A Revolução, ah vai dar certo!*
Ao fazerem filmes sobre a Revolução, os cineastas se proíbem de defender uma ou outra causa, ou no máximo apoiam a causa do povo, sem que essa escolha se manifeste de outra maneira a não ser nas intenções.
Uma estranha maldição parece atingir os que se arriscam a realizar um filme sobre a Revolução Francesa, como mostra o mais recente Un peuple et son roi [Um povo e seu rei], de Pierre Schoeller, que estreou na França em 2018. Em nome de uma ilusão, a da objetividade histórica, e até mesmo da neutralidade científica, essa maldição se manifesta por uma ausência de posição assumida. Os cineastas têm a pretensão de estar acima da batalha. “É doce, quando o mar está alto e os ventos elevam as ondas, contemplar da margem o perigo e os esforços do outro: não que se sinta um prazer tão grande em ver sofrer o próximo, mas porque há uma doçura em ver males não vivenciados por si próprio”, escreveu Lucrécio em De la nature des choses [Sobre a natureza das coisas]. Ao fazerem filmes sobre a Revolução, os cineastas se proíbem de defender uma ou outra causa, ou no máximo apoiam a causa do povo, sem que essa escolha se manifeste de outra maneira a não ser nas intenções. Afinal de contas (maldição!), isso só acontece em filmes decepcionantes. Não filmes ruins, mas que decepcionam. Paradoxalmente, os filmes contrarrevolucionários, como Les Mariés de l’An II [no Brasil, Aventuras de um casal no Ano Dois], de Jean-Paul Rappeneau (1971), e L’Anglaise et le Duc [no Brasil, A inglesa e o duque], d’Éric Rohmer (2001), dão provas de uma maior fantasia visual e uma maior criação formal!
Quatro exemplos construídos com base no mesmo modelo: Un peuple et son roi, as duas partes do longa La Révolution française (1989) – Les Années lumière [Os anos luz], de Robert Enrico, e Les Années terribles [Os anos terríveis], de Richard Heffron – e La Marseillaise [no Brasil, A Marselhesa], de Jean Renoir (1938). Todos adotam uma apresentação em díptico: de um lado, o povo insurgente em Paris (mais raramente no interior); do outro, o rei, a rainha e sua corte em Versalhes ou no Palácio e no Jardim das Tulherias. Os dois adversários são colocados em pé de igualdade. Mas como comparar os ouros e as sedas dos soberanos reinantes com a infinita miséria do povo? Uma exceção de grande importância: 1789, de Ariane Mnouchkine (1974), que, rejeitando logo essa falsa equivalência, se desembaraça rapidamente do rei (um fantoche) para contar a história do ponto de vista de Marie, uma “miserável”, e instruir pela imagem o processo da monarquia. Uma escolha muito corajosa, pois evidentemente é mais vantajoso mostrar o rei, sua mulher, seu luxo, seus costumes, suas perucas, seus banquetes, seus amores, do que se interessar pela população parisiense aos trapos, morrendo de fome, ou pelos camponeses com os pés na lama.
Essa neutralidade de fachada – os dois campos são representados na tela – é um artifício pseudodemocrático, com um resultado às vezes paradoxal: o rei, a rainha, sua família e os nobres que os rodeiam acabam aparecendo como vítimas de um povo sanguinário, sem coração e sem alma. Com o fim conhecido (a guilhotina para o rei e a rainha), ele suscita uma empatia natural pelos condenados, e o público é implicitamente convidado a ter compaixão para com a sorte dos infelizes Capetos. Ninguém conseguiria ser indiferente à morte de um homem ou de uma mulher, qualquer que seja o crime, sobretudo se sua execução é mostrada como um espetáculo. E mais: desde o momento em que o rei aparece na tela – sendo sua morte certa –, inconscientemente o espectador se põe ao seu lado e até mesmo se coloca em seu lugar, com a esperança de que o implacável cenário histórico vá descarrilar para o happy end a que ele aspira. Encenando o processo de Maria Antonieta no teatro, em 1993, na peça Je m’appelais Marie-Antoinette [Eu me chamava Maria Antonieta], Robert Hossein corresponde a seus votos. Todas as noites ele fazia o público votar, e todas as noites, sem a menor dificuldade, a rainha era absolvida sob aplausos. Conscientemente, o teatro trai a Revolução, assim como o cinema o faz inconscientemente, mostrando um Luís XVI que vai ao martírio e um povo com as mãos manchadas de sangue.
O rei e os seus se beneficiam da imagem do privilégio da emoção. Uma enorme vantagem. Mas não é só isso. Na tela, a palavra está com o rei, a rainha, os ministros, os cortesãos; com o povo estão os gritos, as palavras de ordem, as vociferações, os cantos de vitória. Grita-se muito nos filmes sobre a Revolução, canta-se La Marseillaise, dança-se, mas parece que os cineastas só têm uma ideia vaga da maneira como as mulheres e os homens do povo conversam, do que dizem uns para os outros, do que pensam, a não ser de forma declamatória, para exigir a liberdade, a igualdade, a fraternidade. Um povo sem identidade.
Por outro lado, os cenários não evitam duas armadilhas: o diálogo informativo em que, para garantir que sejam reconhecidos, nomeiam-se os personagens cada vez que eles aparecem – “Ah, Robespierre!”, “Diga-me, monsieur Danton” etc. –; e o diálogo concebido como um colar de pérolas no qual se enfiam todas as citações mais ou menos históricas conhecidas do público: “Não, sir, não é uma revolta, é uma revolução”, “Estamos aqui por vontade do povo e só sairemos pela força das baionetas” etc. Essas armadilhas, somadas, contribuem para tirar o caráter real da história. Ninguém – nem em 1789 nem atualmente – fala como os atores nos filmes sobre a Revolução. O que nos mostram é um espetáculo de marionetes. Os personagens não são mais homens e mulheres de carne e osso, mas porta-vozes, animadas imagens sonoras de uma sessão de lanterna mágica.
Além dessas armadilhas facilmente discerníveis, existe uma terceira, tão importante quanto as outras: o desaparecimento da palavra do povo, que, conforme os filmes, oscila entre a proclamação entusiasmada, o slogan e a expressão de um bom senso básico, parisiense ou rural (em cem anos, como faremos para falar dos “coletes amarelos” de hoje?). Em 1938, o filme de Renoir – produzido pela Confederação Geral do Trabalho (CGT)! – não evita nenhuma dessas três armadilhas, ainda que, graças aos atores e particularmente a Julien Carette, ouvimos de vez em quando uma palavra que não é nem pomposa na citação nem artificialmente popular.
Os cineastas em busca da Revolução deveriam se lembrar das pinturas “com semelhança evitada” de Jean Dubuffet quando se dedicam a distribuir os papéis em função da suposta semelhança dos atores com seus modelos. Os personagens tornam-se arquétipos: Luís XVI, um bravo tipo superado pelos acontecimentos; Maria Antonieta, uma brincalhona vítima de sua juventude frívola; Danton, um bon-vivant sanguinário conduzido por suas paixões; Robespierre, um monstro frio governado apenas pela razão; Marat, um furioso delirante…
Jean Renoir, Robert Enrico, Richard Heffron, Pierre Schoeller não resistem à irresistível tentação cronológica. Eles escalam a história da Revolução data após data, acontecimento por acontecimento: a Tomada da Bastilha, os Estados Gerais, as mulheres conduzindo o rei a Paris, o massacre do Campo de Marte, a Constituinte etc. E seus filmes passam pela crônica, quando somente uma ação dramática deveria conduzir a narrativa. A escolha da crônica, a construção de personagens arquetípicos, o diálogo reduzido às citações, a ausência da palavra popular, a ilustração ocupando lugar de encarnação levam inexoravelmente a filmes de estilo clássico e até mesmo acadêmico. Livros de imagens piedosas.
O hiato é flagrante: é possível academicamente rodar um filme sobre a Revolução? Basta se perguntar cinematograficamente sobre a Revolução para responder “vai dar certo”, dispensando-se de colocar a questão da forma? Ora, justamente, é aí que não dá certo. Os cineastas soviéticos Serguei Eisenstein, Dziga Vertov, Vsevolod Pudovkin e Grigori Kozintsev sabiam a importância da forma para quem quer expressar o espírito de uma revolução, seja a de outubro de 1917 ou a de 1789. Abordá-la de modo clássico ou acadêmico é desmentir, de fato, qualquer perspectiva revolucionária. Parafraseando Robespierre, poderíamos interpelar os cineastas: “Vocês querem uma revolução sem revolução?”. Ken Loach, ao realizar Ventos da liberdade (2006), consagrado à guerra de independência irlandesa, esbarra na mesma intransponível contradição. Ao contrário, Peter Watkins, ao rodar La Commune (Paris, 1871) (2000) [filme inglês sobre a Comuna de Paris; no Brasil, manteve o título original em francês] num hangar em Bagnolet, sem se preocupar com a semelhança, refutando o chique burguês do mimetismo histórico, organizando o caos, alcançou algo de verdadeiro e profundo sobre os rebeldes de então… A própria forma de seu filme mostrou a Comuna, seu espírito, sua força, sua criatividade, como Mnouchkine conseguiu fazer pela via teatral com 1789, espetáculo que virou filme.
No entanto, não é preciso se desesperar com o cinema. O combate continua hoje, e muitos filmes sobre os anos revolucionários ainda devem ser feitos. Como dizia Saint-Just, “a Revolução deve se ater à perfeição da felicidade”; o cinema também.
*A expressão usada no título original – “ah ça ira!” – é o refrão de uma canção revolucionária francesa e o autor volta a utilizá-la em uma de suas críticas a filmes sobre revoluções.
**Gérard Mordillat é cineasta.