A urgência de um transporte sem catracas
No modelo historicamente dominante no Brasil, a obtenção de enormes lucros baseia-se em tarifas sempre crescentes, no sucateamento, na precarização das condições de trabalho e, atualmente, na exposição da população à pandemia. A alternativa a esse modelo mortífero exige a criação de um transporte que seja baseado nas necessidades e desejos da população – e de toda a população, não apenas da parcela desta que tem as condições de arcar com os custos da tarifa
Nos quintais de casas no interior do Brasil, arde um fogo escondido. Não se trata do destruidor fogo dos grandes incêndios do Pantanal, é o fogo de munturo. Depois de varrer as folhas secas no chão batido, os moradores locais acendem pequenas fogueiras para acabar com o entulho. É um fogo que queima por baixo, silencioso, não se vê as suas chamas.
De forma semelhante, as chamas da tarifa zero vêm silenciosamente avançando pelo Brasil. Em 2007, o Movimento Passe Livre – criado dois anos antes – tomou conhecimento de um projeto de lei do início dos anos 1990, criado por Lúcio Gregori, secretário de transportes à época, que propunha um transporte sem tarifa e sem catracas para a cidade de São Paulo. A partir desse momento, o Movimento decidiu expandir sua luta, até então voltada ao Passe Livre Estudantil. Entendendo que os deslocamentos pela cidade são uma necessidade fundamental e um direito de toda a população, passou a defender que é preciso rever o funcionamento do sistema de transportes como um todo, acabando de vez com cobrança de tarifas. Durante anos, no entanto, essa pauta foi tratada como uma utopia, uma ideia irreal de jovens inclinados a radicalismos sem propósito – algo reforçado principalmente pela forma como a grande mídia apresentou o tema.
Mas em 2013 a discussão sobre o transporte público no Brasil mudou definitivamente e ganhou dimensões inéditas. A revolta popular que se espalhou pelas ruas do país fez mais do que conquistar a revogação dos aumentos de tarifa em mais de cem cidades. A força das chamadas “jornadas de junho” difundiu a pauta da tarifa zero pelos confins do país, chegando até mesmo às pequenas cidades onde queima-se folhas no quintal. Foi com essa força que, em 2015, o transporte tornou-se um direito social garantido pela constituição. A Proposta de Emenda Constitucional que propôs essa inclusão do novo direito já existia desde 2011, mas foi a pressão vinda das manifestações que permitiu que ela fosse aprovada, e por unanimidade.
Passado o alvoroço em torno de junho de 2013, os holofotes se afastaram do Movimento Passe Livre e, aos olhares menos atentos, a chama pareceu se apagar. Acontece que o transporte nunca deixou de ser um ponto crítico do cotidiano da maioria da população brasileira, obrigada a se submeter a vagões e ônibus precários e a pagar passagens cada vez mais caras. Por isso, diversas lutas continuaram a ser travadas, mesmo que com menor visibilidade: lutas contra cortes de linhas de ônibus, contra aumentos de tarifa, pela criação de mais trajetos que atendam as periferias.
Mas neste ano de 2020, em meio à pandemia de Covid-19, o transporte coletivo voltou ao centro do debate público – desta vez como um dos principais espaços de aglomeração, onde a vida da população que não tem o privilégio de se isolar em casa é posta em risco todos os dias. Medidas desastrosas adotadas pelos governantes, como a redução nas frotas de ônibus, e a consequente lotação dos veículos, tornaram ainda mais evidente o antigo problema do financiamento do sistema de transportes baseado no pagamento de tarifas. Hoje, em praticamente 90% das cidades brasileiras, as empresas de ônibus são remuneradas por catraca rodada e não pelo custo das viagens que realizam (segundo a Associação Nacional de Transportes Públicos). Isso significa que quanto mais cheio o transporte, maior o lucro dos empresários e que, quando há uma queda na quantidade de pessoas transportadas, como a observada entre março e junho deste ano, os negócios vão mal. A resposta vinda de cima, então, é diminuir os custos, colocando menos veículos para rodar, submetendo as pessoas que usam e trabalham no transporte a maiores riscos de contaminação.
O que está em questão aqui não é um debate meramente técnico sobre o financiamento dos transportes. Está em questão a escolha política em relação ao modelo de transporte coletivo que teremos no país. No modelo historicamente dominante no Brasil, o transporte é tratado como um negócio: a obtenção de enormes lucros baseia-se em tarifas sempre crescentes, no sucateamento, na precarização das condições de trabalho e, atualmente, na exposição da população à pandemia. A alternativa a esse modelo mortífero exige uma mudança nos princípios que organizam o próprio sistema, a criação de um transporte que seja baseado nas necessidades e desejos da população – e de toda a população, não apenas da parcela dessa que tem as condições de arcar com os custos da tarifa.
Em um contexto de crise política, econômica e de saúde pública como o que vivemos atualmente, a tarifa zero é uma política mais urgente do que nunca. E ela carrega a possibilidade de mudar o lugar que o transporte ocupa na vida da maioria das pessoas que moram no Brasil. Com a tarifa zero, o transporte deixa de ser algo que gera sofrimento e um mecanismo de aprofundamento das desigualdades – que onera principalmente a população pobre, negra, periférica e as mulheres com os custos financeiros e de tempo de vida ligados aos deslocamentos diários. Se a tarifa é zerada, o transporte torna-se uma forma de ampliar o acesso a todos os outros direitos, pois retiram-se as catracas que excluem a população do acesso à saúde, à educação, ao lazer e, em suma, a uma vida digna.
Como uma força que avança no sentido dessa mudança, o fogo de munturo da tarifa zero continuou espalhando suas chamas e, desde o fim do ano passado, está em processo a regulamentação da emenda constitucional que tornou o transporte um direito social. Isso significa que estão em debate as medidas que serão tomadas para transformar esse direito uma realidade. Ou seja, do ponto de vista institucional, há uma janela de oportunidade rara para a criação de uma política federal de tarifa zero. Diante de tudo isso é que o Movimento Passe Livre lançou, no mês de setembro, a Campanha Nacional por um Fundo de Tarifa Zero. Com a criação desse fundo, torna-se possível arrecadar a verba necessária para financiar o transporte público sem tarifa em todo o país e definir de onde esse montante deve vir.
Atualmente, segundo dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), uma política nacional de tarifa zero custaria por volta de R$ 70 bilhões ao ano, o equivalente a 1% do PIB brasileiro. O que o MPL defende é a obtenção dessa quantia por meio da taxação de grandes fortunas, lucros e dividendos, e veículos de luxo – hoje isentos de impostos – como helicópteros, iates e jatos particulares. Em suma, a tarifa zero seria colocada em prática a partir de impostos progressivos. Funcionaria como um poderoso mecanismo de redistribuição de renda em um país em que a parcela mais rica da população é a que menos paga impostos e mais se beneficia da circulação de trabalhadoras e trabalhadores, que fazem as cidades funcionarem todos os dias.
Enquanto a regulamentação do transporte como direito social segue para as próximas etapas da tramitação institucional, passando pelas comissões da Câmara dos Deputados, a campanha do MPL vai ganhando força abaixo e à esquerda, sob o mote “Tarifa Zero: transporte pago pelos ricos e controlado pelo povo”. Trata-se de mais um passo em uma longa caminhada na qual a pauta da tarifa zero se fortalece e se consolida. Ao longo dos últimos anos, no Brasil e no resto do mundo, a quantidade de cidades que adotam transportes coletivos sem tarifa apenas cresce, provando a viabilidade e os inúmeros desdobramentos positivos dessa política. Nas eleições municipais, a defesa de modalidades de tarifa zero por candidatos de diversos partidos e linhas políticas apenas confirma que a pauta não pode mais ser ignorada. Como o fogo dos quintais, a luta por um transporte realmente público e de qualidade vai se espalhando por baixo, muitas vezes sem ser notada. No entanto, quando as chamas aparecem, o fogo já tomou conta de tudo.
Gabriela Dantas e Andressa Munturo são militantes do Movimento Passe Livre.