
Olivier Piot é jornalista.