A sintonia entre o ponto de vista uzbeque e o quirguiz
Mais de 150 pessoas morreram no Quirguistão nos últimos dias e 100 mil buscam refúgio no Uzbequistão em confrontos que seriam étnicos. Em entrevista ao Diplô, uma uzbeque e um quirguiz contam suas visões do conflitoRaphael Tsavkko Garcia
Terríveis confrontos vêm sacudindo a cidade de Osh e a região no entorno, no Quirguistão. Até o momento, os mortos passam de 150 e perto de 100 mil buscaram refúgio atravessando a fronteira para o vizinho Uzbequistão. Alguns acreditam tratar-se de um conflito étnico entre a maioria uzbeque e a minoria quirguiz. Osh – assim como toda a região próxima até Jalal-Abad, mais ao norte – possui uma população majoritariamente uzbeque ainda que fique dentro das fronteiras do Quirguistão.
Tanto o Uzbequistão quanto o Quirguistão são repúblicas recentes, pós-soviéticas e mesmo a divisão étnica local remonta apenas ao século XIX, à tentativa czarista que havia recém-conquistado a região de manter um controle sobre a população por meio da imposição de identidades étnicas em oposição à sociedade tribal anterior. Como se vê, foram esforços bem sucedidos. O confronto na região, no entanto, não é o primeiro. Em 1990, no derradeiro fim da URSS, um memorável episódio de violência étnica irrompeu na cidade, deixando pelo menos 300 mortos.
Considerado um oásis de paz em uma região conturbada, o Quirguistão viu-se em meio a duas revoluções em um curto período de tempo. Em 2005 Kurmanbek Bakiev tomou o poder das mãos do presidente Askar Akayev com grande apoio popular na conhecida Revolução das Tulipas para, logo depois, ser deposto em outra grande revolução e levante popular no começo de 2010 por, dentre outros, antigos aliados insatisfeitos com a corrupção e nepotismo que grassavam em seu governo. A nova governante, Roza Otunbayeva ainda não foi capaz de controlar todos os recantos do país e tampouco a Rússia mostrou interesse em intervir, mesmo que muitos no Quirguistão pareçam concordar que uma intervenção seria a melhor saída para a terrível situação em que se encontram – seja ela uma intervenção da ONU ou mesmo dos EUA.
Devido a esta ligação quase natural e ao panorama étnico local e buscando entender o conflito em Osh e a situação atual do Quirguistão, o Le Monde Diplomatique Brasil ouviu Ekaterina (“Katya”) Golubina, uzbeque, autora e tradutora do site de mídia cidadã Global Voices e o editor para o Quirguistão do portal Neweurasia e quirguiz, Mirsulzhan Namazaliev
O que está por trás do atual conflito em Osh?
Katya: Acredito que o conflito foi iniciado por alguém nos níveis mais altos do escalão político do Quirguistão (ou, é melhor dizendo, por alguém que costumava estar lá – Kurmanbek Bakiev). Talvez com ajuda de fora… Mas definitivamente não são pessoas comuns que simplesmente odeiam uzbeques. Não existem conflitos entre uzbeques e quirguizes vivendo em Osh, os confrontos são organizados por gente de fora que foi à cidade com objetivos claros.
Mirsulzhan: Existem algumas forças que estão muito interessadas em desestabilizar a situação. Estas, é claro, são forças revanchistas que perderam seus empregos, dinheiro quando foram retirados do poder. Claro que acredito que haja alguma relação com a família (do presidente deposto Kurmanbek) Bakiev. Eles sabiam que o ponto fraco do Quirguistão são as relações com os uzbeques, que não são fáceis, na verdade são complicadas porque o sul do país consiste em, pelo menos, metade de uzbeques, especialmente na cidade e distrito de Osh. Por isso a crise começou por lá.
Podemos chamar os confrontos de conflito étnico ou há algo mais por trás?
Katya: Não se trata de um mero conflito étnico, mas sim algo que foi iniciado para encobrir uma real luta por poder.
Mirsulzhan: Não é um conflito étnico porque uzbeques e quirguizes pertencem ao mesmo grupo étnico.
Existe alguma conexão entre o conflito atual e os confrontos de 1990 em Osh?
Katya: Eu sempre espero que as pessoas aprendam as lições por meio da história, mas elas não aprendem. Infelizmente. Meu pai nasceu e foi criado em Osh. Ele me disse que não havia população quirguiz na cidade durante o período soviético, apenas uzbeques e russos viviam lá. E quando quirguizes desciam a cidade vindos das montanhas (alguns continuam vivendo como nômades nas montanhas), crianças uzbeques apontavam e riam para eles, porque eles pareciam diferentes. Isto talvez tenha parcialmente provocado a violência contra os uzbeques nos anos 90. Os uzbeques sempre foram sedentários, os quirguizes vêm de tribos nômades. Esta é a principal razão para que existam algumas diferenças culturais. Sentados na cozinha de suas casas, os uzbeques fazem algumas piadas sobre os quirguizes, cazaques e tadjiques. E o mesmo pode ser encontrado entre o povo cazaque e quirguiz. Mas não existe nenhum ódio real entre eles. É difícil entender o que está acontecendo lá hoje. Ainda existem muitos uzbeques vivendo no sul do Quirguistão, particularmente em Osh, mas até onde eu sei eles não tem qualquer tipo de privilégio ou são tratados de forma diferenciada por isto. Então, eu acredito que não há relação direta entre a situação atual e os conflitos de 1990. Algumas pessoas, por outro lado, é que têm interesse em criar esta confusão, mas como muitos em Osh dizem, as pessoas organizando os massacres de uzbeques vêm do norte do país. Logo, foi algo muito bem planejado e trazido de fora da cidade.
Mirsulzhan: Dos confrontos entre uzbeques e quirguizes em 1990, existem poucas conexões. Ainda que em ambos os casos houvesse um conflito entre os dois grupos, a diferença é que hoje nós temos pessoas muito perigosas que estão armando um jogo para alcançar o poder. Antes era um pouco diferente, era o fim da União Soviética. Havia alguns que queriam discutir o status de Osh dentro da República Socialista Soviética do Quirguistão (Antes do fim da URSS as atuais repúblicas tinham uma teórica autonomia em relação à Moscou e fronteiras delimitadas que foram mais ou menos respeitadas depois de 1991), pois havia uma confusão sobre as estatísticas populacionais. As pessoas pensavam que havendo mais usbeques que quirguizes, a região então deveria ser “devolvida” ou, ao menos, se tornar autônoma. Mas, comparando as situações, posso ver grandes diferenças porque naquela época as pessoas não tinham tantas armas, desta vez os provocadores estão distribuindo este armamento, criminosos e mesmo traficantes de drogas estão usando esta situação para se beneficiar. Neste momento existem pessoas interessadas em incitar estes eventos com o objetivo de voltar ao poder ou em recuperar o dinheiro que perderam e depois deixar o país. Em 1990, não havia forças reais organizadas, apenas uma grande confusão totalmente desordenada. Hoje existem pessoas organizadas, coordenadas fazendo pesada propaganda para fazer parecer um conflito étnico. Outro problema é que a polícia e o exército quirguiz são muito fracas. Eles não tem material e pessoal suficiente para controlar a situação.
Existe um perigo real de Guerra civil no Quirguistão?
Katya: Bem, eu estou um pouco otimista até agora e acredito que a comunidade internacional não irá permitir que isto aconteça. A região já tem conflitos e problemas demais (Afeganistão, Paquistão), uma guerra civil em um dos países da Ásia Central não será bem-vinda para o mundo.
Mirsulzhan: Uma guerra civil não seria um processo natural, mas poderia ser provocado. O Norte aparentemente está mais seguro, na verdade está relativamente seguro, ainda assim existem algumas tentativas de desestabilizar a situação por aqui também.
Existe algum perigo de um conflito entre o Quirguistão e o Uzbequistão depois das mortes de centenas de civis uzbeques?
Katya: O Uzbequistão jamais entrará em conflito aberto com o Quirguistão, ao menos não por causa da morte de civis em Osh – mesmo que seus próprios. Em 12 de junho, o ministro de relações exteriores (do Uzbequistão) postou uma declaração oficial em seu site dizendo que “o governo e o povo do Uzbequistão estão profundamente preocupados com os eventos que acontecem em Osh, especialmente pelo fato de que estas pilhagens e assassinatos em massa são feitas diretamente contra uzbeques. Mas o Ministério de Relações Exteriores não tem dúvida de que todos estes eventos foram instigados por pessoas distantes dos interesses do povo quirguiz”. Logo, a declaração diz claramente que o Uzbequistão não liga os acontecimentos com o governo quirguiz.
Mirsulzhan: Se este conflito pode se tornar regional? Também é possível. Os provocadores ainda estão trabalhando ativamente. No Quirguistão, nós temos não só nossa própria população, mas também tadjiques e uzbeques no sul do país e, se, por exemplo, milícias ou indivíduos do Uzbequistão cruzarem a fronteira para defender seus parentes e amigos, poderemos ter problemas. As fronteiras na região são frágeis e complicadas e a qualquer momento podemos ter uma zona de conflito. Vale lembrar que algumas forças querem tomar o poder também no Uzbequistão (e derrubar o regime ditatorial de Islam Karimov) e podem estar interessadas em criar um conflito maior a fim forçar a entrada e de enfraquecer o governo vizinho.
Você acredita que a Rússia tem vontade de ou irá intervir no conflito?
Katya: Acredito que a Rússia não tenha vontade, mas talvez intervenha no conflito. Se alguém supõe que a Rússia organizou todos estes eventos para trazer suas tropas ao Quirguistão e ter mais poder sobre o país, eu diria que é nonsense. A Rússia já tem tropas e influência sobre o Quirguistão sem uma revolução ou desordem. Não há sentido em organizar algo assim. Mas o que estou me perguntando é porque o povo do Quirguistão, há dois meses, estava pedindo assistência à Rússia e agora, quem pede são os uzbeques. Isto torna claro que a Rússia continua como o “Big Brother” da Ásia Central e o principal apoio do povo.
Mirsulzhan: A Rússia, desde o começo, estava envolvida. Por isto pedimos às Nações Unidas ajuda porque acredito que forças da ONU seriam mais confiáveis do que o exército russo que tem claros interesses políticos e não viriam ajudar, mas sim implantar sua agenda no país, mas infelizmente nosso governo não pediu ainda qualquer ajuda à ONU ou mesmo aos EUA. Existem apenas poucas opções para a introdução de tropas estrangeiras; se nós pedíssemos aos vizinhos do Uzbequistão, por exemplo, haveria conflito de interesses. As tropas do Quirguistão também não são confiáveis, os uzbeques dificilmente aceitariam esta força. Esta é uma das razões pelas quais Osh ainda permanece insegura e ainda existe muito perigo para a população. Forças internacionais neutras seriam bem vindas ao país, pois ainda que o norte esteja tranquilo, está desprotegido. Estas forças seriam cruciais para ajudar o governo a pacificar o sul e, depois, deixarem o país, o que não aconteceria com a Rússia. Se eles viessem, não sairiam.
Raphael Tsavkko Garcia é mestrando em Comunicação, bacharel em Relações Internacionais, autor do Blog do Tsavkko e autor e tradutor do Global Voices Online