A suspensão em ‘De Repente Nenhum Som’, de Bruno Inácio
Obra recém-lançada pela Sabiá Livros aborda temas como as relações familiares e o silêncio
O silêncio é um dos aspectos mais difíceis de manipular em literatura, uma vez que é um substantivo que não necessariamente representa a falta ou o nada. Afinal, quando há o silêncio, ainda há seu som. Em seu novo lançamento, Bruno Inácio mantém-se fiel ao estilo pictórico que vem trabalhando. Assim como fez em Desprazeres Existenciais em Colapso (Patuá) e Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros), a forma trabalhada torna-se o destaque em De repente nenhum som (Sabiá Livros), dessa vez com uma abordagem em torno da suspensão.
A imagem registrada pelo título não engana, falamos da suspensão do som, de modo que o que resta é a marca ilustrada pela história. Em todos os contos do livro encontramos esse aspecto. Tal recurso enobrece as narrativas curtas, extensão preferida pelo autor, o que demonstra que o conteúdo trabalhado minuciosamente é o que lhe interessa.
A suspensão aqui está mais ligada à imagem, ao deixar o leitor, cada um dos contos suspende-se no ar, apenas aquilo que foi dado nos resta como corpo, como uma cicatriz na retina. Talvez isso esteja na fonte na qual Bruno buscou inspiração, como a música – o título foi retirado da obra de Cazuza – e o cinema, explícito em referências diretas em alguns dos contos. No cinema, o silêncio está presente desde o início, como parte dele ou como simples coadjuvante, uma vez que ele não deixa de ser usado na produção contemporânea, seja como recurso narrativo ou estético, porém sem deixar de ressaltar a linha que há entre ele e a imagem. Dizemos que vamos assistir a um filme, não escutá-lo. Bruno suspende o som de seus textos, mas deixa a imagem.
Em “Alô, alô, freguesia”, conto que abre a coletânea, acompanhamos as impressões de um filho que vai vender pamonhas com o pai; a tensão mora na exploração sensorial e moral que o menino tem ao experimentar na pele sua consciência de classe. Logo no cume somos suspensos do texto, porém, ainda assim, difere do que foi inaugurado por Hemingway, por exemplo, logo que não há uma parte do iceberg sob a água. No trabalho de Bruno sobre De repente nenhum som, a própria letra é o som, ela é suspensa, mas o que ela contou, não.
Assim como nos seus trabalhos anteriores, o tema está de braços dados com a forma, um rascunhando o outro. Entretanto, eu diria que o tema familiar, trabalhado em sua última publicação (Desemprego e outras heresias), é estendido nesta coletânea, uma vez que quase todos os personagens demonstram ou se convergem sobre alguma relação, pai e filho, irmãos, avós, até mesmo a relação íntima que existe entre um analisado e sua psicanalista.
Na demonstração interior das personagens encontramos aspectos familiares; opiniões, relembranças, constatações, a cada frase curta, Bruno nos deixa formatado as linhas que desenham nosso corpo a ser suspenso, sem necessariamente trabalhar sobre símbolos, preferindo a sensação, justamente o que ficará “no ar” para o leitor.
Ou seja, por mais que o tema ou rol de personagens nos deixe claro por onde o autor deseja caminhar, a forma nos puxa na direção da interpretação literária, de modo que apontaria estar no “Urgência de Aspas” esse núcleo. Neste conto, o autor se preza a discutir algo teoricamente simples, contudo, bastante contemporâneo: os acentos usados em diálogos. Como se dá a diferença das aspas e do travessão? Um é mais incisivo que o outro? Há uma maneira de dizer que o travessão dá “mais tempo” ao leitor? As perguntas são incorporadas em um diálogo de personagens e as (possíveis) respostas na grafia do texto, diretamente. Mas, o que fica suspenso é uma noção sobre a forma, a manipulação que vive nas mãos do ficcionista e que ele usa ou não a depender do que quer. Esta interpretação não está no conto, ela fica além da grafia: é uma interpretação sem som.
Não julgaria ser Bruno Inácio um autor experimental, contudo o colocaria sob uma definição dada por Clarice Lispector em uma das suas únicas conferências, justamente sobre a vanguarda: a de que toda escrita é uma experimentação. No caso, não parece que Bruno procura reformar alguma coisa, e se o faz, o faz indiretamente, porque esta sensação se desperta no leitor. Nunca podemos imaginar aonde irá um autor até que sua produção se encerre, mas posso afirmar que De repente nenhum som é o trabalho mais conciso e harmônico realizado pelo autor paulista radicado em Minas Gerais.
A obra
Contemplado pelo Programa Municipal de Incentivo à Cultura (PMIC), de Uberlândia (MG), De repente nenhum som foi lançado pela Sabiá Livros, com orelha de Marcela Dantés, prefácio de Monique Malcher, posfácio de Lilia Guerra, ilustrações de Orlandeli, revisão de Renata Pereira, preparação de texto de Alexandre Staut e quarta capa com comentários de Carlos Eduardo Pereira e Jacques Fux.
Andreas Chamorro é autor de Divindades Solitárias (Kotter), A orgia perpétua ou o relatório de Pimenta (Patuá) e antes que o fruto caia (Aboio).