A vida entre as chapadas e os vales
No quarto artigo da série “Os saberes dos povos do Cerrado e a biodiversidade“, vamos conhecer um pouco mais da realidade do Cerrado a partir dos povos e comunidades tradicionais que vivem em suas chapadas, serras, vales e veredas. Seus modos de vida ficaram consagrados na obra-prima de Guimarães Rosa “Grande Sertão: Veredas”, cujo título já apresenta os dois componentes da paisagem que são integrais a estes: os vales ou pés de serra onde vivem, fazem a roça e coletam diversos frutos nativos e, em algumas regiões, o capim dourado e onde a água superficial é abundante nas veredas; e os gerais (o “grande sertão”), terra de uso comum, onde o gado pasta sem cercas e onde coletam, a depender da região, as flores sempre-vivas, frutos nativos e raízes. Vamos conhecer algumas das comunidades que, no Oeste da Bahia e no Norte de Minas, são representativas dessa história de ocupação tradicional da terra e saber-fazer de convivência com os cerrados.
Ser geraizeiro e fecho de pasto é “ser uma comunidade que tem a sua independência”
As comunidades geraizeiras e de fundo e fecho de pasto do Oeste da Bahia têm memórias e histórias que remontam à sua origem indígena e negra, além dos primeiros vaqueiros do vale do rio São Francisco, que se espalharam por outros vales após a decadência das grandes fazendas. Em tempos mais recentes, rememoram ainda chegada de migrantes empurrados pelas grandes secas ocorridas em regiões do Semiárido, como as de 1890 e 1930, e até sobreviventes da Guerra de Canudos (1896-97). Ali, na beira dos extensos chapadões, em municípios como Correntina, São Desidério e Formosa do Rio Preto, essas comunidades herdaram de seus antepassados saberes de manejo que tornaram possíveis, até a década de 1970, a conservação da biodiversidade e das abundantes águas da região. Dos cerrados mais próximos às divisas da Bahia com os estados de Goiás, Tocantins e Piauí, muito foi desmatado, na escala dos milhões de hectares, para dar lugar à soja, ao milho e ao algodão do agronegócio; os cerrados nativos na região, atualmente, coincidem com as áreas dos fechos de pasto e ocupadas pelos geraizeiros, em geral, nos vales e cursos médios dos rios que formam as três bacias do oeste baiano – Grande, Corrente e Carinhanha.
Jamilton Magalhães, conhecido como Carreirinha, é da comunidade de Buriti, em Correntina, às margens do rio Arrojado. Ele nos conta um pouco de como funciona esse sofisticado manejo, saber dos fecheiros transmitido de geração em geração: “A gente usa o fecho em duas épocas do ano: no início da chuva [setembro a novembro], porque as nossas pequenas propriedades nos vales dos rios precisam de reforçar os capins que foram plantados no passado, para o capim nascer e criar. E aí a gente usa, geralmente no início da chuva, para os capins reforçarem, e no final da chuva. Então, com esse regime de uso, quem tem 20 hectares de terra nas beiras dos rios e veredas têm a capacidade de criar 30, 40 cabeças de gado por causa desses momentos estratégicos que tem de usar o fecho.” Esse modo de aproveitamento dos cerrados, garante o sustento digno para as famílias e abastecem as feiras e comércios regionais já que, nas comunidades, há as áreas destinadas para a agricultura nos “sítios”.
“Foi a coisa mais importante que aconteceu na nossa região, o capim dourado”
Além do gado, na região, o extrativismo tem uma função central nos modos de vida e na geração de renda para as comunidades fecheiras e geraizeiras a partir da convivência com os agroecossistemas do Cerrado. O capim dourado, por exemplo, uma das espécies de flores sempre-viva, é encontrado tanto no Oeste da Bahia, quanto na região do Jalapão, no Tocantins, e do Norte de Minas Gerais até o Goiás. Três artesãs da comunidade de Cacimbinha, em Formosa do Rio Preto, nos contam a respeito. Clara diz: “Nós colhemos o capim dourado no tempo. São duas colheitas, do capim grosso e do fino. O tempo de colhermos o grosso é em setembro e o fino em outubro.” Rosalina explica como o manejo deve ser feito para garantir a reprodução do capim: “Tem que colher ele e ir deixando logo a semente lá para não acabar. Ele é nativo aí, ele não é plantado. Se a gente não tem cuidado, ele acaba.” E Clara complementa com outros cuidados: “Pra preservar a colheita do capim e a natureza, a gente não queima todo ano. O ano que a gente está colhendo, já tem outra queimada para a gente colher no outro ano. Esse que a gente tá colhendo esse ano, nesse lugar a gente só vai queimar no outro ano.” O manejo que elas fazem dos campos, respeitando os tempos de colheita, o uso tradicional do fogo para promover a rebrota e deixando as sementes ao colher, é fundamental no cuidado e na reprodução da flora.
O capim dourado é matéria-prima para a confecção de diversos produtos, como bolsas, bijuterias e objetos de decoração, que são nacionalmente conhecidos e valorizados. Esse artesanato também tem um saber, herdado de tradições indígenas. Adalgisa, uma das artesãs, nos conta: “Para a gente começar, a gente tem que lavar o capim, botar para secar, depois a gente pega um óleo para endurecer um pouco para a gente começar a fazer os brincos, os colares, as pulseiras…” Clara completa: “Foi a coisa mais importante que aconteceu na nossa região, o capim dourado.” As mulheres artesãs do capim dourado, como Clara, Rosalina e Adalgisa, tiram o sustento de suas famílias também do extrativismo dos frutos do Cerrado (como a mangaba, o pequi, o puçá, a cagaita), além do trabalho na roça e do artesanato.
As mudanças para enfrentar os desafios: de gerais para fecho de pasto
Carreirinha explica um pouco como as formas de ocupar o território e fazer o manejo dos cerrados tiveram que ir mudando, à medida que iam enfrentando diversos desafios, a começar pela proibição do plantio nos brejos: “O pessoal usava muito, nesse período de manejo do rebanho, o costume de plantar nos brejos. Então, além de ser geraizeiro, era brejeiro, além de ser fecheiro, era brejeiro, porque usava o brejo, plantava arroz, plantava feijão. Então, se subir o rio Arrojado acima vai encontrar vários vestígios de onde moravam gente, e que hoje não mora mais. A lei proibiu o pessoal de usar o brejo, aí eles pararam”. E ele completa: “Eu moro na comunidade do Buriti e tenho uma cultura de subir rio acima em duas épocas do ano para fazer esse manejo com gado nesses espaços que se chamam fecho hoje”.
Se chama “fecho” hoje, mas nem sempre foi assim, como ele conta: “O fecho de pasto é um nome novo, não é antigo igual gerais, porque quando fechou, foi para ter controle, ter mais organização, ser mais uma forma de lutar e resistir. A partir de 70, 80 quando surgiu a necessidade de cercar, isso porque estava chegando a grilagem de terra, começou a chegar a pistolagem. E aí o pessoal teve que se organizar em regime de comunidades, em parentesco, compadrios e determinar o seu território, fazer o fechamento de seu território para melhor lutar e defender a sua forma de vida. Para se ter ideia do que era o gerais livre pra nós, o gado da Bahia encontrava com o gado do Goiás em cima das chapadas, o que hoje não acontece mais…”
Desde a década de 1970, as comunidades vêm sofrendo com a grilagem das chapadas, tendo seu acesso a essas áreas de uso comum frequentemente interditado pelo erguimento de cercas, fechamento de antigas estradas e pelo desmatamento. Embora tradicionalmente ocupadas por essas comunidades, a condição jurídica atual é de terras devolutas, ou seja, ainda são formalmente de domínio público. A Constituição da Bahia garante, no art. 178, parágrafo único, assim como a Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, que estas terras devem ser tituladas para os Fundos e Fechos de Pasto, quando ocupadas por essas comunidades. Em sentido contrário, há um processo intenso de invasão e grilagem pelos fazendeiros.
A luta pela água: “Ninguém vai morrer de sede nas margens do rio Arrojado”
O desmatamento das chapadas e o uso indiscriminado de pivôs centrais pelo agronegócio estão exaurindo as águas que infiltram nos gerais e recarregam o aquífero Urucuia, de onde brotam e alimentam as diversas nascentes dos rios afluentes da margem esquerda do rio São Francisco. Essas comunidades têm seus modos de vida entrelaçados com alguns desses rios como os afluentes dos rios Grande, Corrente e Carinhanha.
A situação é tão dramática, que após os já míticos protestos da população de Correntina, em novembro de 2017, uma carta pública denunciava: “O canto fúnebre das ‘Alimentadeiras de Alma’, antiga tradição religiosa de rezar pelos mortos, passou a ser realizado para chamar a atenção para a morte das nascentes e rios às centenas na região. Romarias com milhares de pessoas vêm sendo feitas nos últimos anos em cidades da região em protesto contra a destruição dos cerrados”. A frase “Ninguém vai morrer de sede nas margens do rio Arrojado” se tornou um lema dessa luta.
“Nosso objetivo é lutar, resistir para existir”
A luta dessas comunidades – organizadas em associações Geraizeiras ou no Coletivo de Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto do Oeste da Bahia, a depender da região do Cerrado baiano – é pelo seu território integral, fundamental para seu modo de vida, que, como nos conta Carreirinha, lhes dá muito orgulho: “Ser geraizeiro, se sentir geraizeiro é ser uma comunidade que tem a sua independência, porque nós, criadores de Fundo e Fecho de Pasto, temos a nossa independência aqui. Nós criamos gado, as terras são poucas, mas a gente cria e nós temos nossos territórios de fechos que ficam distante das comunidades, e que a gente faz esse manejo, e a gente produz de tudo. E na nossa comunidade, até um certo tempo, o que entrava mesmo de fora só era o sal. O sal que tem que ser buscado no comércio, no mercado, mas o mais era tudo produzido na comunidade. Então a gente sente que ser uma comunidade de fundo e fecho de pasto é ser uma comunidade que tem a sua independência própria, e a gente está lutando para manter isso”.
E ele complementa: “Nosso objetivo é lutar, resistir para existir. É o nosso lema, é resistir para existir porque o que tá posto, o que a gente tem enfrentado e o que vamos enfrentar não é fácil. Eu acho que nesse mundo, além do corona, tem o vírus do capital, que está sendo implantado fortemente para destruir e dizimar as comunidades. Ele vem aí para nos engolir. Eu acho que aí que a luta tem que continuar, que nós de fecho, a luta hoje ela não é só nossa do fecho que está sendo atacado, é de todos.”
Comunidades geraizeiras do Vale das Cancelas em Minas Gerais
A região dos gerais em Minas é ampla e diversa, de cerrados densos à mata seca. Ali encontramos a porção mineira da Serra do Espinhaço, divisor de águas das bacias dos rios São Francisco e Jequitinhonha. A Serra do Espinhaço, em toda sua extensão, que vai do centro de Minas e adentra a Bahia até a divisa com o Piauí, é uma cordilheira de múltiplos nomes, como a Serra da Bocaina, em cujo entorno encontramos o território do Vale das Cancelas, lugar de vida de comunidades geraizeiras.
Os passos vêm de longe no Vale das Cancelas e é por isso que a geraizeira Marlene Ribeiro de Sousa chama atenção da alegria e, também, da responsabilidade que é compartilhar conhecimentos sobre os modos de vida dali. O povo geraizeiro “são mulheres, são homens, são crianças que nasceram nos gerais, um lugar simplesmente maravilhoso do Norte de Minas Gerais”. E completa: “esse cerrado nosso, os gerais, onde fomos nascidos e criados à sétima geração.”
“O gado era criado às soltas, não tinha cercas, não tinha divisão”: era “Gerais”
Apesar da longa ocupação tradicional, Marlene nos conta que “muita gente não consegue entender o que é um território geraizeiro. Território geraizeiro é um lugar onde nós podemos colher todos os nossos frutos no cerrado, o pequi, a mangaba, o rufão, a fruta de leite. O gado era criado às soltas, não tinha cercas, não tinha divisão. As pessoas só sabiam que o seu gado tinha sua marca. E aí ele era livre, todos os animais eram livres”.
O saber-fazer dos geraizeiros do Vale das Cancelas foi constituindo um modo de vida, promovendo a ocupação do território com múltiplos usos e manejo da diversidade de agroecossistemas. Mas todo esse sistema, envolvendo o extrativismo, as roças e a criação de animais, foi profundamente afetado pela chegada dos monocultivos.
A chegada das empresas de monocultivo de eucalipto
Até a década de 1970, o modo de vida nos gerais manteve uma dinâmica de íntima convivência com o Cerrado até a chegada da grilagem nos gerais. Como nos conta Marlene, “esse Cerrado, esse gerais, ele despertou a curiosidade de muita gente que tem ganância por dinheiro”. Os grandes projetos de monocultivo de eucalipto chegaram no fim da década de 1970, invadindo os gerais, expropriando centenas de comunidades da região, mudando a paisagem e afetando seus modos de vida. Os camponeses foram ficam “recantilados”, por consequência da apropriação das terras de chapada pelas empresas de monocultivo de eucalipto.
Segundo Marlene, o que aconteceu, e ainda acontece, nos gerais foi uma contínua grilagem de terras promovida por empresas com apoio do Estado. A liberdade, que era parte dos modos de vida das comunidades geraizeiras, passou a ser constantemente sufocada: “As pessoas sofridas eram repreendidas com guardas, as pessoas não podiam nem pegar lenha. As pessoas eram massacradas, sacrificadas e as terras das pessoas foram sendo roubadas, foram sendo griladas. Então, isso aqui é o nosso Território Tradicional Geraizeiro. Isso aqui é um lugar simplesmente maravilhoso e nós estamos no vulcão de destruição”.
Marlene complementa que desde a década de 70 até hoje, a ação dessas empresas é pautada por uma ideia de vazio populacional, que não corresponde à realidade da ocupação tradicional do território. Citando o recente conflito com a linha de transmissão da Mantiqueira S.A., ela diz: “as empresas que vêm aqui, elas querem fazer os diagnósticos, mas que tenha só plantas, animais, e que seres humanos não existam. E nós estamos falando para o mundo que existe pessoas, existe pessoas maravilhosas aqui no Território Tradicional Geraizeiro de Vale das Cancelas”. Assim, com a invasão dos gerais pelos monocultivos de eucalipto, as comunidades foram tendo seu acesso a essas áreas de uso comum restringidas, o que foi as instando a criar estratégias de adaptação.
A luta pelo Território Tradicional Geraizeiro
No processo de fortalecimento da luta pelo Território Tradicional Geraizeiro, foi se aprofundando a percepção da necessidade de regularização, como uma estratégia de luta contra os grandes projetos degradadores, em defesa dos saberes das comunidades geraizeiras, cujos modos de vida são pautados pela convivência com os cerrados. Nesse processo, foram identificadas as comunidades que compõem o território, como nos conta Marlene: “São 73 comunidades dividido em três núcleos: o núcleo do Tingui, o núcleo do Lamarão, e o núcleo de Josenópolis. Esse território nosso faz parte de três municípios: Padre Carvalho, Josenópolis e Grão Mogol. E nós conseguimos nesse tempo difícil, nós conseguimos um avanço muito grande nessa autodefinição de Território Tradicional Geraizeiro”.
Os processos de autoreconhecimento e luta pelo Território do Vale das Cancelas influenciaram e foram fortalecidos através da Lei n० 21.147/14, que instituiu, no estado de Minas Gerais, uma política para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, garantindo o direito de manutenção de suas formas de vida e tradições, bem como também o decreto n°47.289, de 20 de novembro de 2017, que regulamenta a lei. Existem outros avanços na luta, como o certificado de autoafirmação identitária, reconhecido pela Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais e os processos relacionados à regularização do território tradicional, mesmo que ainda iniciais.
A r-existência das comunidades é dinâmica. O modo de vida tradicional enfrenta os desafios atuais de reconhecimento da identidade coletiva, de revitalização dos agroecossistemas e o enfrentamento às ameaças dos grandes projetos degradadores. Mais recentemente, a ameaça da mineração que vem rondando as comunidades se reflete em mais organização para defender o território, retomar áreas invadidas pelo eucalipto e garantir o reconhecimento de seu território tradicional. As comunidades continuam a luta, mostrando que a vida tradicional geraizeira resiste.
Ser apanhador de flores sempre-vivas é ter a Serra como “uma parte da gente”
Mais ao Sul do Vale das Cancelas, na porção meridional da Serra do Espinhaço, entre o Norte de Minas e o Vale do Jequitinhonha, vamos encontrar as comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas. Descendentes de povos indígenas, quilombolas e também de famílias lusitanas que ali se estabeleceram no período colonial, essas comunidades habitam historicamente as serras e os sertões adjacentes do Planalto Diamantino, como é chamada esta porção da cordilheira da Serra do Espinhaço. As famílias dessas comunidades praticam agricultura de gêneros alimentícios variados com uso de técnicas milenares, a solta do gado e a coleta de diversas espécies de inflorescências nativas dos campos rupestres localizados sobre a serra, cujo nome (sempre-vivas) reflete sua resiliência, mesmo após colhida.
A geografia dos apanhadores de flores é marcada pela presença das comunidades na diversidade de agroecossistemas que resultam da convivência com os cerrados nesta área, tal como nos conta Fátima Alves, mais conhecida como Tatinha, apanhadora de flores e integrante da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex): “A gente consegue dividir esses apanhadores de flores em três áreas: os que estão em cima da serra; os que estão no pé-da-serra e que fazem um processo de transumância (que é passar um período de 3 a 6 meses do ano em cima da serra e depois volta para o pé-da-serra, onde têm casas); e as comunidades que estão na beira do rio Jequitinhonha, que são as comunidades que também se identificam enquanto quilombolas. Então, esses têm as duas identidades que são apanhadores de flores e quilombolas. O que leva o nome desse povo pela prática tradicional é a panha da flor.”
“A Serra é memória, é sustento. É nossa vida, é nossa história, é sentimento.“
A colheita das flores se dá, em geral, entre os meses de maio e julho, que coincide com a época da seca, ou estiagem. Já na época das águas, ou das chuvas, as famílias encontram-se nas comunidades localizadas, sobremaneira, no sopé-da-serra a 600 metros de altitude, quando realizam o cultivo das roças familiares. O gado acompanha as famílias, ou seja, passa parte do ano pastando nos campos nativos do alto da serra e a outra parte nas pastagens cultivadas nos arredores das comunidades no sopé da serra. Algo marcante no modo de vida dessas comunidades é a moradia que utilizam quando estão sobre a serra, colhendo flores nos campos nativos, localizados a 1.400 metros de altitude, como nos conta Tatinha: “As nossas moradas são as lapas e isso ficou muito forte (…) no que a serra é para nós. Então em cima da Serra, as moradas são ranchos ou lapas que serve de moradia ali.”
As práticas tradicionais se fazem presentes cotidianamente na vida das famílias, em que o sagrado permeia a lógica de ser, criar e fazer, como expresso no Protocolo Comunitário de Consulta Prévia Apanhadoras e Apanhadores de Flores Sempre Vivas: “A Serra é uma parte da gente, toda nossa vida vem dela! Plantamos, colhemos, panhamos flor, criamos nossos filhos e somos avós. Podemos ir longe, mas esse lugar fica dentro da gente. Ela é nossa sobrevivência, é tudo para nós. A Serra é memória, é sustento. É nossa vida, é nossa história, é sentimento.”
Saberes tradicionais: “A riqueza está no povo que sabe cuidar desse território”
Os usos desses agroecossistemas foram desenvolvidos e reelaborados ao longo dos séculos de interação, em estreita relação com os ciclos naturais, e são ancorados numa ampla compreensão de dinâmicas ecológicas que viabilizam estratégias econômicas diversificadas. Como diz Tatinha, a “riqueza está tanto nas áreas dos campos, nas flores que é de uma beleza imensa, mas também no povo que sabe cuidar desse território, dessa terra, dessas águas, destas flores, então a riqueza está no conhecimento, e, muitas vezes, ele é desconsiderado e não é respeitado.”
O modo de vida e os conhecimentos tradicionais associados aos usos, transmitidos de geração em geração, são motivo de orgulho para as famílias que reconhecem a importância do que fazem para a reprodução da vida, como nos conta Tatinha: “uma demonstração de que esse manejo funciona, que ele se faz necessário e importante, é porque ele existe até hoje. Então é uma tradição passada de pai para filho, tanto o manejo com gado, o manejo para as flores, o manejo das roças”. No caso das roças, praticam uma técnica indígena milenar de manejo dos trópicos que se vale do uso da terra seguido do pousio para reposição da sua fertilidade natural. Tatinha complementa: “As roças são roças-de-toco, onde se usa a rotação. Então a roça ela anda, para não precisar trazer produtos agrícolas que não sejam naturais, então só usa o esterco. Então se usa descansar a terra, é uma das formas que se usa… Então, esse manejo foi uma experiência que os mais velhos foram fazendo até chegar nos mais novos. Com a flor é a mesma coisa, tem a época da panha, tem a quantidade certa que se colhe, tem onde que se panha, quem que panha”.
Tatinha explica como esse sistema é vivo, tendo práticas que são atualizadas observando as condições ou variações do clima a cada ano numa relação de interdependência entre as famílias e a natureza: “São regras que são aprendidas ao longo das gerações ali, são repassadas e ao mesmo tempo têm uma adaptação com as mudanças climáticas. Nem tudo que você fazia há cem anos atrás, era da mesma forma e na mesma época que você pode fazer hoje. A chuva às vezes vem menos, ou mais, isso depende muito do tempo também; é uma adaptação feita. Então, umas coisas que se faziam, por exemplo, todo ano, muitas vezes é necessário fazer com [intervalos maiores] de 2 anos (…). Então é de acordo com o tempo.”
Em março de 2020, esse sistema agrícola tradicional das comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO/ONU) como Patrimônio Agrícola Mundial. Esse título é inédito no Brasil e fortalece a importância das agriculturas realizadas pelos povos e comunidades tradicionais para a sociedade como um todo, como conta Tatinha: “A ONU reconhece o modo de vida dos apanhadores, do sistema agrícola tradicional como importante para o mundo. O que é isso? O modo de ser, fazer e viver dos apanhadores de flores é importante no mundo. Qual o grande ganho disso? Não é um ganho só para os apanhadores de flores, mas para todos os povos tradicionais do Brasil. Esse reconhecimento é de que tudo que a gente faz, o que a gente é, como que a gente vive, é importante. Se é importante, ele tem que ser preservado, ele tem que ser mantido e a vantagem é que é um sistema vivo.”
A chegada dos parques: “o que não concordamos é que se exclua as pessoas”
Apesar disso, essas comunidades têm sofrido limites de acesso aos campos nativos que manejam na serra em razão do estabelecimento de Unidades de Conservação (UCs) de proteção integral, como os parques, sobrepostos a suas terras tradicionalmente ocupadas sem que tenham sido consultados, gerando exclusão social e revolta, como lembra Tatinha: “essas unidades de conservação proíbem esse modo de vida tradicional, ameaçam as comunidades. Uma comunidade tradicional que é contrária à unidade de conservação de proteção integral, não quer dizer que ela é contrária à preservação da natureza, muito pelo contrário, ela é a favor. Só que o que não concordamos é que se exclua as pessoas.” Tatinha lembra que “quando chega um parque no território tradicional, ele só chega lá porque tinha um povo tradicional ali cuidando. Eles [os órgãos ambientais] chegaram ali e já acharam tudo pronto. Então é muito fácil, [chegar] depois de ter um povo que lutou, que resistiu e que manteve esse território com tudo que tem lá. Porque é lá que ainda tem água, lá tem plantas, lá tem animais. Porque a gente estava cuidando, porque é a nossa casa. A gente cuida da nossa casa. A gente está cuidando.”
Na atualidade, outras ameaças também estão se fazendo presentes nas comunidades, como a mineração e o monocultivo de eucalipto. A irracionalidade da lógica preservacionista que exclui as comunidades e permite a mineração fica evidente na fala de Tatinha: “De um lado, se os apanhadores de flores são criminalizados, por outro lado, a mineradora consegue uma licença [ambiental] para atuar. Porque aí, no caso, a visão que eles [os órgãos ambientais] têm é que a mineradora é desenvolvimento e o apanhador de flor é só destruição. Então eu não consigo entender essa lógica deles. Além de sermos criminalizados pela prática mais simples, que é a panha da flor.” Nesse contexto desafiador, as comunidades apanhadoras de flores seguem na luta em defesa de seus direitos e pelo reconhecimento de seu papel na conservação da biodiversidade, se organizando por meio da Codecex, cujo lema é “Sempre-viva na luta”!
Nos sertões dos cerrados: r-existência nas terras de uso comum
Geraizeiros, fecheiros e apanhadores de flores sempre-viva, assim como diversos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais das chapadas e serras do Cerrado, têm histórias que são, ao mesmo tempo, singulares e comuns entre si. Os sertões do grande domínio do Cerrado e suas zonas de transição foram, ao longo de muitos séculos a partir da colonização, espaço do exercício de liberdade e independência para aqueles que não queriam mais viver escravizados ou no trabalho subordinado nos engenhos de cana-de-açúcar, nas minas ou grandes fazendas de gado. Os gerais do Norte de Minas e Oeste da Bahia são os mais conhecidos cenários dessa história de busca por autonomia, mas a dinâmica de ocupação na base das chapadas e serras como estratégia de resistência nos interstícios da expansão da fronteira é perceptível em outras partes do Cerrado.
O grande aprendizado que nos trazem esses povos é que o Cerrado é um lugar de muitas riquezas e belezas, e que isso só se manteve até os dias de hoje, em função de seus modos de vida, que foram responsáveis por conservá-lo por milhares de anos, pois têm como horizonte uma perspectiva de vida. E assim é como nos ensina o grande Guimarães Rosa, na sua obra-prima que tão bem retratou esses povos: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem…”
Alexandre Gonçalves é Agente da Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais.
Carlos Walter Porto-Gonçalves é Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF e Coordenador do LEMTO – Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades.
Diana Aguiar é Assessora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.
Fernanda Testa Monteiro é Engenheira Agrônoma e Doutora em Geografia Humana pela USP.
Helena Lopes é Assessora da ActionAid e doutoranda em Ciências Sociais (CPDA/UFRRJ).
Julianna Malerba é Assessora da FASE, membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.
Maurício Correia é advogado popular, Coordenador da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR) – Bahia, e especialista em Direitos Sociais do Campo pela UFG.
Paulo Rogerio Gonçalves é Técnico da associação Alternativas para Pequena Agricultura no Tocantins – APATO.
Samuel Britto é Engenheiro Agrônomo e Educador Social da Comissão Pastoral da Terra do Centro Oeste da Bahia.