A televisão pública, mal-amada pelo poder
A decisão de Nicolas Sarkozy de nomear diretamente o presidente da France Télévisions trouxe à tona as difíceis relações entre o Estado e o audiovisual. O grupo público permanece sob a tutela de altos funcionários. Com a revolução digital, os problemas não são mais os mesmos de trinta anos atrásMarc Endeweld
O presidente francês Nicolas Sarkozy mostra decididamente uma ascendência especial sobre a mídia. No dia 29 de janeiro, ele convocou nada menos que seis redes nacionais (TF1, France 2, iTélé, BFM-TV, LCI, LCP) e duas redes internacionais (France 24 e TV5-Monde) para retransmitir sua entrevista com quatro jornalistas. Em particular, se confiarmos no que diz o l’Express,1 o mandatário se mostra contrariado com a ideia de que ele continua a ter influência nas escolhas dos presidentes da France Télévisions ou da Radio France. Sarkozy estaria cogitando até abolir a lei que ele próprio levou à votação em 2008 e que permite ao chefe de Estado nomear por decreto os responsáveis pelo audiovisual público: se isso acontecer, os felizardos seriam designados pelos deputados majoritários e da oposição, reunidos no interior da Comissão de Assuntos Culturais, após consulta ao Conselho Superior do Audiovisual (CSA).
O gosto pelo consenso nunca foi marca registrada de Sarkozy. Quando se trata de imprimir seu próprio estilo, ao longo do seu mandato, ele mostrou pouco pudor: foi em petit comité – e sob os conselhos de Alain Minc – que ele decidiu, em janeiro de 2008, suprimir totalmente a propaganda das redes da France Télévisions.2Em novembro de 2010, o Parlamento se opôs a essa decisão, permitindo ao grupo público, por meio de duas emendas legislativas, conservar a publicidade antes das 20 horas. Foi também sem debate que o chefe de Estado se atribuiu a prerrogativa de nomear diretamente os futuros presidentes do audiovisual público, que anteriormente eram escolhidos pelos “sábios” do CSA, instância reconhecida pela sua imparcialidade.
Quase sempre, em função da relação entre forças políticas e econômicas, o Poder Executivo tenta influenciar o audiovisual. A valsa dos dirigentes é arbitrária: em 1986, o poder de direita decide substituir os presidentes das redes públicas antes mesmo do final de seus mandatos. O que não impede a esquerda de agir da mesma maneira, por exemplo, em maio de 1990, quando força a demissão de Philippe Guilhaume, presidente das redes de TV Antenne 2 e da FR3. Este tinha provocado a ira da ministra delegada à comunicação, Catherine Tasca, que tinha julgado a sua eleição “inesperada e francamente indesejável”.3Muito antes de Sarkozy, Tasca declarava então ao jornal Libération4que o Estado poderia um dia “legitimamente” reivindicar a designação dos dirigentes das redes públicas.
Entretanto, além do modo de nominação, surge a questão da autonomia financeira e econômica. Isso porque, enquanto na Alemanha, por exemplo, a taxa que permite financiar a mídia pública é coletada por um organismo independente, na França, a mesma operação é realizada pelos serviços de Bercy, como é informalmente chamado o Ministério da Economia e Finanças do país. Os presidentes sucessivos das redes públicas devem negociar seus orçamentos de modo enérgico a cada ano com o Estado e seus representantes: os altos funcionários. Ora, estes últimos nunca tiveram muito apreço pela televisão pública, fonte, segundo eles, de conflitos políticos e gastos supérfluos. Além disso, eles não são nem um pouco sensíveis à noção de “serviço público”: “Eles são ao mesmo tempo muito preocupados com os interesses das redes privadas, como por exemplo, da TF1, e de lobbies culturais”, de acordo com um ex-dirigente da televisão pública.“Eles ouvem seus argumentos com atenção. Ficam de joelhos diante do capital.” Passando de um estrito controle político a um “simples” controle financeiro, o Poder Executivo – e seus correspondentes na administração – cuida para que as redes públicas não incomodem muito os grupos privados.
“Na França a televisão pública ainda é vista como uma alavanca direta da ação do Estado. Não a vemos como um modo de criar riquezas econômicas e culturais”,afirma hoje Catherine Trautmann, ministra da Cultura e da Comunicação entre 1997 e 2000, num governo socialista. Na sua opinião, somente a independência do financiamento – favorecida pela plurianualidade dos orçamentos – teria permitido uma gestão autônoma: “Eu gostaria que o Estado se comportasse como um acionário, elaborasse uma estratégia e que o presidente da France Télévisions não fosse um homem do poder, que ele pudesse conduzir uma verdadeira política de audiovisual público”. Dito de outra forma, a ministra socialista rejeita a ideia de que altos funcionários, principalmente os de Bercy, considerassem a France Télévisions como uma administração sob sua influência.
Mas Trautmannnão foi apoiada pelo seu governo. Em 1999, Bercy rejeitou a ideia de uma lei de financiamento trienal e a perspectiva de uma instauração progressiva de uma taxa (que pesaria mais sobre os mais ricos).
Enquanto uma parte da esquerda preconizava há tempos o fim da publicidade nas redes públicas, o governo socialista decide reduzir seu volume para oito minutos por hora. Visto dessa forma, Sarkozy não fez nada de inovador. Desprovidas de recursos, as redes públicas se tornaram ainda mais dependentes de Bercy.
De fato, há cerca de quinze anos, assistimos a um aumento do peso da alta administração sobre a governança da France Télévisions.Xavier Gouyou-Beauchamps (de 1996 a 1999) e Marc Tessier (de 1999 a 2005) tinham como característica comum o fato de serem ex-altos funcionários, ambos tecnocratas. O primeiro, antigo préfet(representante do Estado em escala local), tinha aconselhado o presidente Valéry Giscard d’Estaing e tinha participado em 1987, enquanto conselheiro do ministro da Cultura e da Comunicação da época, François Léotard, a privatizar a rede TF1; o segundo, ex-inspetor das finanças, foi diretor financeiro do Canal+ nos anos 1980. Dois presidentes que nunca ameaçariam os interesses industriais das redes privadas.
Entre 2005 e 2007, sob a presidência de Patrick de Carolis (eleito em 2005), foi o ex-diretor da Inspeção Geral das Finanças, Thierry Bert, que fora nomeado para diretor-geral do grupo público, encarregado da gestão e das finanças. Contaminado pela ideologia neoliberal, ele tinha a intenção de conceder para o setor privado o departamento de produção da rede France 3, considerada deficitária.
Perante os funcionários de Bercy, cujo objetivo é privatizar e reduzir o perímetro das redes públicas, as direções sucessivas da France Télévisions tiveram, em geral, pouca margem de manobra. A situação fica ainda mais complicada quando o presidente do grupo não é o candidato de quem está no poder. Eleito pelo CSA contra a vontade de Dominique de Villepin, então primeiro-ministro, e de Renaud Donnedieu de Vabres, ministro da Cultura e da Comunicação, De Carolis, que desejava desenvolver o serviço público, nunca teve o apoio do Estado, e isso, bem antes da chegada de Sarkozy.
Era digital
O lançamento da televisão digital (TNT) na França provocou uma evolução constante nos equilíbrios da audiência entre as diferentes redes nacionais. Além do mais, faz seis anos que os modos de consumo da televisão vêm sendo modificados pelo desenvolvimento da internet. As gerações mais jovens assistem a televisão pelo computador, baixando, em função das suas preferências, os programas preferidos – sobretudo seriados norte-americanos.
O antigo modelo da televisão explode. As redes clássicas abordam um público que está envelhecendo: a média de idade dos telespectadores da France Télévisions é de 55 anos, dez anos a mais do que a da BBC. Ainda raras há quinze anos, as imagens tornaram-se abundantes, imediatas, horizontais: ontem, as redes dispunham do monopólio da programação; agora, cada um pode se tornar um produtor de conteúdos e organizar seu programa à la carterecorrendo a serviços pagos ou gratuitos – uma evolução batizada de “deslinearização”.
A France Télévisions enfrenta diversos desafios. O controle dos direitos sobre os programas é de agora em diante essencial. A televisão conectada propõe acesso direto ao conteúdo por meio de uma conexão internet. Essa inovação tecnológica vai permitir que qualquer difusor transmita conteúdos em escala mundial, ultrapassando obstáculos clássicos da difusão hertziana. Alguns especialistas do audiovisual preveem uma reviravolta considerável dos hábitos de consumo.
O surgimento da televisão conectada afetará os modelos gratuitos: o YouTube projeta o lançamento de vinte canais de televisão. A batalha não está mais sendo travada em escala nacional. Para a France Télévisions, seria importante diversificar seus recursos. O grupo se encontra, no entanto, em uma situação precária, quando a maior parte de seus programas é realizada de modo terceirizado por algumas empresas de produção.
Sem contar que, na cabeça dos altos funcionários, o serviço público não tem vocação para desenvolver atividades econômicas (gestão internacional de direitos, venda de programas em suportes digitais, criação de serviços para o telespectador…) como substitutos para a publicidade clássica. Ao contrário, a BBC, no Reino Unido, tira daí uma parte importante de seus recursos: 18% de seu faturamento em 2005, por exemplo.
Em Bruxelas, os serviços públicos televisivos que se beneficiam da taxa obrigatória para o consumidor estão na mira dos departamentos jurídicos dos grupos de mídia privados – tanto televisões como imprensa –, que têm a intenção de barrar seu desenvolvimento digital em nome do direito à concorrência. A BBC, a Radio-Télévision Belge de la Communauté Française (RTBF) ou ainda a Allgemeine Rundfunkanstalt Deutschlands-Zweites Deutsches Fernsehen (ARD-ZDF) da Alemanha vão ter de reduzir seu avanço na internet, apesar de os telespectadores de hoje e de amanhã estarem nesse meio.
Desde as declarações contundentes de Sarkozy em 2008, o Estado parece bem afastado dessas considerações, preferindo impor à France Télévisions o financiamento de cada vez mais programas de vocação cultural, mesmo se o hermetismo destes últimos, geralmente realizados por “amigos”, impede a emissora de achar o seu público. De acordo com o relatório do Tribunal de Contas, em 2009,“as obrigações de investimento nos programas corresponderam a uma política cultural desejada pelo Estado que ultrapassa – ou até mesmo ignora – o interesse social da France Télévisions”.
Em resumo, o Estado, não assumindo sua política cultural, acaba por delegá-la a uma empresa pública, sem, no entanto, transferir os meios para uma condução satisfatória. Produtores e políticos parecem se preocupar muito pouco com o fato de Sarkozy ter transformado a France Télévisions numa grande administração “cultural” em mãos de altos funcionários que não gostam nem um pouco do serviço público. O objetivo seria o de livrar-se da empresa com o pretexto de um abandono minuciosamente organizado ao longo de trinta anos?
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Presidenciais: as propostas
“Serei um presidente que garante a independência da justiça e da mídia”, declarava em outubro de 2011 François Hollande, candidato socialista à eleição presidencial francesa. De fato, o Partido Socialista (PS) propõe no seu programa que a designação dos responsáveis da televisão e rádio públicas seja atribuída a uma autoridade independente e não mais ao chefe de Estado ou ao governo. “Nós gostaríamos de reformar o conselho de administração da France Télévisions para atribuir-lhe uma abertura, podendo acolher representantes parlamentares da maioria e da oposição”, afirmava Aurélie Filippetti, responsável pela cultura, o audiovisual e a mídia na equipe de campanha do candidato, durante o Festival Internacional de Programas Audiovisuais, no dia 27 de janeiro, em Biarritz. “Ainda não temos os detalhes, mas trata-se de um tipo de instância independente, como um conselho de administração, que nomearia o presidente. Um sistema que se assemelha ao modelo inglês.”
Em relação ao financiamento do audiovisual público, Filippetti não prevê nenhuma mudança: “É complicado aumentar taxas em tempos de crise”, explica.1Da mesma forma, o PS “não pretende continuar com a ideia de suprimir a publicidade antes das 20 horas na France Télévisions”, como está previsto por lei, pois “significaria fragilizar ainda mais o grupo”. Hollande se compromete também em preservar a independência da Agência France-Presse (AFP) e reforçar a lei sobre a proteção das fontes dos jornalistas. Além disso, apesar do desejo do candidato em aumentar o poder de sanção do Conselho Superior do Audiovisual (CSA) para obrigar as redes a melhor respeitarem as obrigações, ele não parece querer lutar contra a concentração da mídia nas mãos de alguns grupos industriais.
Com relação a esse assunto, o programa da Frente de Esquerda não tem ambiguidades: “Nós vamos propor uma lei contra as concentrações na imprensa, nas mídias e no audiovisual para liberá-los das lógicas financeiras e da ditadura da audiência. Vamos criar um Conselho Nacional das Mídias composto por eleitos, representantes dos profissionais e do público, que vai se encarregar da preservação do respeito à responsabilidade pública e nacional e de favorecer a criação de cooperativas de imprensa. Vamos lançar um novo polo público das mídias e garantir a existência de mídias associativas e de uma imprensa crítica”, afirma o partido.
Por outro lado, o Novo Partido Anticapitalista (NPA) propõe a criação de um polo público das mídias, no qual “toda a produção reintegrará as redes públicas”, assim como a substituição do CSA por “um organismo democrático de regulação das mídias”. O NPA deseja também a supressão total da publicidade nas redes públicas. O programa da coalizão Europa-Ecologia-Verdes propõe uma reforma do modo de nomeação dos dirigentes do audiovisual público, e deseja que “todo grupo que deter mais do que um determinado teto de capital de uma empresa do setor seja excluído do direito de responder a licitações”.
Segundo François Bayrou, candidato centrista do Movimento Democrata, o audiovisual público “deve, mais do que os outros, ser protegido em relação ao poder. Precisamos de uma lei nova para que a nomeação de seus responsáveis não seja feita pelo Executivo e que o pluralismo seja garantido na instância responsável. Eu penso que será necessário refletir sobre a composição do CSA e suas prerrogativas”.
Na União por um Movimento Popular (UMP), o partido do presidente da República, Franck Riester, secretário nacional responsável pela comunicação, continua defendendo as vantagens da reforma do serviço público desejada por Nicolas Sarkozy: “Um dos objetivos da reforma da France Télévisions é que a criação se faça sem pressão publicitária. Ela assegura, além disso, uma parte da renda substituindo o financiamento baseado na publicidade por um financiamento público”. (M. E.)
Marc Endeweld é Jornalista, autor deFrance Télévisions (off the record). Histoires secrètes d’une télé publique sous influences[France Télévisions (off the record): histórias secretas de uma TV pública sob influências], Flammarion, Paris, 2010.