A verdade tem estrutura de Round 6
Se os sonhos são a realização de desejos reprimidos, daqueles pensamentos que seriam insuportáveis na vigília, uma série não teria função semelhante? Round 6 vem como expressão de uma sociedade castradora (corte, divisão, separação) que integra o nosso cotidiano [com spoilers da série]
“Onde está teu irmão?
Não sei: sou eu guardião do meu irmão?
Gênesis 4:9
Em “O inferno”, segundo episódio da série sul-coreana Round 6, da Netflix, o detetive policial Hwang Jun-ho investiga o desaparecimento de seu irmão. Quando o policial chega à pensão onde Hwang In-ho mantinha seus pertences, a câmera no quarto se move sobre a escrivaninha e foca dois livros; um do psicanalista Jacques Lacan e o outro sobre o surrealista René Magritte. De um lado, o sujeito do desejo, de outro, imagens oníricas, como a obra de Magritte O império das luzes (1949), que aparece na capa do livro, em que dia e noite integram uma mesma cena, assim como consciente e inconsciente.
A relação mais direta entre Magritte e Lacan vem de uma outra obra, Interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, de 1900, uma espécie de livro de cabeceira dos surrealistas assinada pelo autor a partir do qual Lacan construiu seus seminários. Em Freud, os sonhos expressam os desejos não realizados, ou seja, o que fica reprimido na vida consciente retorna em sonhos (e também via chistes, atos falhos e sintomas). Na epígrafe do livro de Freud, “Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo” (“Se não posso dobrar os céus, Moverei o inferno), citação retirada do clássico da literatura escrito por Virgílio, A Eneida. Para a psicanálise, é preciso mover, assim como nos versos, a parte mais profunda do psiquismo, o inconsciente, para trabalhar as neuroses humanas.
Round 6 e o círculo das paixões reprimidas
Evidentemente, uma série não é um sonho. Mas se os sonhos são a realização de desejos reprimidos, daqueles pensamentos que seriam insuportáveis na vigília, uma série não teria função semelhante? A série Round 6, do criador Hwang Dong-hyuk, vem como expressão de uma sociedade castradora (corte, divisão, separação) que integra também o nosso cotidiano – falta de emprego, reforma trabalhista que retirou direitos dos trabalhadores, ausência de políticas públicas, criminalização das minorias, reproduções autoritárias nas instâncias de poder resultando em humilhações etc.
Não é à toa o sucesso de Round 6. Sua audiência pode ser menos pelo conteúdo violento e explícito e mais por explicitar a violência social a que as pessoas são submetidas diariamente. O conteúdo nos toca subjetivamente por revelar o que desejamos quando a injustiça bate à porta, mas que jamais admitimos sob o manto da civilidade. Um filme que tem efeito semelhante é O poço, de 2019, que integra também o catálogo da Netflix.
Diante de uma realidade que fere, a ficção vem como um espelho que torna suportável a experiência. Não seria esse um dos ensinamentos de Lacan ao dizer que “a verdade tem estrutura de ficção”? O sucesso de Round 6 resultaria dessa identificação na qual o outro, a outra cena, carrega traços da nossa experiência, mas, claro, sob a máscara do entretenimento. A máscara burla o mecanismo psíquico de defesa daquilo que é insuportável e assim tem uma função; insuportável assim como foi para Hwang Jun-ho descobrir que o mascarado, gerente dos jogos mortais, é Hwang In-ho, seu próprio irmão. Na cena do oitavo episódio, “O líder”, somos acometidos pela expressão facial de Jun-ho quando o mascarado revela sua identidade, tão aterrorizante quanto as cenas de violência explícitas nos jogos infantis.
A violência na série se vincula a violências diárias como: a negação de absorventes às mulheres carentes; as suspeitas de que o ministro da Economia, Paulo Guedes, pode ter lucrado com a valorização do dólar enquanto parte da população se submete a comprar ossos e restos de carne; quando governistas negam a eficácia da vacina e zombam dos mais de 600 mil mortos em consequência da Covid-19. Diante da violência cotidiana, a ficção nos vincula ao conteúdo explícito sem que a cena se apresente de maneira insuportável, já que ela nos vem como uma peça de ficção.
Em Round 6, 456 pessoas são convidadas a participar de uma misteriosa competição inspirada em brincadeiras de infância, mas somente uma sobreviverá. Em comum, todos são endividados ao extremo, ao nível de não poder retroalimentar o sistema que lucra com o próprio endividamento das pessoas. Tornam-se descartáveis. Matáveis. Nos jogos, emoções reprimidas, sufocadas. Não são difíceis de descrever os tipos de paixões trabalhadas na série: arrogância, delação, ódio, vingança, cólera, ciúme, covardia, medo e, a mais banalizada de todas, a violência. Paixões e mortes, elementos perfeitos para os apostadores do reality show. De quais paixões mesmo mais se alimentam as mídias que integram nossa realidade? De onde mesmo vem o lucro dos programas televisivos, radiofônicos, dos aplicativos de internet? O que faz posts de redes digitais e vídeos “bombarem”? Não estaríamos todos nós às voltas dessa lógica que retroalimenta o círculo de tais paixões?
A violência na série se dissemina em nós como zunidos de pernilongos num dia quente de verão, incomoda, mas não cessa de integrar a nossa realidade.
Mito bíblico atualizado
Na série, aos poucos somos levados a uma trama que remonta ao mito hebraico de Abel e Caim, já que o detetive Hwang Jun-ho se infiltra na estrutura dos jogos infantis e vorazes até seu desfecho, quando leva um tiro do irmão e cai de um penhasco — como se atualizasse a passagem bíblica. Fica a dúvida se, na próxima temporada, Jun-ho ressuscitará, deslocando-se de um mito bíblico para outro, como o de Lázaro.
No mito hebraico narrado no livro “Gênesis”, Caim e Abel querem agradar a Deus com suas oferendas sacrificiais. Quando Caim percebe que os animais sacrificados por Abel agradam mais a Deus, ele (Caim) se enche de ira e mata o irmão. “Onde está teu irmão?”, ecoa a voz celestial. “Não sei: sou eu guardião do meu irmão?
O filósofo Emmanuel Levinas mostrará a partir deste mito que o assassinato é, acima de tudo, um ato contra si mesmo. Diferentemente do que Caim pensava, seu irmão é responsabilidade sua. Estaríamos, no que defende Levinas, diante de um caso que fere a ética da alteridade. Não há como o humano sobreviver sozinho. Um bebê, quando nasce, não sobrevive um dia sem amparo; é a partir do outro que ele sobrevive. Se há uma ética em defesa da humanidade, essa é a da alteridade.
Na via lacaniana, os mitos organizam as estruturas simbólicas. A violência entre os irmãos, do mito bíblico à série, revela a violência entre os irmãos da comunidade social.
Janela indiscreta
Contrariamente, a série tem sido uma janela indiscreta aos moralistas de plantão, incomodados com a violência e os efeitos que pode causar nas crianças. Algumas críticas ressoam falas dos chamados “liberais” que confundem, propositalmente, liberdade econômica e moral, misturando os sentidos quando convém. A série está disponível na Netflix, plataforma de streaming que oferece perfis para crianças, ou seja, que oculta do catálogo filmes e séries que não são próprios para a idade. Então, por que a série é alvo de críticas moralistas? Simples, porque a violência que se vincula ao cotidiano de uma sociedade desigual fere o posicionamento ideológico de quem vive em função de sua reprodução.
Quando pais não estabelecem limites aos filhos, a insuportabilidade da permissividade vem como acusação ao outro daquilo que compete a si. Essa é a cena em que moralistas estão enroscados; a cena de acusar o outro daquilo que deseja, mas não tem coragem de fazer.
Teríamos, neste caso, que operar inversamente. Enquanto o filme se vincula a uma incômoda sensação de que seu conteúdo diz algo das injustiças deste mundo, vêm os conservadores na busca de tamponar a angústia que a recusa ao desejo produz. No fundo, o que querem dizer é: “não assistam à série”.
A cabeça de Medusa
Em um pequeno texto publicado em 1940, um ano depois de sua morte, Freud articula a cabeça decepada da Medusa (mitologia grega) com a castração. O medo da Medusa é o medo da castração que se origina na fase infantil. O horror à castração desdobra-se também em horror aos inimigos que podem colocar o sujeito em falta, diante de sua castração.
Se o olhar da Medusa petrifica o observador, não é de estranhar que o primeiro episódio da série — “Batatinha frita 1, 2, 3” — já se mostre tão assustador. Em alguns lugares, a brincadeira é chamada Congelar, ou seja, quando uma pessoa está na posição de Medusa, ela fica de costas para os outros participantes da brincadeira. Ao se virar, aquele que não estiver paralisado sai da brincadeira. Na mitologia, quando o sujeito olha para a cabeça da Medusa, com as serpentes, ele congela e morre. Poderíamos dizer: quando o sujeito está diante da castração, ele se paralisa e morre. Na brincadeira, aquele que não fica em posição de estátua é eliminado; na série a eliminação é literal (e não simbólica). O horror não se origina na cena violenta da série, mas no modo como a série se articula com os limites impostos pelo “outro” no decorrer de nossa constituição enquanto sujeitos.
Podemos dizer ainda que, quanto mais o sujeito renuncia à satisfação pulsional, mais ele se horroriza com a série – para retornar às críticas de cunho moral que a série tem recebido –, colocando-se como um messias que precisa purificar o mundo, mesmo que seja aderindo à segregação social. Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro aparece em vários eventos com crianças no colo, na maioria das vezes, simulando com os dedos uma arma. O evento mais recente envolveu uma criança usando farda da Polícia Militar de Minas Gerais e segurando uma arma de brinquedo durante visita a Belo Horizonte, em 30 de setembro. Para muitos, a realidade dos fatos não incomoda, enquanto a ficção surge como um problema.
José Isaías Venera é jornalista e professor da Univille e Univali.