A separação dos poderes e a CPI da pandemia
A decisão do STF que determinou a instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) – criada para apurar a conduta do governo federal no enfrentamento da pandemia – garante precisamente a prevalência da separação dos poderes
O plenário do Supremo Tribunal Federal, no dia 14 de abril de 2021, confirmou a liminar concedida pelo ministro Luís Roberto Barroso para determinar ao Senado Federal a instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito, com o objetivo de investigar e apurar eventuais ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil. A decisão fundamentou-se no entendimento de que, preenchidos os requisitos constitucionais, não cabia a análise de conveniência política por parte da presidência da Casa Legislativa sobre instaurar ou não a CPI.
Desde a prolação da decisão liminar, o presidente Jair Bolsonaro vem acusando o ministro Barroso de fazer militância política e “politicalha”. Ao gerar eco dos seus apoiadores, foi trazida à tona retórica acerca de suposta interferência do Poder Judiciário no Poder Legislativo, emergindo debate quanto à imprescindibilidade do respeito constitucional à separação e independência entre os poderes.
A velha máxima democrática “todo poder emana do povo”, exposta no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, serve para compreender a legitimidade do Estado na criação das normas que regem a vida civil. Significa que os próprios cidadãos, por meio de representantes eleitos, são autores e destinatários do ordenamento jurídico.
A Constituição Federal de 1988, tendo preponderância hierárquica sobre toda legislação, formulou os princípios estruturantes do nosso sistema jurídico, submetendo igualmente todos os indivíduos às suas regras. Dessa forma, qualquer conflito posterior a sua promulgação é solucionado pela remissão necessária a essa estrutura normativa, como requisito para que se mantenha ordem e estabilidade no território nacional.
O princípio republicano é um elemento essencial da nossa Constituição Federal, que institui não só a forma de governo, como também a organização do Estado e o relacionamento deste com os cidadãos. A adoção da República, assim, evoca um vasto conjunto de conceitos intimamente relacionados entre si[1], dentre os quais a tripartição de funções.
As funções do Estado foram originariamente demarcadas pela obra O Espírito das Leis (1748) de Montesquieu. Estabelecendo-se uma divisão orgânica, o exercício da função executiva seria entregue ao Poder Executivo, da legislativa ao Poder Legislativo e da jurisdicional ao Poder Judiciário. A ideia era criar um sistema de compensações, evitando que uma só pessoa, ou um único órgão, concentrasse em suas mãos todo o poder do Estado. A divisão é imposta, portanto, em nome da liberdade e segurança individuais[2].
Dessa forma, dispõe o artigo 2º da Constituição Federal que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Essa separação indica que cada Poder exerce uma gama de atribuições específicas, que são estritamente demarcadas nas normas constitucionais.
Essa regra, entretanto, implica em algumas exceções, previstas justamente para viabilizar a ideia-fim do princípio. Isto é, na prática exige-se certa flexibilização tanto para que a tripartição de funções seja alcançada como para garantir a defesa da sociedade pela limitação de poder arbitrário. Assim, a interferência de um poder sobre o outro será admitida, em tese, para assegurar o pleno exercício das funções próprias, restabelecer a harmonia entre os poderes, impedir abusos e garantir liberdades.
Equilíbrio das relações
O chamado “sistema de freios e contrapesos” consiste no equilíbrio das relações entre os órgãos do Estado por meio de controles recíprocos. É caracterizado pelo fato de os poderes não exercerem de modo absolutamente exclusivo as suas funções típicas, remanescendo algumas atividades atípicas, também estipuladas na Lei Maior, para cada estrutura de poder.
As Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), nesse sentido, são organismos temporários constituídos isolada ou conjuntamente por ambas as Casas Legislativas, com poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos internos das respectivas casas, para averiguar possível prática de atos ilícitos cometidos no âmbito de qualquer dos três poderes da República.
De acordo com o artigo 58, parágrafo 3º, da Constituição Federal, as CPIs devem atender os seguintes requisitos: requerimento de um terço dos membros de cada Casa, ou de ambas, no caso de comissão conjunta; apuração de fato determinado e por prazo certo, pois a CPI não pode ultrapassar a legislatura, extinguindo-se com o término desta; e envio das conclusões ao Ministério Público, caso apurada alguma responsabilidade civil ou criminal.
Como se sabe, é função do Poder Judiciário julgar e aplicar a lei. Valendo-se da jurisdição, o Estado torna efetiva e concreta a tutela abstrata e genericamente prevista no ordenamento jurídico positivado[3]. No entanto, em decorrência da chamada inércia processual, nenhum juiz está autorizado a exercer jurisdição senão quando a parte ou o interessado a requerer (princípio ne procedat judex ex officio, consagrado desde o direito romano).
Assim sendo, ao analisar a decisão do plenário do STF, que determinou a instauração da CPI da pandemia, só seria plausível questionar a inobservância da separação dos poderes caso o Tribunal tivesse agido por espontânea convicção, emitindo decisão de ofício, fora do devido processo legal e sem ser invocado. Longe de ser o caso. A Suprema Corte foi mobilizada por diversos senadores que ingressaram com mandado de segurança, por meio do qual apontaram omissão do Presidente do Senado Federal em iniciar a CPI. Uma vez acionado, o Poder Judiciário não poderia se esquivar de decidir. Era obrigatória, portanto, a apreciação jurisdicional dos ministros, que detém dever inafastável de fazer valer a Constituição Federal no caso concreto.
Ao proferir a decisão, o STF não excedeu sua função jurisdicional, não ferindo a separação dos poderes. Pelo contrário, agiu desempenhando exatamente o controle constitucional que lhe é vital, uma vez que, presentes os requisitos mencionados, não poderia o presidente do Senado deixar de instalar a CPI por discricionariedade pessoal, em nada importando, ao cumprimento do ato, sua crença de que essa medida causaria tumulto político ou social.
Além disso, as CPIs são, essencialmente, instrumentos de fiscalização do Poder Legislativo que integram o sistema de freios e contrapesos. São, por isso, forma de garantir a separação e independência entre os Poderes da República. No caso, a CPI da pandemia justifica-se para controlar abusos e omissões eventualmente praticadas pelo Poder Executivo e examinar se as funções constitucionalmente definidas foram devidamente realizadas.
A função do Poder Executivo é executar as leis à busca dos objetivos constitucionais na proteção do cidadão brasileiro, com a implementação de políticas públicas e administração dos interesses do povo. A gestão do Governo Federal no enfrentamento da maior pandemia de todos os tempos a atingir o país, dirigida com negacionismo e ausência de políticas cientificamente direcionadas, já permitiu a morte de quase 400 mil pessoas. São sinais suficientes para questionar se houve – e em que grau – violação da função executiva, a admitir interferência dos demais poderes.
Como mencionado, os atos estatais só são tidos por válidos quando legitimados pela Constituição Federal, pois assim estariam de acordo com a soberania popular. O artigo 1º da Carta Magna estabelece a dignidade humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, assim como o artigo 5º garante a inviolabilidade do direito à vida e o artigo 6º garante o direito social à saúde.
A regulamentação do poder pelo direito não se restringe a uma subordinação do político ao jurídico, mas consiste na própria garantia de que os direitos constitucionais serão concretizados.
Portanto, pode-se dizer que a decisão do STF que determinou a instauração da CPI garante precisamente a prevalência da separação dos poderes, por se tratar da manutenção da ordem democrática pelo cumprimento da Constituição Federal, em razão do requerimento regularmente formulado pelos senadores da oposição, e, sobretudo, por garantir a atuação do Poder Legislativo na tentativa de conter abuso de poder eventualmente cometido pelo Poder Executivo.
O que fere a separação dos poderes não é a decisão do Supremo Tribunal Federal, nem a instauração da CPI pelo Senado Federal, ao contrário do que sustentam os apoiadores do governo Bolsonaro, mas sim a ameaça de desobediência e a tentativa de interferência no objeto da investigação a ser conduzida.
Em conversa divulgada pelo senador Jorge Kajuru (Cidadania-DF), o presidente Bolsonaro disse que “se não mudar o objeto da CPI, ela vai pra cima de mim”, numa manifesta tentativa de pressioná-lo a mudar o âmbito de atuação das investigações, para que não se concentrassem apenas nas omissões do governo federal e passassem a atingir também governadores e prefeitos, o que, às claras, diluiria seu resultado.
Além disso, o presidente Bolsonaro tem recentemente aumentado o tom das constantes ameaças que faz à democracia. Dirigindo-se aos ministros do STF, em vídeo com pretensa estética intimidadora, disse que “brevemente teremos um problema sério no Brasil”. A apoiadores, disse que está aguardando a população “dar uma sinalização” para “tomar providências” e, noutra oportunidade, anunciou em tom ditatorial que “só Deus me tira da cadeira presidencial, tirando a minha vida”.
Impossível não lembrar da infeliz previsão do marinheiro do Titanic, após ser questionado por uma passageira da primeira classe no porto inglês de Southampton, que afirmou: “Minha senhora, nem Deus poderia afundar esse navio”.
Dizer o óbvio parece indispensável nos dias de hoje: decisão judicial se critica e se recorre, mas se cumpre e ponto final. Da mesma forma, eventual decisão do Poder Legislativo, respaldada legalmente, deve ser cumprida. A prevalência do Direito é valor fundamental para a sobrevivência da democracia. A propósito, o artigo 4º da Lei nº 1.079/50 dispõe serem crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, especialmente contra o “livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados” e o artigo 12 tipifica crimes de responsabilidade contra o cumprimento das decisões judiciárias.
A teoria da separação dos poderes não é afrontada pela CPI, pois seu propósito é limitar o arbítrio estatal, para que a República seja mantida sob controle recíproco, garantindo o fortalecimento de todas as esferas do poder e evitando que este seja exercido de forma abusiva ou omissiva, para fortalecer, por fim, a própria sociedade civil, ao assegurar legitimidade material e formal à Constituição Federal que protege seus direitos.
Em suma, no momento atual, a prioridade do país é combater a pandemia e defender a democracia. A instalação da CPI atende aos dois reclamos.
Lilian Assumpção Santos é especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduada pela mesma instituição. Advogada Criminalista.
[1] ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. Malheiros Editora: São Paulo. Página 65.
[2] PIÇARRA, Nuno. A separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional. Coimbra Ed. Página 248.
[3] MARCATO, Antonio Carlos. Procedimentos especiais. Revista dos Tribunais. Página 4.