A serviço do pluralismo cultural
O melhor antídoto para o “choque das civilizações” é a aceitação do pluralismo cultural, em favor do qual as grandes vertentes linguísticas – arabofonia, francofonia, hispanofonia, lusofonia – devem desempenhar papel decisivo. A convenção da Unesco de 2005 é um primeiro passo nesse sentido
A guerra sempre representa uma derrota do pensamento. Se quisermos organizar as relações entre as diferentes sociedades e culturas por meio de estratégias que fujam da lógica dos conflitos de civilização, com o intuito de construir a paz, nada é mais urgente do que dimensionar a realidade atual. Quanto mais o político e o econômico se reduzem à regulação burocrática por meio de normas abstratas e de processos afastados dos cidadãos, maior a necessidade fundamental de se construir uma sociedade mais participativa e solidária. A busca de sentido é mais intensa e as construções identitárias se tornam mais importantes. As questões de identidade e de cultura e os interesses que elas envolvem estão no cerne da dinâmica mundial. Cabe ao político assumir esta dimensão, introduzindo as questões geoculturais na governança global, equiparando-as em importância com as questões geopolíticas e geoeconômicas.
A globalização não provoca apenas um aumento da circulação de mercadorias. Ela transforma a maneira com a qual nós representamos o mundo, as suas possibilidades, as fronteiras, o espaço, o tempo: ela estrutura as imaginações. Este é um processo ambivalente. Não há dúvida de que ele abre possibilidades inéditas de interações enriquecedoras entre as culturas, tornando-as mais presentes umas para as outras; ele também pode acentuar os riscos relacionados a intercâmbios que estariam desequilibrados de maneira estrutural. A esse respeito, a recente evolução dos meios de comunicação globais, que constituem o principal vetor da globalização dos fluxos culturais, comporta duas consequências de alcance considerável.
Em primeiro lugar, com os meios de comunicação, a lógica industrial que tende a se impor à cultura leva a um privilégio da rentabilidade, reduzindo a esfera cultural a um mercado aberto pela liberalização àqueles que já dispõem dos meios para explorá-lo. Os cinco ou seis grandes grupos de mídia que se constituíram no decorrer dos últimos anos detêm um poder determinante sobre grande parte do que se produz e é distribuído pelo mundo afora. Esta evolução causa preocupação nas sociedades cujas culturas não têm os meios para estarem presentes, não como objetos de curiosidade passageira, mas sim como atores dinâmicos nos circuitos de produção e de distribuição da esfera midiática globalizada. E que com isso se consideram desprovidas do fundamento e de um instrumento fundamental do seu desenvolvimento no contexto atual.
A industrialização da cultura comporta uma segunda consequência. Por meio das indústrias da informação e do entretenimento se desenvolvem, entre as sociedades e as culturas, interações cujo impacto tende a ser muito mais amplo que aquele das relações de vizinhança. Uma única indagação é suficiente para ilustrar o alcance desse fenômeno inédito na história da humanidade: de onde vêm hoje os heróis, os valores, os sonhos, a visão do mundo dos jovens: do contexto sociocultural local ou do modelo consumista veiculado pelas forças mercantis dos meios de comunicação globais? Vale questionar a coesão social das sociedades nas quais a imaginação dos jovens se constrói dentro do sonho de um modo de vida consumista que o planeta não poderia bancar sem explodir.
Toda sociedade dá valor à sua segurança física. Ela também quer que a sua cultura seja efetivamente conhecida e reconhecida pelas outras, atuando em pé de igualdade no plano da dignidade e, quando possível, no plano dos meios dos quais ela dispõe. A ameaça não é apenas a do darwinismo cultural, temido pelas sociedades cujas telas de cinema e de TV difundem menos de 10% de produções locais; ela pode manifestar-se também e inclusive nas sociedades desenvolvidas, através da espiral da ignorância do Outro, que alimenta o medo do qual se nutre o instinto de guerra. A segurança cultural não pode mais ser garantida trancando-se dentro de um espaço nacional, mesmo se a nação continua representando o lar central, próprio para “construir uma sociedade mais participativa e solidária”. Ela deve estar fundamentada no princípio de sociedades abertas, dentro de um quadro de interações capaz de garantir para as relações entre as sociedades e as culturas as condições aceitáveis de reciprocidade. As questões culturais não podem ser reduzidas ao seu aspecto industrial ou econômico; daqui para a frente, elas possuem uma dimensão global e estratégica que o político deve abordar como tal.
A cultura não é um “dado” da natureza, nem uma espécie de entidade coisificada que poderíamos proteger colocando-a numa embalagem fechada a vácuo; ela é o produto do espírito humano, de escolhas individuais e coletivas constantes. Ela se constrói constantemente na interação que diferencia, e ao mesmo tempo cria as condições do diálogo com os outros. O resultado das interações não é predeterminado: ele pode ser positivo, mas também pode tornar-se conflitante. Cabe ao político atualizar constantemente o quadro dessas interações.
Este projeto político é o do pluralismo cultural. Sem ignorar o equilíbrio entre forças, que nunca é excluído das relações humanas, ele tem o objetivo de discipliná-las e ordená-las, definindo as condições de interações equilibradas entre as sociedades e as culturas, levando em conta, entre outros, o papel e a importância dos meios de comunicação globais. Trata-se de defender a abertura dominada, o direito de poder, dentro do respeito por valores fundamentais submetidos ao pensamento crítico e dentro do respeito pelos outros; de exercer suas escolhas individuais e coletivas dentro de condições de autonomia suficientes, sem obrigações nem dependência externa, inclusive no que diz respeito à produção e ao intercâmbio das suas diversas formas de expressão cultural.
Nenhuma cultura pode petrificar-se ou fechar-se sem desaparecer. Mas nenhuma interação pode ser positiva e satisfatória se ocorrer dentro de condições de desigualdade excessivamente acentuadas, ou sob o controle dos mais poderosos. O pluralismo cultural é incompatível com uma visão de mundo no qual alguns se considerariam como os únicos detentores de uma modernidade supostamente universal. Nem todos os países possuem petróleo, mas toda sociedade tem uma cultura: em matéria de cultura, a abertura é indissociável de uma reciprocidade mínima efetiva.
Neste projeto político do pluralismo cultural, as vertentes linguístico-culturais (francofonia, hispanofonia, lusofonia, arabofonia) têm um papel decisivo como protagonistas efetivas no mundo político. O pluralismo cultural passa, entre outros, pelo direito de os Estados adotarem suas políticas culturais nacionais independentemente da liberalização dos intercâmbios econômicos, conforme foi sacramentado pela convenção sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais, adotada pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em 2005.
Contudo, já que na escala global as interações entre as sociedades e as culturas não dizem respeito apenas aos Estados, o pluralismo cultural não pode ser garantido apenas pela regulamentação. Os exemplos do meio ambiente e das línguas demonstram que os tratados e as políticas nacionais não bastam para solucionar os problemas mundiais. Contra a perspectiva temível dos choques de civilizações é preciso defender aquela de uma globalização controlada, na qual o pluralismo cultural, assumido politicamente, constituirá um dos fundamentos de um mundo multipolar e interdependente.