A traição da pátria e outras suposições literárias
Os escritores estrangeiros são recebidos aqui ? e não há diferença se bem ou mal: eles são sempre mais importantes ? com um tipo de sorriso bastante comumRenata Miloni
A perspectiva de um observador, na literatura, tem como benefício a análise unicamente perceptiva, que é diferente do ponto de vista de um escritor. Com ele, a análise é participativa, ou seja, a visão nítida mas imparcial de um todo não deve ser alcançada com muita facilidade. Por também fazer a literatura, o escritor já não consegue pensá-la sem ser parte dela. Milan Kundera, por exemplo, tem consciência da influência que sua profissão pode causar ao escrever sobre esta arte. Mas trata-se de um autor que sabe como se aproveitar nas próprias observações. E delas partiu a idéia para este texto, mais especificamente das terceira, quarta e quinta partes do ensaio “Die Weltliteratur”, do livro A cortina (Companhia das Letras, 2006).
O autor explica dois contextos nos quais uma obra de arte pode se estabelecer: o pequeno contexto, que envolve a história da nação da obra; e o grande contexto, que é a “história supranacional de sua arte”. Ao ler essas três partes do ensaio, não consegui evitar a tentativa de encaixar a literatura brasileira em um dos dois, mas não sei o que dar como resultado. Não sei, ainda, se há um resultado. Será que a literatura de qualquer país precisa se encontrar em algum desses contextos? Ou melhor, o que se pode dizer do que é escrito e das leituras seletivas em cada país quando se está em determinado contexto?
Goethe, citado por Kundera, foi o primeiro a deixar claro que estamos na “era da literatura mundial, e cabe a cada um de nós acelerar essa evolução”. E talvez seja este o centro da questão que quero apresentar: qual foi/é a contribuição da literatura brasileira para tal evolução? A análise presente é a da perspectiva já citada de observador: o que é possível concluir sobre a literatura nacional contemporânea e como aqui é tratado o que é produzido em outros países. O primeiro ponto é simples: a abordagem da literatura estrangeira. Talvez seja mais fácil explicar descrevendo uma expressão facial. Os escritores estrangeiros são recebidos aqui ? e não há diferença se bem ou mal: eles são sempre mais importantes ? com um tipo de sorriso bastante comum, com o qual qualquer pessoa da área deve estar bem familiarizada.
Um exemplo próximo, para não perder o foco, é quando um escritor encontra uma resenha sobre seu romance e se lembra de ter sido escrita por um amigo. A troca não foi das mais honestas ? e eles sabem e gostam disso ?, mas ao menos seu nome está ali: num texto assinado por aquele colega famoso que está sempre escrevendo o mesmo livro. Ou seja, a literatura estrangeira é recebida com toda a alegria cínica possível de brotar num ser humano inteligente. E não porque existe aquele pé atrás em relação ao que se escreve em outros países, não mesmo. Mas porque, no fundo, deixar de lado a própria literatura de alguma forma causa uma satisfação imensa. É a nossa cultura: praticamente ignorar e/ou menosprezar a arte nacional. Muitas vezes com razão, claro (perceba como a cultura me domina), mas já é uma tradição.
O Brasil é uma nação literária extremamente pequena, por isso tem a chance de se encaixar no que Kundera define como “provincianismo dos pequenos”:
(As pequenas nações) têm em alta estima a cultura mundial, mas esta lhes parece algo de estrangeiro, um firmamento distante, inacessível, uma realidade ideal com a qual sua literatura nacional pouco tem a ver.
O sorriso cínico
Sim, há momentos em que a análise pode ir para um caminho totalmente oposto. Afinal, além de se alimentar da cultura mundial, o Brasil jamais tratou a literatura de outros países da forma que Kundera explicou. Como já foi dito no texto, a relação é contrária. Por quê? Nosso país não chega a ignorar a produção literária, há vários espaços para a divulgação do que é produzido. Mas, ao mesmo tempo, existe uma força maior, digamos, que obriga silenciosamente a se pensar que a literatura daqui não tem capacidade de se sustentar mundialmente ou, pior, que é necessário aceitar melhor o que vem de fora para estar próximo a uma cultura que não seja tão vergonhosa como a nossa. Não estou dizendo que é, digo que assim é tratada.
Enquanto Kundera diz que “juntar-se aos confrades no território supranacional da arte é considerado pretensioso, arrogante em relação aos seus”, os brasileiros literatos apontam o dedo para quem se junta aos tais confrades, mas, na verdade, é seu lugar que buscam com o sorriso cínico. Aqui, só há a possessividade em relação ao artista, da qual fala o autor tcheco, quando ele próprio precisa gritar seu valor ou, então, nos momentos em que a hipocrisia domina o cenário.
Casos como quando se reclama que um escritor brasileiro, numa festa literária realizada aqui, deveria ter citado um conterrâneo só confirmam a maneira que lidam com a literatura nacional. Por um lado, é possível perceber o instante em que se dá o valor merecido a uma determinada obra. Mas, por outro, além de assumirem que um autor de outro país tem mais a acrescentar a qualquer cultura, se presencia a desvalorização total de qualquer importância que as obras contemporâneas possam ostentar ? em silêncio, claro. A literatura brasileira não existe mais, é o que se diz.
Se ela não tem mais como se firmar nem no próprio país, poderia ser uma arte sem pátria? Ou, ainda, aqueles que priorizam o que é feito em outros países são traidores da pátria? Seria o Brasil o traidor de si mesmo? A verdadeira pátria, neste caso, é a literatura à qual qualquer escritor deveria ser fiel, pois ela o situou no mundo. E ser fiel é honrar, respeitar e admirar, como, em teoria, num casamento? Muito mais: o exemplo aqui é de pátria, que não mede condições. Talvez nossa cultura jamais tenha cooperado para que soubéssemos o que é ser um defensor patriota, e isso poderia implicar numa ausência de personalidade nos literatos co