A sopa de morcego como último raio gourmetizador
Agora que cultuamos como nunca a instituição restaurante, e no momento em que os cozinheiros conseguem se distanciar da imagem de marginalizados o bastante para encarar paredes de vidro, transformando bastidor em palco, surge um micro-organismo acelular para colocar um tapume no roldão performático e devolver a cozinha à sua pré-história: o ambiente doméstico
“Uma gravata limpa atrai sempre a sopa do dia”
(Lei de Murphy)
Quando a Covid-19 começou a se alastrar pela Lombardia, registros de uma sopa de morcego que seria a gênese do vírus já embrulhavam estômagos ao redor do mundo e reforçavam sentimentos de superioridade étnica. Hoje sabemos que não há relação entre a iguaria e a doença. No entanto, se não pelas consequências digestivas, a sopa merece ser preservada pelo seu caráter simbólico. Ela representa bem a condição atual do capitalismo e sua repercussão na alimentação humana. Do caldo marrom, onde tudo parecia fluir livremente, emerge um rato voador com suas asas repulsivas.
Em qualquer situação de calamidade somos compelidos a relativizar as aparências e focar nos aspectos mais cruciais da existência. O estilo do texto se perde na urgência de escrevê-lo ou lê-lo. A informação reina, ainda que provisória. Se a sanidade mental e o respeito pela vida estão minimamente preservados, a tendência é a de assumirmos a postura do náufrago na ilha. Ele escreve “socorro” na areia com a única preocupação de que a mensagem seja legível e a maré permaneça baixa. A possibilidade de ele investir nos contornos estéticos é restrita não apenas pela ausência de utensílios, mas, principalmente, porque ela está vinculada ao quanto ele pode abrir mão de suas necessidades mais iminentes. Comer é uma necessidade primária e a fome, portanto, uma barreira para o embelezamento das coisas. Somente no mundo fantástico de Kafka o artista consegue tornar a fome sua própria arte.
Nas últimas décadas a comida vem sofrendo um processo radical de transformação em direção ao universo da estética. A erupção da cozinha, evidenciada pela multiplicação de programas de culinária, ascensão dos chefs e proliferação de cursos de gastronomia, está ancorada na incorporação dos discursos da arte como forma de valorização da comida e da profissão. A faceta atual do capitalismo, sustentada pela ênfase na criatividade e flexibilidade, tornou o artista a figura paradigmática a ser cultuada e, para muitos, a gastronomia se converteu no principal atalho para alcançar esse lugar idealizado. O caráter genuinamente ordinário e democrático da culinária – uma atividade, no fundo, de primeira ordem – faz dela uma linguagem extremamente acessível. O contrário da arte em si, cuja expressão aspira a própria condição humana.
A crise sanitária mundial desencadeada pelo novo coronavírus fechou os restaurantes, gerando enorme prejuízo em um dos seguimentos mais dinâmicos da economia. Também interrompeu um processo que, segundo a narrativa padrão, teve início na revolução francesa, quando os cozinheiros da corte perderam seus cargos e se lançaram no empreendedorismo. Adaptando as antigas tavernas, tratorias e bodegas, chegaram ao modelo consagrado do restaurante. Agora que cultuamos como nunca essa instituição, e no momento em que os cozinheiros conseguem se distanciar da imagem de marginalizados, vítimas do “inferno sufocante” nas palavras de George Orwell – o bastante para encarar paredes de vidro, transformando bastidor em palco – surge um micro-organismo acelular para colocar um tapume no roldão performático e devolver a cozinha à sua pré-história: o ambiente doméstico. Aprisionados na sua própria razão de ser, os profissionais se veem obrigados a preparar suas quentinhas e marmitas em fogão comum na esperança de haver um destino que passe pela garupa de um entregador. Com sorte, percebem que o glamour via redes sociais já não convence tanto em tempos de pandemia, além de ser um tanto obsceno.
O boom gastronômico foi forjado na fuga do cozinheiro e da própria comida do universo do essencial. Uma estratégia aparentemente acertada se levamos em conta a baixa atribuição de valor que os prestadores de serviços essenciais recebem. A pandemia escancarou nosso sistema de compensação. Aqueles que desempenham as funções mais importantes, arriscadas, cujo trabalho beneficia grande número de pessoas, são os pior remunerados e menos reconhecidos. Por outro lado, aqueles que desempenham funções dispensáveis e, como demonstra David Graeber em Bullshit Jobs, frequentemente esvaziadas de sentido pelos próprios profissionais que a executam, são os que recebem as melhores recompensas. Os primeiros executam tarefas inadiáveis, pré-condição para garantir a vida das pessoas e, estranhamente, têm seu valor moral subvertido em desvalor monetário. É como se, neste universo, o trabalho fosse originário de um princípio da boa vontade natural e, portanto, desconectado do dinheiro. Recebem pouco porque a pulsão de seu trabalho não está no capital. São orientados por valores externos ao mundo dos negócios, onde se ganha dinheiro porque se trabalha exclusivamente por ele. A recompensa seria parte da própria natureza devota dos incautos.
Apesar dessa aparente divisão entre relevante e irrelevante, a distinção nem sempre é tão evidente como na comparação entre uma enfermeira e um operador do mercado financeiro. Além do mais, o essencial nunca é alvo de renúncia completa tendo em vista seu imperativo de manter a vida. O que se radicalizou nas últimas décadas foi a hegemonia de uma interpretação ultra-subjetiva do termo, na qual mistura-se a ideia de essencial com uma noção particular de autenticidade voltada para o mercado. Nela, o sujeito dito autêntico, na maré da nova economia criativa, abre mão do princípio da autonomia contra a mercantilização da vida e reduz sua interioridade a uma espécie de eu-empreendedor-de-si-mesmo. Nessa lógica, o vínculo do essencial com a matéria, a ecologia, é atropelado pelo entendimento de que o importante é o que nos torna únicos (nossa essência) e como podemos explorar isso economicamente. Essa visão é amplamente difundida pela literatura de autoajuda empresarial e coaching, onde a liberdade evocada constantemente soa cada vez mais cínica e conformista; uma ilusão mantida à base de antidepressivos e pelo efeito inebriante da estetização da vida.
O capitalismo criativo é justamente este sistema no qual a ética puritana do velho modelo dá lugar ao ideal estético de vida. Uma cena do filme Estômago ajuda a explicar a “essência” dos produtos gourmetizados e da estetização do banal. O chef e dono do restaurante, Giovanni, representado por Carlo Briani, está ensinando as artimanhas da alta culinária ao retirante nordestino Raimundo Nonato (João Miguel). Com um ar de cinismo, ele prepara uma sobremesa em poucos segundos composta por um pedaço de doce de goiaba e outro de queijo gorgonzola e se dirige ao aprendiz com ironia: “o restaurante é a arte da enganação”. Obviamente Giovanni é meticuloso na apresentação do prato. Ele utiliza um utensílio tubular de metal para cortar os dois ingredientes de maneira que fiquem um sobre o outro com circunferência idêntica. O raio gourmetizador do chef esconde o que a estetização tende a criar, e ela não tem a ver apenas com a alta dos preços, gentrificação, etc., mas também com uma radicalização da apatia frente aos aspectos ordinários do mundo real, uma perda de empatia pelos encardidos de necessidades básicas, os pobres inautênticos.
Ainda que não seja possível prever as consequências do isolamento social prolongado, a disputa sobre tais consequências já está lançada e poderá resultar em alterações nessa economia moral que inflaciona a superfície das coisas e das pessoas. O contexto pandêmico tem possibilitado uma experiência comum de percepção da vulnerabilidade dos trabalhadores essenciais ao mesmo tempo que ressalta seu poder de impactar as principais engrenagens do capitalismo atual, marcado pelo colapso das proteções trabalhistas. Essa revelação massificada, não mediada por lideranças políticas tradicionais, fornece munição para uma possível comoção global baseada numa pergunta simples: por quê suas vidas valem tão pouco se eles são tão essenciais? No final das contas, o conceito de “essencial” se revela um bom ponto de partida porque está no horizonte tanto das preocupações ecológicas como dessa cultura da autenticidade, a ideia de que todos temos uma essência criativa a ser estimulada. Os cozinheiros, tendo adquirido inserção na esfera pública, muito por terem encontrado meios eficientes de manipular os signos da autenticidade e por não conseguirem se distanciar tanto da vida real do estômago, podem exercer um papel de destaque na construção de um novo ordenamento do mundo do trabalho. A comida é um dos símbolos mais poderosos do essencial. E um sistema que “adie o fim do mundo”, para usar a expressão de Ailton Krenak, certamente deve levar em conta uma interpretação menos egocêntrica do seu significado. Uma sopa cujo valor seja a restauração.
Fábio Guimarães Liberal é jornalista e doutor em sociologia pela UFPB; e Guilherme R. E. Cabral é sociólogo e doutor em psicologia cognitiva pela UFPE.