A sombra dos ossos de Franco no calor do verão espanhol
Como a recordação de um ditador, retirado de seu sono num monumento ao fascismo, pode virar o algoz da possível derrota eleitoral de Pedro Sánchez, que teve coragem de “perturbá-lo”
As notáveis derrotas que sofreu o governo do presidente Pedro Sánchez, nas eleições de várias comunidades autônomas e municípios espanhóis em 28 de maio deste ano, levaram o atual dirigente do Partido Socialista Obrero Español (PSOE) a chamar eleições gerais antes do prazo, adiantando-as do final do ano para o quente verão espanhol, no próximo domingo, 23 de julho.
Em 16 de julho, pesquisas do jornal espanhol El País com a Sociedad Española de Radiodifusión (Cadena SER) apontavam que o Partido Popular (PP), a tradicional direita espanhola, com a liderança do galego Alberto Núñez Feijóo, mantinha uma confortável vantagem de 4,5 pontos sobre o PSOE. Nestes números, uma possível coalizão dos populares, com o Vox, da extrema-direita, estaria a um passo da maioria absoluta no parlamento, formando um governo viável.
Feijóo foi o grande vencedor das últimas eleições locais. Sua ambição é clara: acabar com a administração de Sánchez. Além disso, a presença do Vox como terceira força no país foi se consolidando desde 2019, com a falência dos partidos que haviam nascido na anterior crise do Euro. Vale lembrar que no país, o verde, a cor do Vox, é um acrónimo para “Viva el Rey de España”, um contraponto potente ao morado (roxo) do falecido projeto do partido Unidas Podemos, que se usava dos símbolos da Segunda República Espanhola, esmagada pelo Golpe de Francisco Franco após uma longa Guerra Civil que marca a história do país de maneira indelével. Essa esquerda que se queria republicana praticamente se extinguiu nas últimas eleições locais.
Essa mesma pesquisa apontou também a relevância e crescimento do Movimiento Sumar, sob liderança da terceira vice-presidenta do governo de Sánchez, Yolanda Díaz. Tudo isso em conjunto à dança de cadeiras que se formou com a saída do governo do líder do Podemos, Pablo Iglesias, em nome de tentar salvar o partido nas eleições madrilenhas. Dessa forma, Sánchez tem seu governo, nessa proximidade das eleições, com todos os cargos de vice-presidência ocupado por mulheres. A que ocupa o cargo de Iglesias, que era o primeiro vice-presidente, é Ione Belarra, do próprio Podemos. A segunda vice-presidenta é Nadia Calviño, que é independente, mas ligada ao PSOE. Tal desenho se torna um ativo potencial, imaginado por Sánchez, em contraponto à crescente do Vox, que ao começar a participar de governos locais na Espanha, em conjunto do PP, imediatamente começou a atacar direitos e símbolos das mulheres e dos LGBTQIA+s.
O Sumar claramente se torna a única opção de Sánchez para uma nova investidura, se conseguir vencer as eleições. O Podemos manteve sua primeira vice-presidência, mas se sabe que o partido não terá a relevância necessária para manter esse tipo de cargo num eventual governo Sánchez III. As esperanças de Sánchez se baseiam em um possível problema nas pesquisas, que estariam indicando sua derrota. Tal questão foi apontada pelo Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS), que mostrou uma pesquisa no dia 17 de julho que apontava o PSOE com vantagem de 1,4 pontos sobre o PP. Essa mesma pesquisa apresenta o Sumar como a terceira força no país, mesmo que em queda desde o final de junho, mas 3,1 pontos acima do Vox. Se este cenário se demonstrar real, o “truco” de Sánchez terá dado certo.
Esse “truco” veio através de uma ideia de que o adiantamento das eleições daria espaço ao PSOE para expandir-se e lucrar especialmente de um momentâneo choque inicial que os progressistas do país tiveram com as primeiras ações agressivas das administrações PP-Vox. Sánchez colou Feijóo ao líder Santiago Abascal, do Vox, que se candidata quase a um herdeiro do generalísimo Franco.
No último debate presidencial no país, realizado pela RTVE (televisão pública espanhola), estarão presentes Sánchez e Díaz, mas não Feijóo. A única direita presente será o raivoso Abascal. O líder dos populares boicota este último debate com a justificativa de que a RTVE estaria “tendenciosa” contra ele, após ter sido exposto em múltiplas mentiras na entrevista realizada por Silvia Intxaurrondo, no programa La Hora de la 1. Após ser desvendado, o conservador galego acusou a rede de estar tendenciosa, boicotou o último debate e chegou a questionar os correios do país, por cumprirem seu dever legal de entregar a todos os votantes que não estarão em seu domicilio, as documentações que requisitam para votar em trânsito. Esse medo final dos populares pode indicar que acreditam que Sánchez pode ter conseguido “chamar” os votantes para o seu lado, sabendo que a evasão possivelmente o favoreceria.
Recentemente também, campanhas de Vox davam a entender que Sánchez seria leniente com criminosos, discurso bem comum do pânico moral que é fértil nas campanhas de extrema direita. Em Madri, um grupo autodeterminado Violetas alterou uma de suas propagandas que diziam que “Sánchez colocou essas centenas de monstros nas ruas”, colocando em seu lugar “Abascal colocou essas centenas de monstros em suas fileiras”. A foto que acompanha a propaganda insinua uma possível violência sexual ocorrendo com uma jovem mulher.
Entre seus importantes compromissos em Bruxelas, na reunião da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) com a União Europeia (UE), Sánchez faz um malabarismo entre pontos chave de seu governo com pontos chave de sua campanha. O presidente de governo espanhol, por exemplo, perdeu uma entrevista coletiva da reunião com os lideres latino-americanos para ir a um ato de campanha em San Sebastián, no País Basco.
Democracia e honra ao ditador
Sánchez chegou ao poder por meio de uma moção de censura sobre a administração dos populares de Mariano Rajoy. O presidente conservador vivia um momento de baixa, com denúncias de corrupção e com o país numa estagnação preocupante. Sánchez conseguiu desmontar esse governo e prometeu um renascimento do PSOE. Uma nova cara dos socialistas, mais jovens e possivelmente mais à esquerda. Iglesias foi essencial naquele momento.
A ironia vem justamente por Sánchez ser o presidente do PSOE que estaria recuperando as origens mais puras do partido, como se vê no artigo que faz um “chamado” por isso, escrito pelo homem que depois viria a ser seu Ministro de Universidades, Manuel Castells. Essa ideia de revolução no PSOE está na sua obra Ruptura – A Crise da Democracia Liberal (Zahar).
Castells chama Sánchez a reviver o PSOE com uma guinada de políticas de identificação com a esquerda mais antiga da sociedade espanhola, que tem memória histórica das agruras do Franquismo. E assim o fez, Sánchez chorou pelas vítimas republicanas, pelos mortos. Montou sem medo um governo com um partido abertamente republicano, mesmo mantendo boas relações com o Rei Felipe VI, como o PSOE sempre fez desde a redemocratização.
O auge veio depois: Sánchez conseguiu tirar a ossada de Franco do Valle de los Caídos, monumento nos arredores de Madri que reúne os corpos de mortos durante o conflito civil que o país viveu. Obviamente, os corpos ali eram só dos “nacionales”, que lutaram por Franco (pelo menos oficialmente), e o monumento simboliza apenas estes lutadores da guerra. Franco, que não lutou em nada, achou de bom tom dormir o sono eterno com os jovens soldados que ele mandou à morte em seu nome.
Sánchez retirou os ossos do ditador de lá, rompeu com esse monumento que era uma verdadeira veneração aos grupos fascistas, que orgulhosamente saem nas ruas até hoje no país, empunhando a bandeira com a “águia negra” de Franco. Além disso, a família do falecido ditador também começou a ser investigada sobre certas posses, que Franco comprou de seus donos originais com a ajuda de fuzis apontados.
Mesmo com essa retomada de uma história aviltada, destes espanhóis socialistas assassinados pelo fascismo, o governo de Sánchez vive suas baixas justamente frente a um movimento que quer falar de uma “Espanha una”, como gostava o ditador, com seus apoiadores desavergonhados na rua, nas fileiras do Vox. Castells acreditava que se Sánchez não fizesse esse movimento, o PSOE perderia seu sentido de existência. Independentemente de estar certo, é verdade que sua atuação como ministro não ganhou muitos elogios, mesmo entre estudantes universitários.
Parece que Sánchez vive com a sombra dos ossos do ditador que ele tirou do seu sono pleno, assistindo o momento baixo do pacto de paz que seu país fez com o fim do Regime, quando Franco fechou os olhos e seu sucessor, o polêmico emérito Rei Juan Carlos I, “determinou” que haveria democracia no país.
Bipartidarismo, crise
O país que se acostumou ao bipartidarismo desde sua redemocratização viu esse sistema ser balançado na mais recente crise do Euro, na década passada. Dessa crise nasceram novos partidos de corte nacional. Um que se dizia de centro direita liberal, os Ciudadanos (Cs), e outro que se almejou mais à esquerda que o PSOE, o Podemos. Este último, movido na sua visão, passou a tentar usar uma memória histórica no país de antes da Guerra Civil, referindo-se ao que foi a Espanha pelo breve período republicano antes da destruição que lhe foi outorgada pela ditadura de Franco. Sua cor ser o morado não é um acidente, já que é a única cor que diferencia as bandeiras da Segunda República Espanhola das usadas por Franco e pela monarquia constitucional atual. O Sumar usa o fúcsia, segundo sua própria afirmação. Talvez assim queiram se vender mais à esquerda de Sánchez, mas sem mexer nessa memória histórica com esse tipo de simbolismo.
Em conjunto a essa circunstância, o país segue sua tradição de partidos nacionais “locais” terem potências na Catalunha, no País Vasco e na Galícia, especial mas não somente. Esses partidos, ao contrário dos Ciudadanos e do Podemos, não “derreteram”. Porém, suas visões são diversas, imaginar que Junts per Catalunya representa ideais de esquerda somente por seu caráter independentista é ignorar demasiados fatores. Esse partido, que pode virar o mais votado de Barcelona, acima da vertente catalã do PSOE, deve virar para “azul” o governo catalão (com muitas ressalvas, já que são independentistas e não vão querer muita conversa com conservadores “espanhóis” de Madri). São independentistas, porém liberais e conservadores “no social”, sua principal causa é a defesa de Carles Puigdemonte, após a enorme crise que o então presidente da comunidade catalã causou com o plebiscito que aconteceu, mas “não podia ter acontecido”.
No lugar da morte desse sistema plural eventual, não retornou o bipartidarismo tradicional de antes, mas se manteve uma força maior por parte do PSOE e do PP. Das cinzas de uma direita liberal, nasceu o extremismo do Vox. Das cinzas do republicanismo do Podemos, a esquerda antifascista do Sumar. Contudo, ninguém presume que estes partidos serão nada mais do que terceiras e quartas forças no país, atualmente. O sonho de que os novos partidos romperiam a hegemonia PSOE-PP morreu.
Eleições meméticas – “El Perro Sánchez”
Semelhante ao visto nas eleições brasileiras e estadunidenses, o pleito espanhol está marcado por uma política online, de memes. Tal qual nas Américas, a esquerda na Espanha também perde o debate neste marco, por falta da mesma práxis que o extremismo de direita mantém na internet. Os ataques ao presidente de governo espanhol vão desde memes que deturpam seu nome, chamando-o de cachorro (“Perro Sánchez”), até ataques mais delicados nas feridas abertas de um país fragmentado. O PSOE soube sair bem da questão do perro, buscando apropriar-se da imagem do cão como algo positivo. Outras questões foram mais difíceis de lidar.
Neste caos ordenado das redes, Sánchez foi atacado por uma pauta eleita como favorita por todos os lideres do PP desde o início de sua administração. O fato de que o presidente socialista contou com o voto de um partido basco, Bildu, suposto herdeiro político do grupo terrorista Euskadi Ta Askatasuna (ETA), para garantir sua investidura. Sánchez não teria se tornado presidente sem os grupos nacionalistas locais. Pablo Casado, o derrotado líder anterior dos populares, usou deste argumento ad nauseam contra Sánchez. Feijóo buscou seguir nestes ataques, com um toque a mais de violência imagética.
Os socialistas, por outro lado, se orgulham de ter pacificado a questão do terrorismo basco. É importante lembrar que o ETA agrediu e assassinou também, utilizando-se da mesma violência, figuras da esquerda espanhola (inclusive do PSOE), não somente quadros do PP e da então ditadura franquista. Sua luta na democracia saiu da luta contra o franquismo e entrou num nacionalismo racial exacerbado que atacou tudo que se criava na política da Espanha democrática. O grupo baixou armas durante um governo socialista de José Luis Rodríguez Zapatero, em 2010. A principio o grupo não havia pedido perdão ou entregado os depósitos de armas, o que veio a ocorrer em 2017 e 2018.
O clima é quase de uma destruição dos ideais de comunidades autônomas pensados com o fechar dos olhos de Franco, quando o socialista Felipe González destruiu o sonho do ditador por um país “uno e forte” e criou as autonomias regionais. O Vox usa de um discurso completamente “unitário” para a Espanha, mas o PP provavelmente não compartilha exatamente deste sonho para agora, já que está distante de ganhar as eleições já com uma maioria absoluta. Dessa maneira, é possível que admitirá provavelmente o apoio de alguns nacionalistas conservadores, provavelmente na Catalunha.
No que os conservadores estão tratando como a possibilidade de um “verão azul”, o PP chegou, usando do seu grupo de juventude, a fazer uma campanha que visava vincular a imagem de Sánchez ao ETA, dizendo “que te vote Txapote, Sánchez”, referenciando o apelido de Francisco Javier García Gaztelu, terrorista do ETA que assassinou dois políticos do PP e um do Partido Socialista de Euskadi, o PSOE do País Basco. Essa campanha aconteceu em Madri, que virou o palco do PP para dizer o que seria a chamada “Espanha de verdade”. Familiares das vítimas ficaram horrorizados, como se poderia esperar.
O PSOE rebateu ridicularizando o político basco do PP, Borja Sémper, que se portou a “fabricar uma praia” em Madri para uma ação de campanha (difícil mensurar o absurdo de uma ideia assim para quem nunca foi à Espanha). A chacota socialista veio com o slogan “que te vote Chanquete, Sémper”. A referencia aqui é a um personagem fictício da série espanhola dos anos 1980, chamada Verano Azul, sobre jovens em belas praias espanholas na Costa del Sol.
Enquanto isso, Abascal pressiona Feijóo para “fechar o acordo” da investidura conjunta desde já. Se assim o faz, com os números previstos, a Espanha pode ter, no cenário de vitória do PP, Feijóo presidente e Abascal até como um primeiro vice-presidente.
A tática de Sánchez bebe muito do que fez Lula no Brasil durante a campanha, apostando na participação de podcasts, fazendo política online e buscando com urgência ganhar esse gap com grupos mais jovens. Sánchez sabe que para essa comunidade jovem espanhola, teria sua preferência no lugar da extrema-direita. Contudo, as eleições no país não têm voto obrigatório, ou seja, os socialistas têm que vencer também a evasão. O cálculo do partido de que seriam favorecidos por uma eleição no auge do verão, em um país com uma enorme cultura de viagens de férias, é uma moeda girando no ar. Uma previsão sobre qual grupo terá mais “preguiça” de ir votar é de difícil mensuração. Sánchez, sabendo dessa urgência, faz uma campanha que cria sentimento de catástrofe numa possível vitória do PP, tentando evitar a evasão.
Pergunta-se se estaria a “águia negra”, e os ossos do ditador, assombrando o governo socialista da Espanha, com a talvez primeira ascensão de um governo de coalisão que inclua uma nostalgia ao general que, em três anos, teve a façanha de causar mais de meio milhão de mortes, na década de 1930. É verdade que o país também já foi governado por José Maria Aznar, que flertou com uma direita excessivamente extrema. Contudo, Vox é um novo movimento, desses que traz de volta o início do século XX, assim como AfD na Alemanha e Le Pen na França. Fala-se de uma onda que nasceu com Trump. Contudo, na Europa, o passado que eles voltam a “considerar” pode vir a se tornar ser um pesadelo ainda maior, em comparação com o que aconteceu nas Américas. Afinal, há o questionamento se existe o mesmo poder de “recuperação” (como o visto no Brasil) na UE e nos países europeus, após possíveis governos catastróficos.
Daniel Azevedo Muñoz é professor e jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid. Integra o grupo de pesquisa em Jornalismo Popular & Alternativo, da Universidade de São Paulo.