A tragédia berbere
Há gerações a sobrevivência dos berberes está diretamente ligada ao cultivo das argânias, árvores que servem como barreira à desertificação. Mas, recentemente, as virtudes de seu fruto foram descobertas pelas grandes empresas de cosmético e a exploração descontrolada ameaça a floresta e a vida dos camponeses da região
Tamgoute el Jadid, periferia de Aoulouz, Marrocos. Antes do amanhecer, Kabira, de 26 anos, e suas vizinhas se espremem na caçamba de uma caminhonete.
“Voltaremos para casa apenas à noite”, suspiram. Depois da primeira oração, os veículos transportam as trabalhadoras agrícolas, que se mantêm cobertas por seus véus. São enviadas às fazendas de exploração intensiva, em geral mantidas por capital marroquino, francês ou espanhol. “Antes, trabalhávamos em nossas terras e nas dos vizinhos, sem obrigação ou conflitos entre os membros da comunidade. Agora, nas grandes fazendas, nós não temos direito de falar. Quando uma de nós não trabalha com rapidez, é insultada pelos chefes. Às vezes, eles nos batem com pedaços de madeira”, lamentam.
A planície do Souss se estende de Agadir até Aoulouz. A região é povoada por cerca de 3 milhões de habitantes, sendo a maioria deles camponeses de cultura berbere. De geração em geração, suas vidas estão ligadas ao cultivo das argânias, as árvores que formam uma floresta de clima semiárido e servem como barreira à desertificação. Desde 1925, uma lei nacional lhes concede o direito de uso desse recurso. Entre as árvores, os berberes cultivam trigo, dão pastagem às cabras e recolhem os frutos que caem durante o verão e servem para extrair o chamado óleo de argan.
Contudo, as políticas agrícolas de integração na economia mundial marginalizaram essa agricultura familiar. Desde os anos 1970, explica o economista Najib Akesbi, professor do Instituto de Agronomia e Veterinária Hassan II, o Estado direcionou sua atenção para algumas poucas áreas de culturas comerciais voltadas para a exportação, abandonando, pouco a pouco, a ideia de segurança alimentar. Em 1985, sob a tutela do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), os programas de ajustes estruturais deram início à liberalização do setor agrícola, preparando o terreno para os acordos de livre-mercado, especialmente com a União Europeia, e favorecendo a liberalização das importações e a redução de despesas estatais destinadas à agricultura. Nesse processo, parte das terras públicas ou coletivas foi privatizada.
É nesse contexto que a planície do Souss se tornou a primeira área em produção de legumes do país. A área também registra recordes nacionais no cultivo de frutas cítricas. Isso, no entanto, não é suficiente para o ministro da Agricultura marroquino, Aziz Akhannouch, que ambiciona transformar essa planície “num dos centros agrícolas mais dinâmicos do mundo” até 2015.
Kabira não vê com a mesma animação as perspectivas de desenvolvimento da sua terra natal. “Tomates, laranjas, eu já fiz de tudo!”, diz. Há 18 anos, quando a barragem Aoulouz começou a funcionar, sua família perdeu a fazenda, que foi inundada. Ela era jovem, mas lembra da mudança para o subúrbio de Tamgoute el Jadid e dos poucos subsídios recebidos, gastos em alguns meses. Ela teve então que começar a trabalhar nas grandes fazendas, sem contrato e à mercê das colheitas, ganhando 50 dirhams por dia (4,5 euros).
O mesmo cenário se reproduziu em 2001, quando começou a ser construída a barragem vizinha de Mokhtar Soussi. “Durante esse ano, nós trabalhamos com prejuízo, pois a colheita do trigo foi fraca. As oliveiras não deram nada também. Para sobreviver a maior parte entre nós é obrigada a trabalhar em outro lugar”, lamenta Driss Aakik, presidente do Sindicato dos Camponeses Pobres de Aoulouz, que reúne uma centena de famílias. Os camponeses se manifestam regularmente para questionar a política de investimento do Estado. “Ela está focalizada em algumas zonas irrigadas, graças a essas grandes obras hidráulicas”, denuncia Amal Lahoucine, militante da União Marroquina do Trabalho (UMT), de Taroudant.
Incentivada pelo Banco Mundial, essa política de grandes barragens gerou disparidades consideráveis. “Mais de 70% dos investimentos públicos na agricultura vão para projetos de irrigação, que beneficiam os agricultores relativamente mais afortunados e os grandes exportadores”, reconhece a instituição. Paralelamente, milhares de pequenas propriedades continuam em terras estéreis e não irrigadas, sem acesso aos financiamentos bancários.
Sem carteira assinada
Khadija, de 12 anos, é vizinha de Kabira e trabalha na colheita de tangerinas. “Normalmente, somos pagas a cada 15 dias. Mas, já comecei há dois meses e ainda não recebi nenhum salário!” Sua amiga Thouraya, 16 anos, trabalha há um ano e meio na mesma empresa, sem nunca ter visto nem a sombra de um contrato. A Previdência Social enviou a Kabira um demonstrativo de seu registro: “Em sete anos de trabalho, somente três meses foram declarados!”, se indigna.
Segundo Lahoucine Boulberj, responsável regional do setor agrícola da UMT, “entre os 70 mil trabalhadores agrícolas da região, 70% são mulheres e apenas 15 mil são registrados. Destes, muitos não têm as horas extras reconhecidas”. Entre as consequências estão a superflexibilidade sem auxílio desemprego e a ausência de férias remuneradas, aposentadoria, seguro e licença médica. “Estamos começando a discutir as doenças decorrentes do uso de pesticidas. Os produtos tóxicos fora das normas são frequentes aqui. Pela regra geral, os chefes pedem aos doentes para voltar quando estiverem se sentindo melhor, e quem ousa contestar é despedido! O direito de se sindicalizar é somente tolerado em determinados lugares”, acrescenta Boulberj.
A UMT reclama da não aplicação dos acordos já assinados com o sindicato patronal da francesa Soprofel, uma das mais importantes empresas da região e que distribui tomates na França sob a marca Idyl. Baseada em Chateaurenard, em Bouches- du-Rhône, a direção dessa companhia, que produziu 75 mil toneladas de legumes no Marrocos na última estação, não quis dar declarações.
Apoiando-se nas brechas do código trabalhista marroquino adotado em 2004, várias empresas demitiram grevistas alegando “obstrução do trabalho”. Os representantes sindicais de Chtouki denunciam o falso pretexto das demissões, que na realidade “visam livrar-se dos empregados sindicalizados”.
Em Biougra, a Associação Marroquina pelos Direitos Humanos (AMDH) aponta alguns casos de estupro nas fazendas. Parteira de formação, a vice-presidente da associação, Fatifa Sakr, se inquieta com a propagação da Aids e de outras doenças sexualmente transmissíveis e mostra a vulnerabilidade das trabalhadoras que vieram sozinhas ou com seus filhos dos douars (agrupamentos familiares) mais distantes da planície do Souss. “Não há alojamentos soc
iais e as poucas moradias nas fazendas são muito precárias”, reclama. Na comunidade rural d’Aït Amira, no douar Laarab, os trabalhadores agrícolas dormem em abrigos de tijolo, construídos num terreno baldio repleto de lixo. Segundo Oulhouss Lahoucine, presidente da secção local da AMDH, “a delinquência e o consumo de drogas chegam a níveis preocupantes”.
A estrada empoeirada leva a uma espécie de favela e oferece uma paisagem de desolação: estufas devastadas caem sobre o solo seco, por entre as argânias desidratadas. Em El Guerdane, quase 3 mil hectares de pomares foram abandonados entre 1995 e 2002 em razão do esgotamento das fontes hídricas. Um adutor de 90 km de comprimento, ainda em construção, deve irrigar os cultivos restantes. Saindo das barragens de Aoulouz, essa canalização costeia os campos secos de camponeses pobres privados de água.
Apesar das economias feitas pela precarização da mão-de-obra, os custos de irrigação diminuem os lucros dessas grandes fazendas. “A maioria deve agora bombear a mais de 200 metros de profundidade. Isso provoca uma queda do nível do lençol freático de cerca de 3 metros por ano. O déficit hídrico anual da região passou a 240 milhões de metros cúbicos”, constata Abdelkrim Azenfar, diretor regional das águas e florestas do sudoeste do Marrocos. Ele lamenta que essas empresas se preocupem pouco com o futuro do país. Após sugar toda a riqueza de uma área, elas se mudam para outra, que tornam estéril em seguida. E assim vão, sempre mais ao Sul, à procura do máximo de Sol: Guelmine e Dakhla, no Sahara ocidental, são as novas zonas de produção de tomates em estufas.
No Souss, segundo um relatório sobre águas e florestas, o impacto desse tipo de agricultura no cultivo da argânia é grave. Como salienta Benhammou Bouzemouri, diretor nacional de desenvolvimento florestal, a argânia representa entre 35% e 45% do rendimento familiar dos camponeses. Preocupado com as consequências de uma agricultura sedenta por água, Bouzemouri se alarma igualmente com o sucesso crescente, em escala mundial, do óleo extraído da argânia, que acentua a pressão sobre a floresta. “Em longo prazo, se nada for feito, podemos ir em direção a uma desertificação total.”
O sucesso comercial do óleo de argan poderia, no entanto, contribuir com o desenvolvimento de outra economia rural na região do Souss. Na verdade, já existe mais de uma centena de cooperativas de produção, em que 4 mil mulheres trabalham coletivamente.
As primeiras empresas sociais femininas de extração desse óleo começaram a existir no fim dos anos 1990, graças, especialmente, à química Zoubida Charrouf.
Suas pesquisas já tinham confirmado as virtudes da argânia, cujo uso quase não passava dos limites da floresta. A produção era feita em família. Uma vez secas, as frutas recolhidas são despolpadas para obter uma noz. Essa noz deve ser batida entre duas pedras para extrair as amêndoas. O savoir-faire das camponesas do Souss reside nessa ação secular: elas produzem um pouco mais de um quilo de amêndoas em um dia de trabalho. Contudo, é necessário espremer 2,5 kg para obter um litro de óleo.
De olho na Europa e na América
Essa produção foi colocada no mercado internacional em 2004. “Os grandes laboratórios começaram a fazer publicidade usando a imagem da mulher berbere a quem eles teoricamente deram trabalho e dignidade”, ironiza Charrouf. Em poucos anos, enquanto os intermediários se multiplicaram, industriais marroquinos e europeus instalaram em Casablanca e Marrakech pequenas unidades ou usinas com grande potencial, equipadas com máquinas de extração capazes de produzir rapidamente para exportação. O mercado da cosmética é promissor na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá e no Japão, onde o óleo de argan ocupa as prateleiras de beleza nos supermercados, no meio de uma gama cada vez maior de produtos vendidos à custa de muito esforço de marketing.
Mas nenhuma máquina amassa corretamente a noz de argan. Por isso, a maioria desses industriais compra toneladas de amêndoas no varejo por uma quantia irrisória, menos de 8 euros o quilo. Eles se abastecem com a produção das camponesas isoladas, que não têm poder de negociação do valor do que entregam.
“Em contrapartida, nas cooperativas a mulher ganha pelo menos 4 euros por dia, além de outras vantagens como curso de alfabetização, creche e eventualmente distribuição de benefícios”, observa Tarâabt Rachmain, presidente da Associação das Cooperativas de Argan (ANCA).
Graças à ajuda europeia, a maioria das 42 cooperativas membros da ANCA está equipada com prensas elétricas. No entanto, elas não conseguem competir na guerra dos preços dos industriais: o preço dos produtos industrializados é 80% menor e podem ser facilmente encontrados em supermercados no Marrocos.
Claro, na Europa o mesmo litro é vendido até dez vezes mais caro.
Entre esses industriais, o empresário francês Benoit Robinne ocupa posição de destaque. “Nós damos trabalho para cerca de 3 mil mulheres nos douars, de quem recebemos sacos de frutas. Pelo trabalho de trituração, as remuneramos com 5,3 euros por quilo e por dia” assegura Robinne. Sua empresa, a Abssim, produz de 8 mil a 12 mil litros por mês, segundo a diretora da usina em Casablanca. Para efeito de comparação, uma cooperativa não pode produzir mais que 15 litros de óleo no mesmo período.
Sob pressão da demanda, essa floresta, espalhada sobre 820 mil hectares, está cada vez mais ameaçada, ainda que tenha sido reconhecida “reserva da biosfera” pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). “Todos os frutos das argânias são aproveitados. Vemos até pessoas apanhar os frutos quebrando as flores. A floresta não se regenera mais naturalmente”, reclama Adelkrim Azenfar. Para piorar, as argânias não produziram nada no ano passado, resultado da seca, agora estrutural.
Rara, a matéria-prima viu seu preço triplicar em dois meses. Especuladores já estocaram as frutas para revender a preço alto aos industriais, obrigados a honrar suas encomendas. “As cooperativas pararam de produzir por falta de fundos para se aprovisionar em frutos”, alerta Rachmain. Se a colheita em 2009 deve ser melhor, a situação só pode piorar em longo prazo: os programas para plantio dessa árvore, que só dá frutos após dez anos, não chegam a compensar a perda de cerca de 600 hectares de floresta por ano. Mais de 7 mil ha foram destinados à cultura, em estufas ou em pleno campo. E por volta de 9 mil ha foram sacrificados em 2006 e2007, em prol do urbanismo e projetos turísticos.
É verdade que o ministro da Agricultura aumentou os esforços para proteger essa produ&
ccedil;ão específica na região. No Souss, a criação de uma indicação geográfica protegida para o óleo de argan (IGP) deve ajudar a conservar o valor agregado. Mas as dificuldades são muitas, a começar pela escolha do nome a proteger. “Argane! O nome correto do óleo”, defendem as cooperadoras. A palavra, porém, foi registrada nos anos 1980 pelo laboratório francês Pierre Fabre, que comercializou um creme à base desse óleo. Além disso, nada indica que o IGP protegerá as cooperativas tradicionais ou semi-mecanizadas face aos industriais. Mais que encorajar os pequenos produtores, seja da agricultura ou do cultivo da argânia, a política do ministro conforta, sobretudo, os exportadores.
De um lado, importantes subvenções em prol de equipamentos mais econômicos de irrigação são oferecidas apenas às fazendas de exploração de legumes; de outro, as ajudas destinadas às cooperativas se concentram na consolidação das estruturas existentes, muito fragilizadas, e não na criação de novas.
Assim, a recente cooperativa de Okhowa, em Tauroudant, não recebeu nem máquinas, nem subsídios. Malika, uma jovem mulher, cuja fazenda foi inundada por uma das barragens de Aoulouz, só pode contar com a motivação e a solidariedade das cerca de 30 associadas. “Nós estamos cansadas de trabalhar em grandes fazendas”, explica. As mulheres do sindicato de camponeses pobres de Aoulouz também pretendiam formar uma cooperativa, mas não têm recursos. “O que fazer então?”, questionam.
A agricultura familiar, a argânia e a criação de animais constituem os três recursos tradicionais das camponesas berberes do Souss. Cada vez mais cercadas pelas grandes empresas, elas veem sua cultura desaparecer. Kabira exprime a inquietude em um gesto que imita o voo de um avião em direção à Europa e depois aponta para o chão: “Aqui, wallou!” (nada!).
*Cécile Raimbeau é jornalista, autora de Argentine rebelle, un laboratoire de contre-puvoirs, Paris, Éditions Alternatives, 2006.