O novo governo espanhol
Dificilmente a emergência do novo líder permitirá criar grandes expectativas de mudanças
Destituído pelo Parlamento no dia 1º de junho, o conservador Mariano Rajoy deixou o cargo de primeiro-ministro da Espanha, que ocupava desde 2011. Sua queda permitiu a ascensão do socialista Pedro Sánchez, fato que recolocou a principal força de centro-esquerda no centro do poder.
Contudo, ao contrário do que normalmente se espera de situações em que ocorre a alternância entre partidos situados em lados opostos do espectro político, dificilmente a emergência do novo líder permitirá criar grandes expectativas de mudanças. Seria mais correto dizer que as alterações que se desenham no horizonte envolvem muito mais sutis redirecionamentos, com reduzidas possibilidades de transformações de fundo para o povo espanhol.
Se existe uma novidade, ela pode ser encontrada na correlação de forças provocada por atores recém-ingressos na cena política. Desde o fim da ditadura de Francisco Franco, que comandou o país de 1939 até sua morte, em 1975, a Espanha foi dominada por dois partidos: o Partido Popular (PP), conservador de centro-direita, e o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), de centro-esquerda. Apesar da existência de outras agremiações menores, na prática vigorava uma espécie de bipartidarismo informal, com o PP e o PSOE se alternando no poder e formando as maiores bancadas no Parlamento.
Porém, seguindo uma tendência de diversas nações, os dois grandes partidos vivenciam, há alguns anos, uma crise de representatividade. Paira no ar um clima de desconfiança por parte dos cidadãos, que não se sentem mais representados pelas duas legendas. Simultaneamente, novos partidos começaram a ocupar o vácuo deixado pelas forças tradicionais, destacando-se nas eleições gerais de 2015. O Ciudadanos se apresenta como uma alternativa liberal, obtendo resultados expressivos nos pleitos posteriores à sua fundação, em 2006. No campo da chamada esquerda radical, encontra-se o Podemos, que passou a disputar parte expressiva do eleitorado do PSOE já em 2015, apenas um ano após o seu nascimento.
Naquela ocasião, o PP e o PSOE atingiram, juntos, cerca de 50% dos votos. Trata-se de um marco nitidamente negativo para ambas as forças políticas. Em contrapartida, o novato Podemos obteve cerca de 20% da preferência dos eleitores, enquanto os liberais do Ciudadanos alcançaram algo em torno de 14%. Essa situação arquitetou um cenário novo, haja vista que a dupla outrora soberana teve que compor com o Podemos ou com o Ciudadanos na formação de novas coalizões.
Isso levou a Espanha a uma situação inédita. Desde a redemocratização, em 1975, pela primeira vez não foi possível formar um governo, de modo que novas eleições precisaram ser convocadas para 2016. Somente em fins de outubro, após quase um ano com Mariano Rajoy exercendo o poder como primeiro-ministro interino, finalmente formou-se um novo governo, mediante uma aliança entre o PP e o Ciudadanos.
Em 1º de junho de 2018, no entanto, o PSOE conseguiu aprovar uma moção de censura contra Mariano Rajoy, em razão dos escândalos de corrupção que há tempos grassam o PP. Por sua vez, esse fato confirmou a desconfiança dos eleitores a respeito dos partidos e políticos tradicionais.
Esses acontecimentos levaram a uma reviravolta no tabuleiro espanhol, conduzindo Pedro Sánchez, líder do PSOE, ao posto de primeiro-ministro do país. Sua vida à frente do governo não será fácil. Apenas a título de comparação, Rajoy governava com 170 dos 350 deputados, o que é um pouco menos da metade. Contudo, é importante notar que, desses 170, nada menos que 137 pertenciam ao PP, seu próprio partido, sobre os quais Rajoy tinha maior capacidade de controle.

Sánchez governará com uma estreita maioria de 180 deputados; no entanto, destes 180, apenas 84 são originários do PSOE. Mais da metade dos componentes de sua base de apoio está espalhada por oito agrupamentos diferentes, com visões político-ideológicas por vezes conflitantes. Cedo ou tarde, essa heterogeneidade poderá trazer problemas para o governo de Sánchez, sobretudo no tocante a uma das questões mais sensíveis no atual contexto hispânico: a emergência dos nacionalismos. Embora a imprensa tenha destacado o processo de independência catalão – justamente por estar mais avançado –, não se pode ignorar o renascimento do separatismo basco. A situação torna-se ainda mais complexa quando se verifica que há nacionalistas catalães e bascos incorporados na coalizão de governo de Sánchez. Em outras palavras, isso significa que o novo primeiro-ministro precisará se mostrar muito mais aberto às negociações do que o seu antecessor.
Ao mesmo tempo em que Sánchez era eleito primeiro-ministro da Espanha, um novo governo catalão – de matriz independentista – assumia o poder, dando fim a meses de intervenção do governo espanhol e reforçando o seu desígnio de dialogar com o mandatário espanhol sobre as possíveis saídas para concretizar a independência da Catalunha.
No âmbito regional, a atual conjuntura se destaca, ainda, pela atmosfera de transição em duas das maiores economias da União Europeia. A Espanha – a quinta maior economia – e a Itália – a quarta maior economia – estão passando pelo processo de formação e consolidação de novos governos. O caso italiano é ainda mais complicado e propenso a impactar as relações dentro do bloco europeu, uma vez que Giuseppe Conte é considerado um premier antissistema, além de adotar uma retórica avessa ao processo de integração europeu.
No que tange às mudanças socioeconômicas domésticas, o cenário hispânico também é pouco auspicioso. Alguns indicadores permanecem assustadores: o desemprego continua alto (16%) e a dívida pública é de mais de 98% do PIB. Os mais otimistas, entretanto, dirão que o retorno do PSOE significa um indício de recuperação das cambaleantes esquerdas tradicionais europeias. É importante lembrar que, após duras derrotas na França, na Alemanha, na Holanda e na República Tcheca, a centro-esquerda encerrou 2017 governando somente 7 dos 28 países da União Europeia
Tendo em conta que Sánchez não se mostrou disposto a realizar reformas que toquem nas questões de fundo e devolvam esperança aos cidadãos, é pouco provável que o insólito triunfo do PSOE signifique fôlego extra para as demais agremiações da velha e debilitada esquerda social-democrata.
*Leandro Gavião é doutor em História Política pela Uerj e professor da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e da pós-graduação do Curso Clio/Damásio; e Tanguy Baghdadi é mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio e professor do Curso Clio/Damásio, do Ibmec e da Universidade Veiga de Almeida. É membro-fundador do canal Petit Journal.