A servidão voluntária e a sociedade conservadora
Mas ainda que sejam infindáveis os escritos sobre os tiranos, poucos estudos efetivamente questionam sobre como surge este autoritarismo, de que forma se dá a aproximação da população com estes ideários violentos e supressores e por que o povo aceita submeter-se a essa perda de liberdade e esse culto do opressor. As respostas são encontradas em um texto escrito por um jovem escritor francês do século XVI, Étienne de La Boetie que em seu famoso “Discurso contra a Servidão Voluntária” introduziu um precioso olhar sobre a tirania, estudando não o tirano, mas os tiranizados e porque aceitavam essa privação de liberdade
Desde meados desta década, a configuração política planetária vem se alterando sensivelmente. Se antes, o que se via eram quadros razoavelmente progressistas, em especial na América Latina, o que se nota hoje é o surgimento de líderes reacionários e o conservadorismo dirigindo nações, promovendo enorme retrocesso em questão não apenas social, mas econômica. Exemplos não faltam, Viktor Órban, na Hungria, Donald Trump, nos Estados Unidos, Rodrigo Duterte, nas Filipinas, Matteo Salvini, na Itália e Jair Bolsonaro, no Brasil, são alguns dos representantes deste atraso e desta nova onda de autoritarismo.
Sob o julgo deste reacionarismo, o que se colhe é a supressão de direitos, precarização do trabalho, através do desmonte de estruturas de bem estar social, instabilidade política com países que não possuem o mesmo alinhamento ideológico, ataque a movimentos sociais e, principalmente, um enorme cerceamento na seara de costumes, desprezo pela população negra e o ataque a minorias étnicas e sociais (como é o caso dos LGBTQI+, imigrantes e populações indígenas no Brasil), retirando-as de programas oficiais de conscientização, querendo apagar suas lutas dos livros didáticos tentando tirar a legitimidade de suas vozes.
Tomando por base os escritos filosóficos de Theodor Adorno, em seu primoroso livro ‘The Authoritarian Personality‘, publicado em 1950, em conjunto a seus pares Else Frenkel-Brunswik, Daniel Levinson, e Nevitt Sanford, notamos que o autoritarismo não é um evento restrito a um tipo específico de sociedade, todas podem apresentar alto grau de adesão com este ideário, mesmo aquelas ditas democráticas. Adorno inclusive propõe um método qualitativo e quantitativo de correlação para este grau de adesão e quais suas principais características.
Mas ainda que sejam infindáveis os escritos sobre os tiranos, poucos estudos efetivamente questionam sobre como surge este autoritarismo, de que forma se dá a aproximação da população com estes ideários violentos e supressores e por que o povo aceita submeter-se a essa perda de liberdade e esse culto do opressor.
Servidão voluntária
As respostas são encontradas em um texto escrito por um jovem escritor francês do século XVI, Étienne de La Boetie que em seu famoso “Discurso contra a Servidão Voluntária” introduziu um precioso olhar sobre a tirania, estudando não o tirano, mas os tiranizados e porque aceitavam essa privação de liberdade.
Questiona La Boetie: o tirano é um homem como outro qualquer, possui apenas dois olhos, duas mãos, um corpo e dois ouvidos. De onde saiu essa figura colossal que nos esmaga, esses olhos que nos espionam, essas mãos que nos pilham? De onde sai toda essa força que a todos condena, julga e agride?
Certamente não é de seu poderio militar, argumenta ele. O poderio militar apenas mostra sua fragilidade enquanto indivíduo, não detentor de nenhuma excepcionalidade humana. Sua resposta é ainda mais terrível e evidencia nossas contradições enquanto seres. Fomos nós que demos para ele. Nós o munimos de nossos órgãos para que nos oprimisse e subjugasse. E somente demos a ele esses instrumentos e essa permissão pois desejamos nós mesmos também nos tornarmos tiranos daqueles que ocupam posições inferiores às nossas. Consentimos, assim, com a servidão voluntária por identificação e por sermos nós mesmos tiranetes.
Trazendo para um exemplo real, abordo aqui o materialismo do governo de Jair Bolsonaro, que tem sido apontado como um enorme risco ao Brasil e um dos piores líderes para a condução de crises. É por nos entendermos tiranetes que permitimos que fosse criado um culto personalíssimo ao redor do presidente e que o conduziu ao poder, a despeito de todos os fatos provarem sua incapacidade.
Respaldo social
O tirano, se democraticamente eleito, tem que ter um enorme respaldo social, isto é, é preciso que haja identificação com suas causas para que consiga ser conduzido ao cargo e exerça sua tirania contra seu povo. Nestes termos, Bolsonaro é a cara do povo brasileiro médio: reacionário, cheio de preconceitos e constantemente iludido por discursos rasos e falhos. Um real exemplo de todas as chagas que se abatem no Brasil e que causam enorme violência social e que até hoje resultam em um dos mais desiguais países de todo o mundo.
Bolsonaro faz-se valer da disseminação do pensamento estereotipado enquanto norma social, ou seja, do apoio a análises supersimples que não apenas desqualificam, mas hostilizam qualquer tentativa mais aprofundada de debate baseado em fatos e de entendimento do social. Não apenas a desinformação, mas a falsa informação é um modus operandi.
A vista grossa sobre sua incapacidade estende-se há muito tempo, ainda que fosse um parlamentar medíocre e com apenas dois projetos aprovados em três décadas, Bolsonaro era a representação do convencionalismo da classe-média, isto é, ele explicitava os valores que eram embutidos em uma sociedade tipicamente reacionária e sob uma falsa aura de alguém que resolveria todos os problemas do país que acabou criando um mito sobre sua conduta.
Exaltava valores da família, propunha combate à corrupção – apesar de sua família estar sendo investigada por relações duvidosas com milícias e, mais recentemente, por intervenções indevidas nas estruturas de polícia -, demonstrava a influência da religião em seu governo e seu nacionalismo, com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, bem como a aversão a minorias étnicas e sociais – mais notadamente a população negra, os LGBTQI+ e os indígenas – e combatia abertamente – novamente, com o uso de retórica barata e com fake news – os movimentos de esquerda, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Homenagem para torturador da ditadura
Sua participação na política tornou-se ainda mais relevante quando durante a votação do impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, saudou a memória do maior torturador brasileiro e que, inclusive, torturou Rousseff durante a ditadura militar (1964 – 1985), o coronel Brilhante Ustra.
Essa criação de persona pautou-se em valores falsos e que não se traduziram em atos, afinal, como ser nacionalista se seu governo propõe privatizar todo o aparato público? Como ser pró-Deus se o senhor saúda torturadores e acredita que a tortura deveria ser restabelecida no país? Contudo, apesar de seus valores e suas ações serem falsos, um mito, e isso ter sido sucessivamente escancarado, a linguagem do presidente e suas posições violentas (seu principal símbolo de campanha era uma arma feita com a mão) acabaram por gerar um culto à personalidade que rodeia o presidente. Uma personalidade ativamente autoritária.
A sociedade seduziu-se e, estando identificada com o personagem, optou deliberadamente por abrir mão de todo o pacto civilizatório que havia minimamente formado nos últimos anos. Andou a passos largos com a barbárie.
As chagas por esse mau encontro serão sentidas por muito mais tempo do que durará este governo, mas é certo que esse período que o país vive, sendo solapado em sua moral e sendo conduzido ao posto de pária mundial pela estupidez de seus gestores serviu para revelar a sua composição, as veias brasileiras estão abertas para que todos vejam sua face cruel.
Observando a complexidade do cenário, convém a pergunta: o que fazer quando esta personalidade autoritária ameaça a segurança de seu povo? O que fazer quando parcela emblemática de um povo segue apoiando aquele que os joga no abismo?
La Boetie responde o que fazer para derrotar o tirano. Basta não dar aquilo que ele deseja. Ele será destruído no dia em que o país se recusar a servi-lo. Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si mesmo.
Davi Spilleir é pesquisador de economia solidária pela Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária e mestre em Sustentabilidade pela Puc Campinas.