A semente de Marielle vai germinar até que amanhã seja outro dia
Comoção internacional gerada pela execução da quinta vereadora mais votada nas últimas eleições cariocas, assim como o seu assassinato, é fruto do programa completo que ela expressava em seu corpo e em sua luta contra o genocídio e a intervenção militar no Rio de Janeiro, pelos direitos de mulheres, negros, favelados, LGBTs e por um socialismo com liberdade
O assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol) gerou uma comoção sem fronteiras. Organizações de mulheres, movimentos negros, LGBTs, militantes pró-direitos humanos, partidos que reivindicam o legado de esquerda, artistas e pessoas que nunca militaram têm saído às ruas em dezenas de países cobrando resposta às perguntas “Quem matou Marielle?” e “Quem mandou matar Marielle?”. Em todas as manifestações há uma certeza: o Estado brasileiro tem nas mãos o sangue de Marielle e do motorista Anderson Gomes.
O julgamento poético – realizado no Largo do Paissandu, centro de São Paulo, no dia 25 de março – tomou emprestada uma das últimas denúncias feitas por Marielle e também teve este sentido. “Quantos mais negros e negras precisarão morrer para que essa guerra acabe?” é a grande questão que o Estado brasileiro está obrigado a responder. Mulheres negras, indígenas, brancas, militantes, ativistas e artistas engajados ou não se somaram à denúncia de que as balas que arrancaram Marielle de nós vêm exterminando o povo negro e indígena no Brasil desde a invasão portuguesa.
Transformando o luto em luta, busca-se numa nova forma de intervenção política – que reconhece o potencial da arte para as transformações – para reverenciar a ação militante que foi a razão de vida e morte daquela mulher que, depois de ser assassinada, vem se tornando um símbolo tão forte quanto violenta foi a sua execução. Ao reverenciá-la, não se poderia deixar esquecidas outras mulheres tombadas por agentes do Estado ou assassinos de mando. Porque assim era a Mari, uma militante da filosofia do Ubuntu que não cansava de repetir: “eu sou porque nós somos”.
A primeira execução política no RJ sob intervenção não foi um acaso
Após a enorme comoção que não podia ser escondida, governantes e grandes grupos de mídia – Organizações Globo à frente, como sempre – buscam “despolitizar” um crime político e apagar parte da história de vida e militância de Marielle contra o genocídio da população pobre e negra e contra a intervenção militar no Rio de Janeiro. Se toda morte violenta negra é uma morte política no país que desde os estertores da escravidão adotou como política de Estado o embranquecimento populacional pelo extermínio negro, mais ainda o é a execução de Marielle.
Ela foi “escolhida” como alvo do primeiro crime político no Rio sob intervenção militar porque seu corpo e sua militância representavam o “programa completo” – como referiu sua companheira de partido e ação parlamentar no Estado, irmã de raça e gênero, a também vereadora pelo Psol na cidade de Niterói, Talíria Petrone.
Marielle era expressão de tudo que a onda de fascismo que enfrentamos no país quer destruir simbólica e fisicamente: mulher, negra, favelada, bissexual, socialista, que rompeu a barreira masculina e branca dos espaços de poder e vocalizava a defesa dos interesses da população pobre, das mulheres e LGBTs, da juventude negra vítima do genocídio histórico e contra a intervenção militar no Rio. Um recado à militância, mas em particular à população igual a Marielle para que se resigne.
O assassinato de Mari é uma ação da contraofensiva à pujança adquirida nos últimos anos pelas mulheres negras brasileiras que ocuparam a capital federal aos milhares em 2015 na Marcha das Mulheres Negras. Uma reação brutal às vozes de milhares de negras e negros que não deixam mais o Brasil seguir com a fama da “democracia racial”, que se espelham no movimento Black Lives Matter e bradam que as vidas de cada um dos jovens pretos assassinados a cada 23 minutos no país importam. Uma mórbida mensagem à população que vem promovendo a maior Parada do Orgulho LGBT no mundo. Uma tentativa de frear a recuperação de sentido da mensagem socialista diante da falência do capitalismo como modo de produção que dê sentido à vida humana.
Não à toa aqueles que odeiam o que ela representava promovem ainda um segundo assassinato, pela via virtual. A tentativa de matar sua reputação por meio de uma campanha sórdida de mentiras espalhadas via web e aplicativos de conversa. Esses também serão derrotados, na luta política e judicial, porque Marielle era tão gigante que centenas de pessoas têm “printado” e recolhido mensagens de ódio contra ela para auxiliar na força tarefa que não deixará que seu nome seja enxovalhado.
A tentativa de despolitização desse crime nesta conjuntura é uma excrescência que visa usar a morte de Marielle para justificar a intervenção militar contra a qual ela lutou até morrer. Mas as centenas de milhares de Marielles que brotaram daquele fatídico 14 de março não vão permitir que essa distorção de consolide.
“Quiseram me enterrar. Mal sabiam eles que eu era semente”
O provérbio mexicano resume o crescimento exponencial da força de Marielle após sua morte. Ao invés de calar a vereadora e aqueles a quem ela representava tão bem, seus executores e mandantes fizeram soar milhões de vozes que exigem a responsabilização do Estado brasileiro.
Esse foi o sentido de realizar o julgamento poético do dia 25 de março. O ato resgatou a história de Marielle ao lado de outras onze mulheres assassinadas ao longo dos últimos anos por serem mulheres, negras, pobres, lutadoras sociais, insubmissas. E trazer junto com elas a ancestralidade das poetisas e escritoras lembradas no julgamento.
E para homenagear também Anderson Gomes, o trabalhador que atuava como motorista do carro onde Marielle viveu seus últimos minutos após sair de uma atividade que debatia a necessidade de ampliar a voz e a representação política de mulheres negras.
Por isso, no julgamento poético denunciamos o Estado brasileiro pelo sequestro e escravização de milhares de africanas e africanos; pela abolição inconclusa 130 anos depois; pela ditadura empresarial militar que perseguiu, sequestrou, torturou e matou; por ser o quinto país do mundo no ranking de assassinatos de mulheres e o que mais mata pessoas LGBTs. Denunciamos o Estado que se consolidou como o terceiro país com mais pessoas presas no mundo, a maioria delas vítima da “guerra às drogas” que é, na verdade, uma guerra contra pretos e pobres. Denunciamos o extermínio do povo preto promovido por esse Estado, e por ser o Brasil um dos quatro países onde mais se mata defensores de direitos humanos nas cidades e no campo. Denunciamos o governo e a classe dominante pelo golpe de 2016, que aprofundou a retirada de direitos dos trabalhadores brasileiros e ampliou a restrição das liberdades democráticas. Denunciamos esse Estado também pela intervenção militar no Rio de Janeiro, que vem intensificando a barbárie contra a população pobre e negra nas favelas e comunidades carentes. E denunciamos o Estado e sua elite branca pelo assassinato de Marielle e Anderson.
Passados vinte dias do crime quando fechamos este texto, a inércia do Estado em dar respostas efetivas sobre quem matou Marielle e Anderson segue e, como denunciou o jornal O Globo no dia 1º de abril, nem mesmo testemunhas que presenciaram a execução foram ouvidas. Mas nós reafirmamos que a vida de Marielle não terminou. Que esse episódio reforçou laços de reconhecimento e nos empurrou a seguir em um bloco fechado criando e recriando a infinitude de conexões que nos permitem seguir vivas e potentes no século XXI, em mais um século de anti-negritude no mundo. E não abrimos mão de seguir em uma mirada feminista, antirracista, anticapitalista e de respeito à diversidade sexual e de gênero.
*Luciana Araujo, Andreza Gemelgo, Paula Nunes, Camila Victor, Nathália Oliveira, Luka Franca, Laryssa Sampaio, Adriana Vasconcellos, Daniela Louzada e Amanda Gabriela Amparo são ativistas.