A Venezuela precisa sair do impasse
Após ter representado uma luz na grande noite neoliberal dos anos 2000, a Venezuela atravessa uma grave crise. Mais de 2 milhões de pessoas já deixaram o país, em uma população total de 31 milhões. Inicialmente internas, as convulsões assumiram dimensão internacional após a imposição de sanções pelos Estados Unidos. Estas complicam a busca de soluções para as dificuldades do país
O período durante o qual Hugo Chávez presidiu o destino da Venezuela (1999-2013) foi marcado por sucessos inquestionáveis, particularmente no que diz respeito à redução da pobreza. O chavismo também pode orgulhar-se de resultados para lá de respeitáveis em áreas mais inesperadas, como o crescimento econômico: o PIB, por exemplo, quintuplicou entre 1999 e 2014.1 Isso certamente explica seus numerosos sucessos eleitorais e a longevidade de sua hegemonia política. Esse contexto permitiu refundar instituições obsoletas por meio de um processo constituinte aberto e participativo, recorrendo sistematicamente ao voto popular – a ponto de ter levado o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva a dizer que na Venezuela “tem eleição todo ano e, quando não tem, Chávez inventa uma”. No plano regional, a revolução bolivariana ajudou a tornar possível a “onda vermelha” que varreu a região durante a primeira década do século,2 levando forças progressistas ao poder pela via eleitoral, muitas vezes pela primeira vez na história de países que pareciam determinados a colocar fim à sua condição de “quintal” dos Estados Unidos.
No entanto, a morte de Chávez (aos 58 anos, em março de 2013) e a transição política que levou ao poder seu sucessor, Nicolás Maduro, nas eleições presidenciais antecipadas de 14 de abril de 2013 inauguraram uma nova era. Com marcos difíceis de discernir.
Escoadouro de dólares
Desde 2014, a Venezuela atravessa a mais grave crise econômica de sua história, que não apenas provocou uma situação de angústia social, mas também contribuiu para aprofundar a polarização política que durante duas décadas caracterizou o país. Atingiu-se um ponto de ruptura entre o governo e a oposição, minando o funcionamento das instituições de 1999.
A natureza excepcional dessa crise deve-se tanto à sua duração como à sua gravidade. Em 2018, a Venezuela deve registrar o quinto ano consecutivo de recessão econômica, com uma contração do PIB que pode chegar a 18%, após uma queda, em 2007, entre 11% e 14%. Como o Estado venezuelano não publica dados macroeconômicos desde 2015, há quem sugira que as instituições internacionais, como o FMI ou as grandes instituições financeiras privadas, piorem os números em decorrência de preconceitos ideológicos. Mas cifras vazadas do governo confirmam uma queda do PIB de 16,5% em 2016.3 Entre 2014 e 2017, a contração acumulada da economia seria, portanto, de pelo menos 30%,4 um colapso comparável ao dos Estados Unidos entre 1929 e 1932, durante a Grande Depressão.
Não há dúvidas sobre as causas iniciais da desaceleração econômica constatada desde 2014. Em junho daquele ano, os preços internacionais do petróleo, que responde por 95% do valor das exportações venezuelanas, atingiram um pico e depois desabaram de US$ 100 para US$ 50 o barril em seis meses, depois para US$ 30, em janeiro de 2016. Porém, ao contrário do que diz a sabedoria popular, as mesmas causas não produzem mecanicamente os mesmos efeitos: tudo depende da estratégia adotada para lidar com elas. Em um contexto de choque exógeno de rara violência, a estratégia escolhida pelas autoridades venezuelanas é desconcertante, especialmente porque a economia dava mostras de fragilidade bem antes do colapso dos preços do petróleo.
Apesar de um nível de inflação estruturalmente alto5 (dois dígitos em tempos “normais”), o governo do presidente Maduro decidiu manter uma política de controle cambial que impunha a paridade fixa da moeda nacional, o bolívar, em relação ao dólar. Foi o suficiente para aguçar o apetite de quem logo percebeu que o mecanismo permitia comprar um ativo seguro (a moeda dos Estados Unidos) a um preço muito abaixo de seu valor real. Incentivando a fuga de capitais, a política cambial do governo transformou o país em um imenso escoadouro de divisas.6
Até 2014, as receitas do petróleo eram abundantes, mas o valor das importações (muitas vezes superfaturado) só aumentava, pois alimentava a estratégia de acumulação comum às classes burguesas dos países petrolíferos – a “captura da renda”, que consiste em: 1) transformar as reservas petrolíferas em dólares; 2) utilizar esses dólares para valorizar artificialmente a moeda nacional, elevando o poder de compra da população; 3) aumentar as vendas do setor de importação, dirigido pela elite. Depois, o preço do petróleo começou a cair…
O Estado decidiu financiar o déficit orçamentário (diferença entre despesas e receita) usando a famosa “máquina de imprimir dinheiro” e reduzir as importações por meio da venda de dólares no mercado oficial. Essas duas decisões marcaram o início da escassez7 e liberaram as tendências inflacionárias, que logo ficaram fora de controle: com uma massa monetária (número de cédulas em circulação) crescente e uma quantidade de bens e serviços decrescente, a explosão dos preços era inevitável.
O preço do dólar, procurado pelos importadores e também como moeda segura, explodiu no mercado negro. Rapidamente, o valor do dólar “paralelo” passou a ser utilizado na prática para definir o preço de bens e serviços. Com o aumento dos preços erodindo os salários e os orçamentos públicos, o Estado tentou sustentar o poder de compra colocando mais e mais cédulas em circulação. Entre 2014 e 2017, a massa monetária deu um salto de 8.500%. Desse modo, estavam dados todos os ingredientes necessários para que a economia entrasse em hiperinflação. Sem nenhuma surpresa, o índice de preços ao consumidor (uma medida comum da inflação) passou de 300% em 2016 para 2.000% em 2017. Para 2018, as estimativas variam entre 4.000% e 1.300.000%. Nesse último caso, mil bolívares no início do ano teriam o poder de compra de 0,07 bolívar doze meses depois.
Complicação adicional: 2016 e 2017 foram marcados por grandes vencimentos da dívida. A despeito das receitas do petróleo em queda livre, e seguindo a doutrina de Chávez, o governo de Maduro respeitou escrupulosamente seus compromissos. Pelo menos até dezembro de 2017. Então, em um discurso televisionado, o presidente anunciou que entre 2014 e 2017 o país havia pago a quantia colossal de US$ 71,7 bilhões em dívidas.
Mais uma vez, a estratégia do poder para enfrentar as dificuldades levanta muitas questões. Isso porque pagar as dívidas significou “monetizar” ativos da nação, em outras palavras, dá-los em garantia, ou até vendê-los, para levantar as somas de que o Estado necessitava. Durante esse período, a Venezuela usou o ouro monetário das reservas internacionais e recorreu a seus Direitos Especiais de Saque (SDR) no FMI.8 Isso quando não contraiu diretamente empréstimos de empresas petrolíferas de países aliados, como a russa Rosneft, dando como garantia 49,9% das ações de um de seus ativos mais valiosos, a refinaria Citgo, cuja sede e operações estão localizadas nos Estados Unidos.
Em setembro de 2016, a companhia petrolífera nacional PDVSA ofereceu a seus credores uma troca de obrigações que, para adiar em (apenas) três anos o vencimento de uma série de títulos (de 2017 para 2020), deu como garantia os 50,1% restantes do capital da Citgo, colocando em risco o controle dessa empresa pela PDVSA em caso de inadimplência. Essa operação de refinanciamento parcial, a única realizada durante a presidência de Maduro, atraiu basicamente fundos especulativos, seduzidos pela hipótese de calote que lhes permitiria colocar as mãos na refinaria.
Uma questão permanece: por que o Estado se sentiu obrigado a pagar, no prazo, até o último centavo de sua dívida quando sabia que desde 2014 suas receitas estavam derretendo? Por que, sem que fosse necessário dar um calote, não procurou fazer uma renegociação global com os credores? O acesso aos mercados de capitais tornava-se cada vez mais restrito e caro à medida que a situação se deteriorava, mas ainda era possível negociar, associando, por exemplo, a China, principal parceiro financeiro da Venezuela, que até hoje fornece dinheiro ao país (infelizmente, em quantidade insuficiente).
Denúncia das manobras do “império”
Estranhamente, foi apenas depois que o governo dos Estados Unidos impôs sanções financeiras contra o governo venezuelano e a PDVSA, em agosto de 2017, que Maduro anunciou sua vontade de renegociar os termos da dívida, majoritariamente de propriedade dos grandes fundos de pensão norte-americanos. Mas as sanções de Washington tinham precisamente o objetivo de proibir que entidades norte-americanas participassem do financiamento de Caracas. Em outras palavras, a Venezuela esperou a opção desaparecer para então considerá-la. Em dezembro de 2017, inaugurou um calote seletivo, não pagando, ou pagando com muito atraso, parte dos juros sobre a dívida.
Paradoxalmente, essa situação teria uma importância secundária se a produção de petróleo não tivesse desabado, passando de quase 3 milhões de barris por dia, em 2014, para menos de 1,5 milhão em 2018. Como no caso da inflação, a queda na produção de petróleo colocou o país no centro de uma espiral infernal: a produção cai por causa da falta de capital necessário para o investimento, mas essa queda reduz as receitas do país, piorando as perspectivas de produção petrolífera…
Colocado contra a parede, o governo Maduro denuncia uma “guerra econômica” fomentada pelo capital privado, nacional e internacional – que todo mundo sabe não ter amor nem admiração por Caracas. Apontar um culpado pode dar um significado político às dificuldades, mas ajuda a resolvê-las?
Muito ocupado em denunciar as manobras do “império” e dos “contrarrevolucionários” ao longo de seu primeiro mandato, Maduro recusou-se a adotar uma estratégia propriamente macroeconômica para enfrentar os desafios do país. No início de 2016, após o aprofundamento da crise ter dado à direita, em dezembro de 2015, uma maioria de dois terços na Assembleia Nacional, o jovem professor de sociologia Luis Salas, que tinha entre seus mais célebres postulados o de que “a inflação não é uma realidade”, foi nomeado chefe da equipe econômica do governo.
Considerando que a inflação havia sido o resultado de um esforço para criar escassez retirando produtos do mercado e/ou inflando seus preços – em outras palavras, de um projeto de sabotagem econômica –, o governo concentrou todos os seus esforços no controle de preços. Uma lei sobre “preços justos” chegou a limitar em 30% as margens autorizadas para cada ator das cadeias de produção e distribuição. Essa abordagem ignorou o fato de que a inflação depende de mecanismos macrossociais extremamente difíceis, se não impossíveis, de conter por meio do constrangimento dos indivíduos – pelo menos enquanto os fundamentos macroeconômicos que produzem a alta de preços não forem corrigidos. Qual é o sentido de regulamentar o preço de um bem muito procurado, um medicamento importado, por exemplo, se o aumento exponencial da massa monetária implica necessariamente que ela vai encontrar um comprador no mercado negro a um preço muito mais alto?
Quando o processo inflacionário é acionado, o medo gerado põe em movimento uma mecânica diabólica pela qual todos, querendo se proteger de um aumento antecipado dos preços, ajustam seus próprios preços e, ao fazê-lo, acabam contribuindo para o inchaço de todos eles. Uma lógica devastadora: os preços não são mais definidos em razão do custo de produção de um artigo, mas em razão do que se estima que será necessário desembolsar para produzi-lo novamente no futuro, ou então das margens necessárias para preservar o poder de compra em um contexto geral de hiperinflação. Os grandes comerciantes e industriais venezuelanos participaram da amplificação da onda especulativa ao quererem preservar suas margens em detrimento dos consumidores. No entanto, é equivocado atribuir-lhes a capacidade de gerar sozinhos essa situação, o que não seria materialmente possível sem uma expansão irracional da massa monetária.
O presidente Maduro mostrou-se cético sobre a oportunidade de fazer uma mudança de direção econômica. Em um discurso público dirigido aos produtores agrícolas, ele denunciou “esses economistas que querem nos dar lições, mas que nunca plantaram um tomate na vida”, antes de dizer que a revolução bolivariana “não segue os dogmas nem as receitas desses macroeconomistas que acham que sabem tudo” (12 set. 2017).
Rejeição a um símbolo
É salutar que os líderes políticos expressem sua independência de espírito em relação a um certo economicismo que costuma exigir o monopólio tecnocrático da condução da política. No entanto, decidir as orientações macroeconômicas de um país desprezando qualquer consideração técnica é, normalmente, o caminho mais rápido em direção ao desastre.
Combater a obsessão por um orçamento equilibrado? Uma causa justa, mas que não passa por déficits de mais de 20% do PIB durante quatro anos consecutivos, especialmente se for para eles não terem nenhum impacto – pelo contrário – sobre a reativação da economia, o poder de compra ou a repartição entre o capital e o trabalho dos frutos esperados de tal política. Aumentar os salários para proteger a classe trabalhadora do impacto negativo da inflação sobre o poder de compra? Um passo louvável, mas somente se derrotarmos a hidra inflacionária que devora qualquer aumento nominal dos salários. É verdade que a ousadia mostrada pelo governo bolivariano para superar o formalismo na nomeação dos altos funcionários provocou a inveja de muitos militantes de esquerda em outras latitudes, mas ela começa a parecer displicência quando faz mudar duas vezes em dois anos o presidente do Banco Central, mantendo em comum entre cada gestor apenas a inexperiência.
Foi preciso esperar até a reeleição de Maduro, em 20 de maio de 2018, para que um plano de reformas econômicas fosse anunciado, e mais três meses para que seu conteúdo fosse revelado, no dia 17 de agosto. Em uma virada de 180 graus, o presidente reconheceu que havia raízes macroeconômicas no fenômeno da inflação, antes de anunciar que o Estado adotaria uma disciplina de ferro, tendo por horizonte o déficit orçamentário zero. Outra inversão radical: a moeda nacional foi desvalorizada, e seu preço inicial em dólar foi definido à taxa do mercado negro, outrora chamada de “dólar criminoso”. O valor do novo “bolívar soberano”, que substituiu a moeda antiga com cinco zeros a menos, evoluirá para a paridade fixa com uma criptomoeda chamada petro, cujo preço deverá acompanhar o do barril do petróleo (ler boxe).
Como garantia de sua nova orientação de abertura econômica, o governo revogou a lei sobre “transações de câmbio ilegais”. Ao mesmo tempo, anunciou a livre conversibilidade do “bolívar soberano”, embora na verdade ela seja inaplicável, por causa do nível anêmico das reservas de câmbio internacionais. Indivíduos e empresas podem agora fazer transações cambiais de balcão, desde que respeitando a taxa fixada pelo Banco Central, o que fez reaparecer de facto um mercado negro no qual o dólar é negociado a taxas mais elevadas.
O salário mínimo real, que caiu de US$ 300 para quase US$ 1 por mês em quatro anos, foi artificialmente elevado em 3.000%, chegando a US$ 30 por mês. O governo também anunciou que ele passará a ser indexado ao preço do petro, na esperança de preservar seu poder de compra. Mas, sem que as modalidades práticas dessa indexação sejam explicadas, ele já havia perdido 50% de seu valor apenas dois meses após o aumento. Antecipando um forte impacto sobre os preços, o governo comprometeu-se a cobrir o custo dos aumentos salariais no setor privado durante três meses. Uma disposição estranha: ela só fez desequilibrar o impacto de seu custo sobre os preços ao consumidor e, portanto, sobre a inflação. Para ajudar os assalariados a passar os dias entre a data de anúncio das medidas e o primeiro dia de pagamento, um bônus equivalente a US$ 10 foi concedido a todos os portadores do Cartão da Pátria, documento de identidade ligado a uma base de dados controlada pela presidência, necessário para poder acessar os programas sociais emblemáticos do governo, como as cestas básicas de baixo custo.
Quanto à arrecadação, o governo aumentou o imposto sobre valor agregado (IVA) em quatro pontos e tomou várias medidas técnicas para melhorar a arrecadação proveniente das empresas. Mas, sem a volta do crescimento, esses ajustes não serão suficientes. Nem é preciso dizer, aliás, que esse programa altamente expansivo está em total contradição com o objetivo declarado de “déficit zero”. De fato, em meados de setembro de 2018, menos de um mês após os anúncios de Maduro, a base monetária ainda crescia a uma taxa de 28%… por semana.
Para além do debate sobre a coerência e a eficácia das medidas anunciadas, resta saber se algum programa econômico, seja ele qual for, poderá sozinho colocar a Venezuela de pé novamente. Como um país que perdeu mais da metade de sua produção de petróleo e mais de um terço do PIB em cinco anos pode inverter essa tendência, enquanto as sanções dos Estados Unidos impedem seu acesso ao financiamento internacional? Faz sentido tentar tranquilizar investidores proclamando uma adesão ao dogma do equilíbrio orçamentário, quando a suspensão do Parlamento levanta dúvidas sobre a própria legalidade do orçamento e das concessões e contratos assinados pelo Executivo?
Entre sua eleição, em abril de 2013, e o colapso do preço do barril de petróleo, em 2014-2015, Maduro foi senhor de seu destino: a principal dificuldade que enfrentou foi a inadequação de sua política econômica. Após a derrota nas eleições parlamentares de dezembro de 2015 e a suspensão de um Parlamento determinado a derrubá-lo, a crise institucional abriu o caminho para uma radicalização das ações da oposição, primeiro na frente doméstica, com a violência insurrecional, e depois no plano internacional, com a estratégia de isolamento diplomático e o estrangulamento financeiro. Em agosto de 2017, após seis meses de violência e a instalação de uma Assembleia Nacional Constituinte dominada por Maduro, as sanções de Washington – acompanhadas de manobras para promover um golpe em Caracas9 – complicaram ainda mais a situação.
Isso porque a descida venezuelana ao inferno deu-se em um momento no qual o continente americano passava por uma profunda mudança política. Entre 2015 e 2017, os principais bastiões do progressismo sul-americano, a começar pela Argentina e pelo Brasil, caíram nas mãos de coalizões de direita. Não apenas esses governos conservadores, animados por um espírito revanchista, manipularam a justiça para colocar seus oponentes de esquerda atrás das grades, mas também coordenaram suas ações em nível regional para superar um símbolo: a “revolução bolivariana” iniciada por Chávez.
Após ter sido ofuscada pelo peso da “onda vermelha” que varreu o continente no início do século XXI, a Organização dos Estados Americanos (OEA), braço executivo do projeto “pan-americano” de Washington, recuperou seu papel tradicional, pela ação de um homem inesperado. Luis Almagro, que acabava de deixar o cargo de ministro das Relações Exteriores de um governo progressista no Uruguai,10 tornou-se secretário-geral da entidade em maio de 2015 graças ao apoio de uma esquerda latino-americana ainda então majoritária. Muito rapidamente, ele se sentiu investido do papel de defensor da democracia continental, parecendo, no entanto, enxergar ameaças apenas entre seus velhos amigos políticos. Liberando-se da cautela diplomática que poderia ter possibilitado uma mediação, ele assumiu a causa da oposição venezuelana, chegando ao ponto de encorajar a violência insurrecional ao longo de 2017.
O espectro da intervenção militar
Sobre a delicada questão cubana, em torno da qual um bloco regional se organizou contra os Estados Unidos em 2009 para pôr fim ao ostracismo imposto à ilha desde a Guerra Fria, Almagro também se apressou em unir-se às direitas norte-americana e europeia. Na falta da maioria de dois terços necessária para iniciar um processo de suspensão da Venezuela da entidade hemisférica, o diplomata uruguaio patrocinou a criação de uma coalizão de governos conservadores que, sob o nome de Grupo de Lima, tentou projetar a imagem de um consenso regional em torno das posições mais duras em relação a Maduro. Alguns membros do grupo chegaram a pedir que o presidente venezuelano fosse colocado diante do Tribunal Penal Internacional (TPI). A chegada de Donald Trump à presidência iluminou a dramática reviravolta de Almagro: seu acordo com o inquilino da Casa Branca revelou-se tão profundo que ele foi a única autoridade latino-americana a apoiar a ideia de uma intervenção militar, aventada pelo republicano.
Longe de aproximar os atores venezuelanos de um acordo político, essa ofensiva regional os afastou. Um grande número de líderes de oposição passou a viver em um exílio voluntário ou forçado. Desse modo, eles só podem contar com estratégias internacionais, que, no momento, parecem limitar-se ou a mais sanções, ou à intervenção militar. As primeiras são a melhor garantia do status quo político, com o agravamento da escassez; a segunda precipitaria o desastre.
Embora seja necessário que a direção econômica da Venezuela volte para a via da racionalidade, a crise perdurará se não houver um acordo em torno das disputas políticas. Nenhum plano apresentado pela equipe no poder – por mais pertinente que seja – permitirá suspender as sanções ou restabelecer as garantias jurídicas. O diálogo para um acordo de coexistência política entre o governo e a oposição seria o meio mais simples (e mais pragmático) de evitar que o país afunde no abismo. Em vez de atiçar as divisões, a comunidade internacional deveria concentrar todos os seus esforços nessa direção.
Uma moeda de valor incerto
Criado em 2017, o petro é um criptoativo emitido pelo Estado venezuelano. Seu valor seria garantido pelo equivalente a 5 bilhões de barris de petróleo que estão sob o solo de um grande bloco localizado no Cinturão do Orinoco, o maior reservatório de petróleo do planeta. Ao adquirir um petro, o comprador adquire, ao mesmo tempo, os direitos sobre um barril de petróleo do bloco.
O projeto levanta dois problemas. Uma vez despojado dos neologismos relacionados ao mundo da criptomoeda – que está na moda há alguns anos –, o petro parece estranhamente com uma simples emissão de dívida soberana. Porém, para ser legal, qualquer nova emissão de dívida deve ser aprovada pela Assembleia Nacional, com a qual o governo venezuelano tem estado em conflito aberto desde que ela foi controlada pela oposição. Além disso, a produção de petróleo segue uma tendência de queda que não dá sinais de retorno – o que complica a estimativa de valor de um petróleo que ainda está debaixo da terra e cuja extração futura exigiria investimentos pesados que hoje Caracas não pode pagar. De fato, o bloco Ayacucho 1, dado como garantia pela petro, ainda não produz nada.
*Temir Porras Ponceleón é formado pela École Nationale d’Administration (turma Senghor). Ex-assessor do presidente Hugo Chávez em assuntos de política externa (2002-2004), ex-diretor do gabinete do presidente Nicolás Maduro (2007-2013) e ex-vice-ministro das Relações Exteriores (entre outras responsabilidades nos governos venezuelanos entre 2002 e 2013). Professor convidado na Sciences Po Paris.