A visita de Francisco e a abertura do compasso
A Igreja muda mesmo é na longa duração. O que se viu na visita do papa, e também na entrevista à revista La Civiltà Cattolica, foram pequenos deslocamentos que ampliaram o campo de possiblidades de ser católico, como um compasso no qual uma pequena abertura em seu vértice amplia o espaço entre suas extremidadesRonaldo de Almeida
(Papa circula pelo centro do Rio do Janeiro: Francisco demonstrou uma sintonia fina com o etos católico brasileiro)
A visita do papa Francisco ao Brasil no mês de julho foi um evento midiático não apenas por estar associado à Jornada Mundial da Juventude, mas também pelo conteúdo de seu discurso e pelas sinalizações de sua performance pessoal. Já em setembro, em entrevista dada à revista jesuíta La Civiltà Cattolica, ele reafirmou o que havia dito durante as jornadas sobre a homossexualidade e foi um pouco mais longe na questão do aborto.
Olhando retrospectivamente, o que ficou em relevo no campo religioso brasileiro com a visita papal e o que ela sinalizou como possibilidades para o catolicismo mundial?
O primeiro aspecto a ser destacado é o aumento da autoestima dos católicos durante a visita e mesmo depois dela. É fato que, guardadas as diferenças de cada época, a primeira das três visitas do papa João Paulo II ao Brasil, em 1980, foi um evento igualmente catalisador do ponto de vista da audiência pública, até porque era a primeira vez que um papa vinha ao Brasil. Entretanto, os efeitos dela e das outras duas foram mais sobre o aumento das vocações para o sacerdócio – o que não é pouco para uma instituição em crise – do que dos fiéis. Ao contrário, estes só têm diminuído nas últimas décadas.
Acrescente-se à perda quantitativa certo consenso no país de que os católicos, em sua maioria, são pouco convictos de sua religiosidade, sobretudo diante da postura militante da maioria dos evangélicos. E, no plano mundial, os escândalos financeiros e sexuais envolvendo o Vaticano e outras cúrias ajudaram a tornar menos coercitiva a identificação com a Igreja Católica. Em outras palavras, há um bom tempo os católicos andam com o moral em baixa, e a única reação mais consistente foi mimetizar os evangélicos por meio da Renovação Carismática.
A visita de Francisco, como um contrafluxo, afetou a sensibilidade cristã, propiciando aos católicos um sentido para se declararem como tais. E mesmo cristãos não católicos e não cristãos se sensibilizaram com a performance papal, centrada na mensagem de solidariedade aos pobres e de mais generosidade com os diferentes (ateus, gays e dependentes de drogas ilícitas, citados explicitamente). Francisco procurou se mostrar próximo às pessoas, oferecendo-lhes acolhimento, movimento inverso da depuração do papa Bento XVI, já parcialmente presente em João Paulo II, que visava mais à ortodoxia em detrimento da quantidade de pessoas descompromissadas com o catolicismo.
Acolhimento em vez de depuração: essa foi uma mudança de sinalização dada pelo novo pontífice no Brasil. Em um dos sermões, Francisco pediu que as pessoas deixassem pelo menos um pedaço de seu coração para o cristianismo, mesmo tendo críticas à Igreja, pois ele florescerá. Trata-se de uma declaração de fé de quem reconhece estar em desvantagem e precisa estancar a perda do rebanho e buscar o que foi perdido.
Desde o início, tudo se passou como se fosse a visita de alguém que conhece a exata frequência dos vários jeitos de ser católico (ou religioso, de forma ampla) neste país. As homilias de Bento XVI, ao contrário, falavam de secularismo, humanismo e outros tantos temas e termos que simplesmente pouco sentido têm para boa parte dos brasileiros.
Ao ouvir os discursos de Francisco é possível perceber como os de Bento XVI, mesmo aqueles feitos em sua visita ao país, tinham como alvo principal a comunicação global, que, no entanto, não deixou de ser eurocêntrica. Em boa medida isso vale também para João Paulo II, que, embora polonês – ou seja, não era um representante da Europa Ocidental –, não deixava de ser também um cristão europeu.
Como um pastor que conhece seu rebanho, Francisco demonstrou uma sintonia fina com o etos católico brasileiro. O substrato comum de catolicismo ibérico conferiu-lhe familiaridade. Além disso, sua devoção a Nossa Senhora Aparecida e o Documento de Aparecida, resultado da 5a Conferência Episcopal Latino-Americana (Celam) e do qual foi o relator em 2007, são referências fortes evocadas por ele mesmo no início de seu pontificado. Trata-se, portanto, de um vizinho que nos conhece e nos frequenta há tempo. Em suma, Francisco estreou “jogando em casa” e “com a casa cheia” de jovens do mundo inteiro mobilizados para visibilizar sua fé.
Isso sem falar na cobertura da Rede Globo, em particular da Globo News, que se tornou, sem pudores, um canal católico durante a visita. A transmissão das duas últimas missas realizadas na praia de Copacabana, sábado à noite e domingo de manhã, foi um misto cenográfico bem dirigido entre a ritualística romana, da qual uma das principais expressões foi o Evangelho cantado em estilo gregoriano, e o emocionalismo dos cantores gospel do meio católico. Tudo isso transmitido (e produzido) com a qualidade Globo de televisão, que alternava cenas das missas com takes aéreos iniciados com a imagem do Cristo Redentor, passando pela Lagoa Rodrigo de Freitas e pela Baía de Guanabara, e terminando na multidão em Copacabana. A exuberância da natureza carioca estava englobada pela grandeza de Cristo, que era consagrado no rito católico.
A cobertura revelou ainda que alguns dos jornalistas globais podem também ser considerados quadros da Igreja Católica na cena pública ou no mínimo estão em sintonia com ela. Por outro lado, a Rede Record, da Igreja Universal, preocupou-se em mostrar a visita de Francisco intercalada com matérias sobre os escândalos financeiros com o Banco do Vaticano e as acusações de pedofilia de sacerdotes católicos. Entretanto, com a crescente empatia dos meios de comunicação pelo novo papa, as matérias da Record foram se tornado mais leves durante a semana.
Os sinais de Francisco
A Igreja Católica é uma instituição que se comunica recorrentemente por discursos oficiais; mas igualmente significativos são os ritos, atos e gestos que fizeram da visita papal uma verdadeira teatralização pastoral, na medida em que sinalizaram para onde ir, o que entender e como agir. Em suma, são metáforas com uma extensão capaz de levar os diferentes catolicismos a se reconhecerem na Igreja.
A forte ênfase em questões sociais, por exemplo, remeteu ao aggiornamento do catolicismo ao mundo contemporâneo, como proposto pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), que foi iniciado por João XXIII, mas teve seu impacto limitado no interior da Igreja durante os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI. Os discursos de Francisco, ao contrário, evocaram os ares do Vaticano II, que exerceu forte influência no catolicismo latino-americano, sobretudo no período das ditaduras militares. Não por acaso, o teólogo Leonardo Boff − mas não somente ele − procurou estabelecer pontes com o discurso do papa sobre a pobreza. Diga-se, contudo, que Francisco não compreende a pobreza nos termos marxistas da Teologia da Libertação.
À medida que os discursos, as performances rituais e os pequenos gestos foram configurando a primeira imagem do novo papa em escala mundial, acentuou-se também o contraponto com os principais adversários contemporâneos dos católicos brasileiros: os evangélicos pentecostais. Duas declarações de Francisco, em particular, revelaram o contraste.
Na primeira, ele afirmou que os ateus irão para o paraíso se forem boas pessoas. O Vaticano, posteriormente, retificou o papa, afirmando a necessidade da fé em Cristo. Na segunda, igualmente contundente, Francisco disse que se a pessoa (leigo, padre, freira) tem práticas homossexuais e busca a Deus, quem seria ele para julgá-la. Ao seguir o exemplo de Cristo – quando este perguntou aos seus discípulos quem não tinha pecado para atirar a primeira pedra na mulher adúltera –, a resposta de Francisco neutralizou até mesmo a ortodoxia católica.
Essas declarações podem ser consideradas opostas ao perfil fundamentalista de matriz puritana norte-americana da qual descende parte significativa dos evangélicos brasileiros (pentecostais e não pentecostais), como a Assembleia de Deus do pastor Silas Malafaia e do deputado federal Marcos Feliciano, os inquisidores contemporâneos. E o discurso papal sobre a pobreza foi, sem ser enunciado como tal, a antiteologia da prosperidade dos bispos Macedo e Sônia e dos apóstolos Waldemiro e Hernandes, com suas ênfases no empreendedorismo individual e no aumento da capacidade de consumo, principais vetores da ética religiosa-econômica neopentecostal.
Quando perguntado sobre a possibilidade de conflito com os evangélicos, Francisco afirmou que um Estado laico está em melhores condições de administrar situações de diversidade religiosa. Como a relação orgânica entre catolicismo e Brasil vem se desmanchando nos últimos cinquenta anos, a Igreja tem se pensado cada vez mais na lógica do pluralismo religioso concorrencial e menos em termos da tradição religiosa herdada.
Por fim, perante as outras visitas papais, pode-se dizer que a de Francisco “fez pouca carga” sobre a questão do aborto. As sinalizações foram tímidas, o que é uma posição menos intolerante comparada às de João Paulo II e Bento XVI. Este último chegou a afirmar que a homossexualidade é uma ameaça à humanidade. A performance do novo papa, ao contrário, procurou sinalizar a positividade da natalidade, o que foi metaforizado nas inúmeras vezes em que parou seu papamóvel para beijar e carregar crianças. Soa equivocado, portanto, quando parte das críticas feitas a Francisco era de que ele se manteve contrário ao aborto, apesar da modernidade de seu discurso. Afinal, o que se pode esperar do centro do poder eclesial e do mantenedor do status quoreligioso que não a ortodoxia?
A abertura do compasso
A visita de Francisco provocou uma espécie de revirada de terra, conferindo certo frescor ao catolicismo brasileiro. Ele configurou uma referência propositiva e atrativa, mais do que conservadora ou apenas reativa ao mundo contemporâneo. Evidentemente, definir o perfil desse pontificado ainda no primeiro ano é uma tremenda imprudência, mas é possível ler nos sinais de Francisco vetores que apontam para uma mudança institucional em relação aos seus dois últimos antecessores?
Para uma instituição paquidérmica e hierárquica como a Igreja Católica, o termo mudança é demais excessivo para o trabalho de um único pontificado. A Igreja muda mesmo é na longa duração. O que se viu na visita de julho, e também na entrevista à La Civiltà Cattolica de setembro, foram pequenos deslocamentos que ampliaram o campo de possiblidades de ser católico, como um compasso no qual uma pequena abertura em seu vértice amplia o espaço entre suas extremidades. Nestas encontram-se a diversidade do catolicismo e sua potência.
Isso posto, três questões merecem ser observadas nos próximos passos de Francisco. Primeira, essa abertura implica necessariamente o descompasso entre os vetores projetados em Francisco e aqueles do status quo político-administrativo e ideológico-religioso da instituição católica. Qual é o limite do descompasso entre Francisco e a hierarquia eclesial?
Tal descompasso está expresso no subtítulo de um belo artigo de Hannah Arendt, no livro Homens em tempos sombrios, sobre o papa João XXIII: “um cristão no trono de São Pedro de 1958 a 1963”. Não foi por acaso que Francisco acelerou o processo de canonização de João XXIII (iniciador do Concílio Vaticano II) para ser concluído junto com o de João Paulo II, que já estava em rápido andamento durante o pontificado de Bento XVI. Francisco, dessa forma, sinalizou para uma de suas referências e tem atuado para sacralizá-la, pois quanto mais sagrado é seu modelo de ação mais sua prática será sagrada. Afinal, as construções hagiográficas também são campo de disputa por legitimidade religiosa.
Segunda questão: como ele calibrará sua performance pessoal e institucional em contextos não latino-americanos? Como dito, Francisco “jogou em casa”, entre los hermanos, e nesta parte do mundo focou, no plano material, a desigualdade social latino-americana e, no plano pastoral, o acolhimento e o sentido de ser da Igreja. Mas como seu carisma dialogará com o secularismo europeu, a feitiçaria africana, a cultura consumista norte-americana, a política no mundo islâmico, a indiferença oriental ao cristianismo etc.?
Terceira e última interrogação: qual potencial renovador pode ter o pontificado de Francisco para o catolicismo brasileiro e mundial? Renovador no sentidode gerar um vínculo mais afetivo-comunitário com os fiéis ou de recuperar o vínculo afetivo-tradicional daqueles que foram batizados, crismados ou casados na Igreja. E, de maneira mais ampla, renovador como prometido no aggiornamentodo Vaticano II, o qual requer ajustes da ortodoxia católica às doxas do mundo contemporâneo, como o secularismo da ciência e a laicidade exigida pela democracia.
Para concluir, na entrevista dada à revista La Civiltà Cattolica, Francisco tematizou vários assuntos, sendo os mais recorrentes o jesuíta argentino Jorge Bergoglio e como o jesuitismo está internalizado no novo papa. Além de tratar de outros temas (como seu gosto cultural, as convicções, as fraquezas, as referências eclesiais, a relação com as pessoas, o perfil carismático, entre outros), Francisco declarou, como fizera no Brasil, que não tinha como julgar um homossexual se ele procurar a Deus, o qual nos criou livres. Ainda na entrevista, ele foi mais contundente em relação à questão do aborto do que havia sido no Brasil. Não que o tenha aprovado, muito pelo contrário, mas declarou que a Igreja não deve fazer desse assunto sua principal preocupação. Mais do que negar ou afirmar dogmas, sua questão é o que a instituição católica pode oferecer ao mundo contemporâneo. Até o momento, Francisco sinalizou uma Igreja acolhedora.
Vale lembrar, no entanto, que logo após seu retorno ao Vaticano, iniciou-se um debate público no Brasil a propósito da legalização de procedimentos profiláticos em hospitais em caso de estupro contra a mulher. Isso foi considerado por católicos (e evangélicos) conservadores como uma forma legal de aborto, e eles se manifestaram contrários à medida. No final da polêmica, a lei foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff, o que lhe causou algum custo político, como já havia ocorrido durante a campanha eleitoral de 2010.
Ou seja, se a visita de Francisco revolveu a terra católica, ainda há muito mofo para ser removido.
Ronaldo de Almeida é Professor de Antropologia da Unicamp, pesquisador do Cebrap e autor de A igreja Universal e seus demônios, Terceiro Nome, 2009.