A “tecnologia mundana” de David Nemer
Confira resenha do livro Tecnologia do oprimido: desigualdade e o mundano digital nas favelas do Brasil, de David Nemer, lançado pela Editora Milfontes em 2021
Tecnologia do oprimido: desigualdade e o mundano digital nas favelas do Brasil é o segundo livro de David Nemer, na sequência de Favela digital: o outro lado da tecnologia (GSA, 2013). Nemer é professor do Departamento de Estudos de Mídia da Universidade de Virgínia (EUA) e pesquisador envolvido em refletir sobre as relações entre tecnologia e sociedade. Com uma formação eclética que mescla ciência de dados e administração, Nemer – que também é mestre em Antropologia pela Universidade de Virgínia e doutor em Computação, Cultura e Sociedade pela Universidade de Indiana – tem ampla experiência etnográfica, desenvolvendo pesquisas nas áreas de Antropologia da Tecnologia; Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia; Tecnologias da Informação e da Comunicação para o Desenvolvimento; e Interação Humano-Computador.
Tecnologia do oprimido foi elaborado como fruto de um trabalho etnográfico desenvolvido por Nemer no chamado “Território do Bem”, em Vitória (ES), entre junho de 2012 e dezembro de 2019, através de espaços online e offline, para a coleta de dados qualitativos sobre as experiências com o uso dessas tecnologias digitais por parte dos moradores da região.
A pesquisa analisou o modo como as experiências dos moradores do “Território do Bem” com essas tecnologias permitiu-lhes certa apropriação crítica de artefatos, operações e espaços tecnológicos destinados à navegação através de fontes de opressão digitais e não digitais. Assim, Nemer oferece uma abordagem inovadora que busca não só compreender como as tecnologias digitais podem ser ao mesmo tempo locais de opressão e ferramentas de libertação dos oprimidos, como também serve para lidar com a possível intervenção destinada à conscientização e à criação de demandas por mudanças.
Partindo do conceito de opressão cunhado por Paulo Freire no final da década de 1960, Nemer apresenta uma análise bastante arrojada que trata dos oprimidos como agentes autônomos de transformação no campo de batalha do mundo digital, indo na contramão dos estudos que os entendem como meros consumidores de tecnologia. Nesse caso, a condução dessa etnografia crítica propiciou uma compreensão aprofundada sobre a dinâmica sociotécnica envolvida nos processos complexos de opressão que estão no centro propulsor da chamada Era Digital.
A obra, composta por uma introdução e outros sete capítulos, contempla ainda um apêndice em que é descrita a metodologia de pesquisa empregada na realização do estudo proposto, buscando enfatizar principalmente o modo como os moradores da favela utilizam as tecnologias para lidar com as adversidades apresentadas pelo cotidiano – aquilo que vem a definir como tecnologia mundana.
Portanto, o singelo objetivo desta resenha é oferecer ao leitor interessado na temática um índice comentado por meio do qual possa conhecer cada capítulo que compõe a obra, no intuito de dar um panorama sobre a trajetória que o autor percorreu na qualificada abordagem do tema.
Introdução
O início do livro situa a opressão como ponto de preocupação central dos debates sobre tecnologia, iniciando-se com um relato decorrente de uma observação participante que dará o tom etnográfico dos capítulos que seguem. Reconhecendo que as favelas operam como locais privilegiados para o exercício de diversas formas de opressão, Nemer utiliza-se dos procedimentos etnográficos para dar vida às histórias de alguns de seus moradores, buscando compreender o modo como se apropriam de artefatos, operações e espaços tecnológicos, mobilizando-se em direção à qualidade de vida que desejam, na medida em que exercem agência e conscientização de maneira crítica e criativa.
Ao focalizar as pessoas marginalizadas como usuárias e produtoras de tecnologia mundana, o livro evidencia como esses sujeitos que se encontram fora dos centros de poder tecnológicos e sociais conseguem utilizar materiais e conhecimentos decorrentes da tecnociência profissional para seu próprio uso como produção sociotécnica. Nesse caso, Nemer demonstra como esse tipo de uso feito a partir dessas tecnologias pelos moradores da favela distancia-se das ideias originais concebidas por seus desenvolvedores, conferindo a elas significados múltiplos impensados fora do contexto em que estão inseridas. A esses usos alternativos – que podem consistir em artefatos, como telefones celulares; em operações, como práticas de reparo; ou em espaços, como os tecnocentros e as LAN houses –, as pessoas empoderam-se para aliviar as opressões do dia a dia, sofridas no cotidiano da vida na favela.
Ao relacionar a experiência digital com os processos de exclusão e opressão historicamente constituídos na realidade do país, a obra expõe as diferentes formas de dominação que atuam sobre a vida dos moradores de favelas – incluindo, numa perspectiva interseccional, não só aspectos socioeconômicos, mas também questões raciais e de gênero –, enfatizando ainda o modo como tais opressões assumem novos contornos na interação com essas tecnologias emergentes.
Reparando a cidade quebrada
No segundo capítulo, Nemer apresenta a noção de reparo, desenvolvida no âmbito dos estudos sobre ciência, tecnologia e sociedade, para examinar o modo como os moradores da favela se esforçam para se libertar da opressão resultante do colapso tecnológico que enfrentam cotidianamente. Define reparo como uma tecnologia mundana utilizada para adaptar projetos tecnológicos coloniais que não foram produzidos para funcionar em lugares como as favelas, ou mesmo em zonas de negligência contínua onde a falha acaba por caracterizar o estado de normalidade.
Nemer identifica que a continuidade dos sistemas tecnológicos nas favelas depende de um complexo trabalho de manutenção e ajuste em diversos níveis. Este abrange desde a luta por escrituras de terra e pelo fornecimento confiável de serviços de infraestrutura em nível sistêmico, como água potável, saneamento básico e eletricidade, até os usos cotidianos de artefatos tecnológicos como telefones celulares, teclados e internet a cabo, bem como demais instrumentos que se espalham pelo contexto do trabalho e da vida doméstica diária, ensejando práticas de reparo que permeiam a intimidade da vida cotidiana. Esses artefatos tecnológicos não apenas alcançam os oprimidos, como são apropriados por eles diariamente na tentativa de evitar e combater o colapso através da unidade, da organização e da luta comunitária.
Surgem, portanto, modos como os moradores utilizam-se do reparo para driblar o colapso no contexto de informalidade legal e precariedade persistente que caracteriza a infraestrutura de suas vidas. Os usos atribuídos pelos moradores da favela aos smartfones de marca chinesa contrabandeados ilustram os múltiplos significados e contradições que emergem de diferentes escalas de sistemas tecnológicos:
Esses aparelhos atuam como um portal para a tecnocultura global, em vez de um rompimento das limitações sociotécnicas. Os moradores detêm uma profunda admiração por dispositivos integrados na vida cotidiana, mesmo que permaneçam conscientes da situação geral de negligência tecnológica nas favelas. Essas duas perspectivas que competem entre si nos desafiam a considerar porque o apego afetivo nesse nível mais íntimo não nega os colapsos e falhas que ocorrem amplamente no sistema: os moradores adotam estratégias para tornar viáveis os ambientes tecnológicos extremamente injustos e incertos em que se encontram (Nemer, 2021, p. 85-86).
Por meio de histórias que circundam os telefones celulares, Nemer delineia os contornos da relação profundamente afetiva que se estabelece com aquilo que os objetos tecnológicos fazem, especialmente quando integrados nos círculos sociais e na contínua existência dos oprimidos. Da mesma forma, a frustração íntima experimentada pelos moradores das favelas com o teclado QWERTY – cuja disposição das letras e a baixa durabilidade frequentemente causam estranheza e irritação aos usuários – ilustra a relação de sentimentos intensos que se estabelecem com tecnologias particulares que estão sempre precisando de manutenção e ajustes para sustentarem com êxito os seus usos cotidianos. Essa persistência, muitas vezes realizada por meios externos aos legais ou tradicionais, como o remendo dos teclados com a colagem de letras usando fita transparente, por exemplo, atua como força estabilizadora dos sistemas tecnológicos nas favelas.
Com ricos exemplos destacados ao longo do capítulo, Nemer apresenta enfim o reparo como “uma forma silenciosa de cuidado”, que se exerce por meio de práticas comunitárias cotidianas de resistência ao iminente colapso oferecido pela infraestrutura precária das zonas de negligência contínua em que consistem as favelas.
Centros tecnológicos comunitários como tecnologias mundanas
Os chamados Centros Tecnológicos Comunitários (CTCs) – LAN houses, bibliotecas e Telecentros, “espaços seguros dos quais os moradores das favelas se apropriam para aliviar a opressão de suas vidas cotidianas” – acabam por expandir a compreensão da tecnologia mundana, mostrando o modo como os moradores das favelas “exercitam sua agência e sua consciência para lidar com os desafios associados à educação, à segurança, à pobreza e ao acesso ao mercado de trabalho” (Nemer, 2021, p. 92).
Como organizações locais, com ou sem fins lucrativos, que fornecem acesso a tecnologias digitais a populações urbanas de baixa renda. Embora grande parte dos CTCs direcionem suas ações ao simples fornecimento de acesso à tecnologia, outros oferecem treinamentos e aulas gerais ou especializadas. Segundo o autor, esses centros tecnológicos são apropriados por comunidades marginalizadas com o propósito de reivindicarem um espaço social vital em que negociam desafios relativos à informação que se encontram associados às suas vidas cotidianas.
Esses centros tecnológicos, cuja criação foi financiada pela prefeitura de Vitória por meio do Comitê para a Democratização da Internet (CDI), operam não só como espaços que fornecem acesso à tecnologia aos oprimidos, mas também como pontos de encontro. Nesses locais, as pessoas convivem e trocam experiências, conhecimentos e informações sobre os eventos das favelas, inserindo-se no cotidiano das comunidades como importantes espaços de sociabilidade – além de oferecer aos frequentadores sensação de segurança em meio à violência que muitas vezes assola a comunidade.
Assim, Nemer demonstra que os telecentros produzem benefícios às comunidades que não são percebidos pelos indicadores da Prefeitura, focados apenas em medidas de impacto econômico, como a melhoria das condições financeiras dos moradores e o uso dos computadores na aplicação para vagas de emprego. Isso ocorre porque os objetivos dos formuladores das políticas públicas muitas vezes não convergem com os interesses de seus destinatários. Por essa razão, os Telecentros frequentemente correm risco de fechamento, apesar dos incontestáveis benefícios que geram para as comunidades locais.
No mesmo sentido, Nemer identificou que as LAN houses igualmente funcionam como tecnologia mundana no cotidiano das favelas, constituindo verdadeiros centros comunitários. Constatou-se que as LAN houses são locais em que são compartilhados sentimentos de pertencimento entre os moradores, bem como a crença de que as necessidades de uns importavam para os outros, sendo que estas seriam atendidas por meio de um compromisso comunitário. As mulheres confiavam nas LAN houses para deixar seus filhos durante o dia – quando precisavam trabalhar – e os carteiros deixavam nesses locais as correspondências dos moradores que viviam nas regiões próximas.
Os serviços oferecidos pelas LAN houses iam além do mero fornecimento do acesso à internet, indo desde tarefas básicas como pagar contas e comprar cartões de recarga de celular até como extensões fundamentais das escolas públicas da região, já que eram utilizadas pelos alunos após o período escolar para realizarem suas tarefas de casa. Espaços comuns identificados pelo autor como locais em que pessoas adultas e idosas poderiam buscar empregos, redigir currículos e acessar serviços governamentais online, funcionando como ponto de contato das comunidades com instituições governamentais. Em resumo, tecnologias mundanas que conferiam aos moradores espaços sociais que contribuem para o seu bem-estar, promovendo agência humana e contribuindo para os laços de apoio mútuo.
Mídias sociais para a sobrevivência
As mídias sociais no “Território do Bem” são examinadas enquanto “permitiam aos moradores locais melhorarem sua influência digital, seus prospectos econômicos e relacionamentos interpessoais” (Nemer, 2021, p. 127). Tanto seus usos efetivos quanto os significativos atribuídos a essas tecnologias demonstram o engajamento nessas plataformas para além do mero entretenimento.
Utilizam-se dessas interfaces para escapar da violência nas ruas e combater a cultura do silêncio, exercendo uma espécie de expansão da consciência e promovendo melhorias em áreas comunitárias.
Histórias como a da Ana são um bom exemplo: “Ana, de 42 anos, e suas seis amigas disseram que o YouTube era sua mídia social favorita. Elas trabalhavam à tarde como faxineiras em um shopping fora de Itararé, e se reuniam toda manhã na Point LAN House. Juntas, elas conversavam sobre a novela do dia anterior, entravam em suas contas do Facebook e procuravam receitas. Contudo, em junho de 2012, as moças de Itararé se uniram em torno de uma causa mais importante: elas estavam tentando angariar fundos para completar a construção da pracinha. Cansadas de esperar pela prefeitura, elas foram para a LAN house para aprender novos padrões de crochê no YouTube e fazer roupas de bebê e panos de prato. Ana e suas amigas vendiam seu artesanato toda quarta-feira de manhã na feirinha. Elas esperavam usar os lucros para comprar cimento e pagar salários para mais pessoas trabalharem na construção, de modo que pudessem ter uma parte da pracinha pronta para uso. Inicialmente, perceberam seus esforços como uma tarefa difícil. […] Entretanto, um ano depois, a prefeitura terminou e inaugurou a pracinha e o campo de futebol. O dinheiro angariado por elas ajudou a comprar mobiliário próprio para áreas externas, como mesas e cadeiras para a comunidade. […] Nesse caso, Ana e suas amigas usaram um espaço seguro, a LAN house, para obter conhecimento e angariar fundos. Elas não venderam as coisas online, mas a internet foi parte desse repertório maior de oportunidades. A apropriação de tais espaços mostra como a tecnologia mundana também é um processo que reside na negociação tanto online como offline. […] Elas identificaram de forma crítica um problema de sua realidade e transformaram ação de modo que pudessem criar uma nova situação.” (Nemer, 2021, p. 141).
Obviamente, mídias sociais são também espaços em que são reproduzidas dinâmicas de exclusão nas quais a desigualdade social se faz presente, de modo contrário ao que esperam os tecnófilos que esperarão eternamente pela intensificação dos processos democráticos. Evidente que as opressões cotidianas que os moradores da favela experimentam na vida infiltram-se no ambiente digital, sendo estas as mesmas divisões sociais que segregam bairros marginalizados nas mídias sociais, além dos próprios moradores da favela.
Dimensão importante que não pode ser descurada dos interesses e das estratégias das corporações que se materializam nas mídias sociais, demonstrando que tais experiências atendem àqueles que as idealizam e as projetam, num limite tenso face aos agenciamentos, exigindo processos ativos e críticos dos envolvidos.
Faveladas com orgulho: resistindo à opressão de gênero no Território do Bem
Fundamental é o retrato das expressões de gênero e suas conexões com as múltiplas formas de violências ocorridas nesses espaços digitais. Materializadas nos CTCs e no Facebook, por meio de diversas formas de assédio, os modos como as mulheres resistem à opressão passa também pelos aparatos sociotécnicos.
A abordagem interseccional que nos conduz a violências contínuas e transversais, permitindo a Nemer analisar a construção dos espaços tecnológicos nas favelas. Excluídas do espaço das LAN houses, tal segregação acaba tornando evidente a dominação heterossexual masculina, que entende seus corpos como intrusos quando estão ocupando espaços construídos por e para homens. Qualquer ingenuidade cai por terra quando se pensa na solução via inclusão digital, principalmente desde o ponto de contribuir para resolver os problemas reais de gênero, como o sexismo, o assédio sexual e mesmo a vigilância. Suas experiências “online” às expõem a mais opressão de gênero, principalmente na forma de assédio. Todavia, muitas vezes não cessarão as tecnologias mundanas de resistir às formas de assédio e produzir engajamento político:
“Esse era o caso de Clarisse e Juliet, que criaram perfis de Facebook falsos com um nome, foto e bio de um homem. Usando essa conta de apresentação masculina, elas conseguiam entrar em grupos e páginas públicas do Facebook e participar sem temer o abuso digital e o assédio sexual. Fox e Tang observaram algo similar a essa tecnologia mundana, que chamaram de ‘mascaramento de gênero’. As mulheres em jogos online usavam avatares e nomes masculinos (ou de gênero neutro) para ‘passarem’ por jogadores homens e, assim, contornarem assédio específico a gênero. Essa tecnologia mundana parecia uma estratégia para lidar com o problema melhor do que a evasão, já que as mulheres podiam participar de páginas públicas do Facebook sem medo de retaliação”. (Nemer, 2021, p. 176-177)
Geografias de opressão: Revelando espaços de silenciamento
O preconceito de classe e raça presentes na sociedade brasileira amplia-se nas mídias sociais e nos recursos das plataformas. Como enfrentar atos violentos de racismo através de tecnologias mundanas que desafiem os limites sociais e étnicos de segregação?
Nemer analisa dois casos que permitem mostrar como as tecnologias mundanas colocam em xeque tais fronteiras e mobilizam diferentes geografias: i) os protestos de junho de 2013, quando os estudantes e as classes mais altas do Brasil organizaram protestos nas mídias sociais; e ii) os “rolézinhos”, em que adolescentes negros do Território do Bem combinam encontros no Facebook para deixar suas favelas e se encontrar no shopping, um lugar tradicionalmente feito para brancos e ricos.
Tais experiências mostram como os esforços dos moradores do Território do Bem em se unir a espaços públicos e participar de atividades que eram designadas a membros da classe mais alta foram rejeitados. Em ambos os casos, “a tecnologia mundana concedeu aos moradores da favela uma habilidade apenas limitada de protestar e cruzar limites sociais, porque suas ações provocaram uma reação viciosa de exclusão social e brutalidade policial contra os negros e pobres” (Nemer, 2021, p. 183). Entretanto, ele conclui que as “tecnologias mundanas desafiam os limites da segregação social, o que pode beneficiar nossa sociedade e pode, em última análise, reduzir a desigualdade e fortalecer nossa democracia” (Nemer, 2021, p. 206-207).
Tecnologias do opressor
A tecnologia do opressor, como forma majoritária padrão materializada e amplificada por meio da tecnologia, está farta de nos oferecer exemplo de suas estratégias. O modo como a tecnologia, especificamente o WhatsApp, foi utilizada na campanha eleitoral de 2018 a partir da difusão de desinformação que ajudou a eleger Jair Bolsonaro não é um caso isolado.
Dessa forma, Nemer discute os distintos usos da tecnologia como ferramentas de opressão utilizadas para propagar discursos de ódio contra minorias associadas às esquerdas, servindo também para serem assimiladas por parte dos vulnerabilizados em busca pela libertação. Sejam mediadas por algoritmos ou não, tais redes podem ser facilmente cooptadas em direção ao radicalismo, propiciando a disseminação de conteúdos de extrema direita com efeitos políticos graves, em especial durante os períodos eleitorais.
O caso brasileiro para o autor é peculiar demonstrando como se formou no país uma infraestrutura humana de fake news que contribuiu, entre outros fatores, para que Jair Bolsonaro fosse eleito presidente, evidenciando o modo como as plataformas de mídias sociais foram utilizadas enquanto tecnologias do opressor. Por essa razão, não será à toa que o estudo rigoroso, o debate profícuo e a regulamentação dessas plataformas colocam-se como aspectos centrais para que se possam enfrentar à altura as próximas batalhas políticas.
Tecnologias da esperança
O (im)possível das tecnologias mundanas ou o triunfo inexorável da tecnologia do opressor? Naturalmente, Nemer deixará como inspiração uma tal tecnologia da esperança inspirada pelas práticas de tecnologias-mundanas-do-eu, desencantadas pelos moradores de favelas brasileiras, mas não desesperançadas pelas condições precárias de existência. Mesmo que se busque reduzi-las a uma precariedade insustentável:
“A tecnologia mundana não trata da tecnologia em si. Em vez disso, trata de como os moradores da favela traziam suas esperanças para se apropriarem de maneira criativa e crítica de tecnologias (artefatos, processos e espaços) e de suas jornadas para se libertarem. A tecnologia mundana tratava de seres humanos oprimidos com esperanças por seu direito irrefutável: uma vida digna”. (Nemer, 2021, p. 244-245)
Tecnologias mundanas, enfim, confrontadas pelas opressões fundamentais, que permitem um outro mundo de (im)possíveis.
Ana Clara Elesbão é pesquisadora em Plataformas digitais e mestre e doutoranda em Ciências Criminais pela PUC do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Pablo Ornelas Rosa é professor da Universidade Vila Velha (UVV).
Augusto Jobim do Amaral é professor da PUCRS.