A volta da violência política no Brasil
Parecem longínquas as capas de revistas que prometiam ao Brasil um futuro radiante. Abalado por uma onda de violências, como o assassinato da vereadora socialista Marielle Franco, o maior país da América do Sul multiplica rupturas com a ordem constitucional, a ponto de certos direitos adquiridos após o fim da ditadura, em 1984, parecerem ameaçados. A começar pela liberdade de expressão e de escolher seus dirigentes
Desde 2016 e da destituição da presidenta Dilma Rousseff pelo Congresso – uma operação que a esquerda designa como “golpe de Estado parlamentar” –, o Brasil parece retomar um passado que muitos achavam superado: o de uma terra regida pelos “colonos” e “bandeirantes”, caciques locais que se utilizavam da violência para se livrar das pessoas consideradas um estorvo. Estorvo são os de esquerda e os pobres, notadamente os sem-terra que ocupam terras improdutivas, que, segundo a Constituição, deveriam ser redistribuídas no âmbito da reforma agrária.
Enquanto o país comemora os 130 anos de abolição da escravatura no próximo 13 de maio, um dos símbolos mais marcantes desse triste período figura nas telas de televisão: o chicote de couro. Grandes proprietários o utilizaram para bater em camponeses do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que esperavam a passagem da caravana do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Sul do país, no dia 22 de março. A senadora Ana Amélia Lemos, do Partido Progressista (PP, direita), os felicitou sem nenhum constrangimento: “Atirar ovo, levantar o relho, mostra onde estão os gaúchos”.
Ao longo de uma carreira política de mais de cinquenta anos, o ex-presidente Lula – preso desde o dia 7 de abril – sempre percorreu o país sem sofrer nenhum perigo. Contudo, apenas no mês de março, precisou enfrentar uma série de bloqueios de milícias armadas de tratores, pedras, fuzis. O objetivo: impedir a caravana mobilizada pelo candidato à Presidência para reunir o apoio da população contra sua condenação a doze anos de prisão por corrupção passiva – condenação denunciada pela esquerda e também por 122 juristas brasileiros que, em um conjunto de artigos, evidenciam a parcialidade de uma acusação fundada na convicção do juiz, e não em provas.1
Dez camponeses torturados e mortos em 2017
O inquérito policial aberto para apurar as investidas bélicas contra a caravana no dia 27 de março já identificou a origem dos ataques: a fazenda de Leandro Bonotto. Desde a década de 1990, esse proprietário se opõe violentamente ao MST e à recuperação de terras empreendida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Não é exatamente uma surpresa: todos os ataques perpetrados contra a caravana de Lula foram preparados por associações de grandes proprietários que atacam abertamente o MST em ações violentas. Um deles, Gedeão Ferreira, presidente da Federação de Agricultura do Rio Grande do Sul, declarou quando tomou posse desse cargo: “Vamos enfrentar o MST e o Incra. Suas ocupações têm como única finalidade privar os produtores rurais de suas propriedades”.2 Condenado em 2002 por “desobediência à justiça” e “iniciação ao crime” depois de ter recusado o acesso de técnicos do Incra às suas propriedades, Ferreira foi absolvido no ano seguinte pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região, a mesma corte que condenou em segunda instância o ex-presidente Lula.
“O Brasil é um país muito violento, com um número recorde de homicídios, mas tradicionalmente não se conhecia esse fenômeno na política, contrariamente ao México ou à Colômbia”, analisa Maurício Santoro, professor de Ciência Política da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “No mesmo mês, atiraram na caravana do Lula e assassinaram uma vereadora de esquerda no Rio, Marielle Franco. Esses acontecimentos trágicos são inéditos em nossa história contemporânea”, completa. Pela primeira vez, a violência toca personalidades políticas de primeiro escalão. Para os movimentos sociais, isso não é novidade e tem crescido explicitamente. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), criada sob a ditadura militar pela Conferência Nacional dos Bispos no Brasil, setenta militantes foram assassinados em 2017, número maior que em 2016, com 61 vítimas. Entre as setenta mortes do ano passado, 52 foram ligadas a conflitos de terra.
“O fim do governo do PT [esquerda] conduziu a uma agudização nítida da violência”, confirma José Batista Afonso, advogado da CPT no estado do Pará. “Observa-se uma reorganização das associações de grandes proprietários de terra e sua aproximação com as forças da ordem. No Pará, isso é particularmente claro, com 21 assassinatos no ano passado. Há muito tempo não víamos isso”, completa. Entre esses mortos, estavam dez camponeses integrantes da Liga de Camponeses Pobres: foram torturados e em seguida executados durante uma ocupação da propriedade Santa Lúcia, no dia 24 de maio de 2017. Esse massacre em Pau D’Arco é o pior depois do massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, quando dezenove camponeses do MST foram executados por policiais. A investigação do caso em Pau D’Arco acaba de condenar 29 policiais. Os especialistas mostraram que, além dos ferimentos fatais, os corpos apresentavam múltiplas fraturas, atestando a tortura relatada por outras vítimas.
Em seus depoimentos, os policiais afirmam que entraram na fazenda com mandatos de interdição contra alguns camponeses e que eles atiraram. Dois policiais, contudo, fizeram acordo de delação premiada com redução da pena e confirmaram a versão dos sobreviventes. “Os especialistas mostraram também que os camponeses não atiraram; a versão dos policiais não se sustenta”, precisa o procurador Leonardo Caldas. O conflito é clássico nesse estado da Amazônia: a fazenda Santa Lúcia pertence à família Babinski e é uma de suas onze propriedades, que somam 40 mil hectares, quase quatro vezes o tamanho de Paris.
Mortes causadas pela polícia
De acordo com os movimentos sociais, essas terras eram bem utilizadas até a morte do patriarca, Honorato Babinski. As ocupações da Santa Lúcia começaram em 2013, quando 5.694 hectares deixaram de ser cultivados. O herdeiro, Honorato Babinski Filho, com 25 anos, vive no Rio de Janeiro e se apresenta como “ator” nas redes sociais, onde não esconde sua vida noturna agitada. Contudo, exige da justiça que expulse os ocupantes. À juíza que solicitou provas de atividade na fazenda, ele forneceu documentos como o contrato de compra e venda de setecentas vacas e um certificado de vacinação de 75 animais, porém com datas posteriores de um mês após as solicitações da justiça. Ele conseguiu então na justiça a expulsão dos camponeses, que voltariam a ocupar as terras mais três vezes. A última delas, fatal: “O inquérito deve determinar quem ordenou esse crime. Mas, como é comum no Pará, os policiais fazem bico como agentes de segurança para os latifundiários”, acrescenta o procurador, para explicar seu pessimismo quanto aos resultados da investigação.
Os policiais do Pará também vendem seus serviços a empresas de mineração. Em Barcarena, a associação Cainquiama denunciou diversas vezes os rejeitos de resíduos tóxicos praticados pela multinacional Norsk Hydro, presente em quarenta países e com 34,4% das ações pertencentes ao Estado norueguês. A Norsk Hydro possui em Barcarena “a maior refinaria de alumínio do mundo”, segundo a empresa. No dia 23 de fevereiro, a associação notificou novamente as autoridades sobre os rejeitos clandestinos, negados pela mineradora, mas confirmados pelas autoridades sanitárias locais. Ela mostrou às autoridades as canalizações dos rejeitos, obrigando a refinaria a reduzir sua produção em 50%. Duas semanas depois, em 12 de março, um dos dirigentes da associação, Paulo Sérgio, foi assassinado – o segundo em três meses.
Desde janeiro, a associação denunciou ameaças de morte proferidas por integrantes da Polícia Militar. “Imediatamente entrei em contato com o secretário de Segurança do estado do Pará para que ele destacasse uma proteção”, conta Armando Brasil, procurador de justiça militar no Pará. “Ele me respondeu que não era seu papel e ainda disse que os dirigentes da associação eram invasores de terras. Como se isso tivesse qualquer relação com o caso. Sem mencionar que isso jamais foi provado. Por outro lado, o assassinato aconteceu de fato”, relata. Segundo ele, “todo mundo sabe que policiais trabalham para a refinaria. O inquérito vai provar; de qualquer forma, não vejo outra explicação para esses assassinatos”. Desde então, pelo menos três mulheres da associação também sofreram ameaças de morte e ainda não contam com nenhuma medida de proteção. Até existe um programa de proteção de militantes, mas ele é ineficaz: as 683 pessoas que se beneficiam dele na maioria das vezes recebem apenas acompanhamento via telefone. Apenas catorze estão de fato sob proteção policial.
Presos sob acusações falaciosas
“Enfrentamos um ataque sem precedentes”, conta Ney Strozake, advogado do MST. “Em março, uma de nossas ocupações foi atingida com produtos tóxicos expelidos por aviões de grandes proprietários da Bahia. No Sul, vários de nossos militantes foram presos sob pretextos falaciosos, e liberá-los tem se mostrado bem complicado”, conta.
No dia 27 de março, ainda no Pará, o padre José Amaro foi preso. A polícia o acusa de uma série de crimes que vão de assédio sexual a lavagem de dinheiro, passando por invasão de terras. Esse padre lutou ao lado da religiosa Dorothy Stang, assassinada em 2005 por latifundiários. A prisão de Amaro foi denunciada por todos que conhecem suas ações junto aos pobres da região. “Trata-se de uma nova tática visando impedir o trabalho dessas pessoas”, comenta o diretor da Comissão Pastoral da Terra, Ruben Siqueira. “O assassinato de Dorothy Stang freou as ações violentas de latifundiários pela atenção internacional que o caso atraiu; destruir a reputação de um homem, contudo, pode ser mais eficaz para acabar com sua ação militante que matá-lo”, avalia.
Mesmo com as acusações partindo de latifundiários, a justiça confirmou a detenção provisória do padre Amaro. Ameaçado de morte repetidas vezes, o padre está na mesma prisão que o assassino de Stang, no estado brasileiro mais perigoso para os militantes. E a justiça não vê nenhum inconveniente nesse fato.
*Anne Vigna é jornalista.