A volta do oportunismo migratório
Do pós guerra até os anos 70, a economia francesa importou mão-de-obra. Nas décadas de 80 e 90, a situação se inverte e há um clima xenófobo. Finalmente, no limiar do novo milênio, fala-se de novo na imigração, mas de forma utilitarista e pragmáticaAlain-Marie Carron
Considerando-se a evolução das “mentalidades”, e “levando em conta sua demografia”, a Europa vai “necessitar da contribuição de mão-de-obra estrangeira”. [1] Partindo do ex-primeiro-ministro Alain Juppé, que, em Paris, três anos atrás, fizera esvaziar pela força a igreja São Bernardo ocupada por “sem documentos”, tais declarações deixaram confusos seus amigos da oposição. É certo que o próprio Charles Pasqua, outrora perseguidor de “clandestinos” e ardoroso defensor da “imigração zero”, já havia espalhado a confusão ao exigir… a regularização de todos os estrangeiros em situação irregular.
Desde a Segunda Guerra Mundial, a orientação francesa em matéria de imigração seguiu um movimento oscilatório. Até os anos 70, obedece antes de tudo às necessidades da economia em matéria de mão-de-obra: importada maciçamente, esta última forma um proletariado submetido indiscriminadamente a trabalhos pesados. Tal orientação em seguida se inverte nos anos 80 e 90: a crise acarreta um clima xenófobo e o “fechamento das fronteiras” — cujo objetivo não foi, é bom esclarecer, tirar os trabalhadores imigrantes da precariedade. E eis que, com o novo século, a Europa volta a falar de imigração de trabalhadores e redescobre algumas virtudes nestes imigrantes de quem, até recentemente, provinha todo o mal.
Estranha tendência
Estabeleceu-se assim o debate pela direita parlamentar, pouco inclinada, no entanto, a chocar seus eleitores neste terreno, considerado “sensível”. Os industriais, tradicionalmente reservados, arriscaram algumas “pequenas frases”. “Levando em conta o choque demográfico em 2005, não seria absurdo inverter os fluxos migratórios”, explicava Denis Gautier-Sauvaignac, delegado-geral da União das Indústrias Metalúrgicas e Mineiras (UIMM) e presidente da Unedic. [2]
Um relatório sobre a divisão da população das Nações Unidas, cuja primeira versão causou reações no início do ano 2000, veio dar uma dimensão planetária a estas mudanças. A Europa, de acordo com esse texto, teria necessidade de 700 milhões de imigrantes nos próximos cinqüenta anos — ou seja, uma média, para a França, de 1,7 milhão por ano! [3] O objetivo aqui não é comentar esses dados “extravagantes” [4] (que provêm, evidentemente, de uma simulação feita pelos mesmos tecnocratas que, em outras circunstâncias, seriam capazes de estabelecer “níveis de tolerância”), mas examinar a estranha tendência que apresenta e divulga tais cálculos.
O tom da seleção eugênica
Quais são os argumentos apresentados pelos partidários do retorno da imigração aceitável? Os parâmetros demográfico e econômico se articulam intimamente, havendo ainda reticências quanto a uma gestão mais “maleável” da força de trabalho. Na França, a partir de 1995, numa conjuntura difícil em que a extrema-direita reforça suas posições, o “relatório Boissonat” acena com a idéia de uma previsível “falta de mão-de-obra”, que torna “possível uma retomada da imigração como ocorreu ao longo das décadas 1950-1970”. [5]
Atualmente, a questão retorna, mais ou menos por toda a Europa: “Combatida por razões políticas, a imigração será defendida por razões econômicas?” pergunta Le Figaro économie de 3 de agosto de 2000, para quem a questão “não é mais tabu”. O deputado europeu Sami Naïr (MDC, próximo do socialismo) explica, num tom próximo ao dos adeptos da seleção eugênica: “A economia européia tem hoje necessidade de forças de trabalho jovens, dinâmicas e qualificadas, para assegurar o crescimento econômico, assim como para suprir o envelhecimento da população”. [6]
Incoerências políticas
Quem vai pagar nossas pensões, se não forem os novos imigrantes?, perguntam-se todos. Efetivamente, os cálculos da ONU mencionados acima se baseiam na vontade de manter no nível atual a relação entre a população ativa (15-64 anos) e o efetivo de 65 anos ou mais. “O problema crucial continua sendo o da fecundidade que não permite enfrentar, dentro do prazo, as exigências de financiamento da proteção social”, acrescenta o mesmo Le Figaro économie que, ainda ontem, atacava os imigrantes, denunciados em bloco como aproveitadores da mencionada proteção.
Desta forma, volta-se a colocar na ordem do dia o discurso do “repovoamento” característico do período imediato do pós-guerra. E, portanto, de maneira previsível, incoerências semelhantes nas futuras “políticas” de imigração. Para os empregadores, a principal questão é o déficit de pessoal qualificado, principalmente no setor das novas tecnologias. Por parte dos governantes, os questionamentos são um pouco diferentes: como ajustar, em qualidade e quantidade, o “fluxo” à “demanda”? Com que critérios selecionar os países de origem? Em suma, como impedir que os imigrantes fiquem satisfeitos e, uma vez garantida a substituição, “se insiram”? Pois esta é a única preocupação: livrar-se do estrangeiro que se tornar indesejável.
Anunciando a intenção de recorrer a 20 mil técnicos em informática estrangeiros, o chanceler alemão Gerhard Schröder provocou protestos à direita… e entre os sindicatos, em nome de quatro milhões de desempregados nacionais. Teve então de explicar que seriam concedidos vistos de cinco anos somente, e que nenhuma abertura para outros setores estava prevista. Como serão mandados embora? Mistério.
Difíceis, perigosos e sujos
“O recurso à mão-de-obra estrangeira”, explica afinal Le Figaro économie de 3 de agosto de 2000, “não se refere somente aos ’cérebros’, mas também aos empregos pouco ou nada qualificados, temporários ou não.” Entretanto, nesses setores chamados pelo eufemismo de “mão-de-obra”, não se observa falta efetiva de trabalhadores, mas uma incapacidade dos empregadores em tratar estes últimos condignamente e de acordo com a lei.
Na França, por exemplo, dos setores de hotelaria-restaurantes à colheita de frutas, passando pelos empreiteiros da construção civil e da confecção, o direito trabalhista quase não existe. [7] Mais do que “empregos que os franceses não querem”, trata-se de empregos chamados de “3D” (de demanding, dangerous, dirty: difíceis, perigosos e sujos) para os quais, em termos de condições de trabalho, de salário e de disponibilidade, os empregadores não querem franceses, por considerá-los muitos exigentes. É o que autoriza alguns deles a mostrar, paralelamente à imigração chamada de “alto nível”, uma preferência por “nossos” próprios recursos — mulheres, jovens e desempregados —, sugerindo desta forma um alinhamento por baixo das leis trabalhistas.
Supressão do veto
Enquanto isso, como não ficar surpreso quando, na Grécia, agricultores “revoltados contra a detenção de imigrantes pela polícia, pedem ao governo que cesse de realizar batidas (…) e, em contrapartida, se comprometem a levar de volta, pessoalmente, esses trabalhadores até a fronteira no final do período da colheita”? Os agricultores, prossegue essa notícia, “declararam que não podiam passar sem os trabalhadores imigrantes, dispostos a aceitar menos da metade da diária pedida pelos trabalhadores gregos”. [8]
Em muitos aspectos (seleção dos candidatos, política utilitarista de emprego), as contradições em que se enreda um intelectual respeitado, como Patrick Weil — cuja reflexão resultou, em 1997, numa pseudo-reformulação das leis francesas sobre a imigração —, não são pequenas. Ardoroso partidário do Estado-nação, desde sempre partidário de uma “despolitização” e do “consenso” sobre a imigração, ele é, a partir de agora, contrário às cotas e, ao mesmo tempo, a favor da “supressão do veto ao emprego” — mas somente para certas categorias de trabalhadores dentre os quais… precisamente os técnicos em informática. [9]
“Europeus” e “não-europeus”
Não era este mesmo especialista que demonstrava, em 1996, uma simpatia manifesta pelo sistema de cotas que permitia a 5.700 “estagiários” estrangeiros (Gastarbeitnehmer) trabalhar (e pretensamente se formar) na Alemanha durante dezoito meses? “Essas migrações regionais, de tendência bem temporária, correspondem a um interesse comum dos Estados e de todos os atores econômicos”, escrevia, então, conclamando a França a se engajar nessa via. [10] E daí em diante, ele vem dizendo que “são as empresas que contratam, e não o Estado”. [11]
A conjuntura ideológica atual revela, uma vez mais na história de determinados países europeus, o caráter profundamente oportunista, ou seja, utilitarista e pragmático, das “políticas” de imigração. A léguas de distância dos “grandes princípios” sistematicamente invocados, tais políticas estão sempre interessadas — mas raramente são capazes de ter continuidade, e ainda menos de ter respeito pelos imigrantes. O fulcro da questão está situado, na boa tradição dos demógrafos franceses da primeira metade deste século, [12] num pano de fundo de eugenia persistente, que consiste, por exemplo, em considerar oficialmente os “estrangeiros europeus” superiores aos “estrangeiros não-europeus”.
Situações kafkianas
Mas o governo francês, da mesma forma, não estaria dando mostras de cinismo, quando, por exemplo, pede oficialmente a seus administradores que transgridam a lei adotando um “procedimento de entrada simplificada para engenheiros formados em informática”? [13]
E o que dizer quando a metrópole importa maciçamente imigrantes caribenhos a fim de construir e fazer funcionar o pólo turístico de Saint Martin, para, em seguida, deixar o administrador desse município baixar um decreto, na esteira do ciclone de setembro de 1995, proibindo a (re)construção, na ilha, de qualquer habitação precária- a fim de se livrar desses estrangeiros que se tornaram indesejáveis? [14]
Os dirigentes europeus se reúnem em Nice em dezembro próximo para “harmonizar as políticas européias” em matéria de imigração. É de se temer que se caminhe para um questionamento acentuado dos vistos de permanência e trabalho, únicos e renováveis, com o cortejo de desgraças e de situações kafkianas embutido em todo sistema de imigração que
Alain-Marie Carron é jornalista e autor de inúmeros artigos sobre os EUA publicados no Le Monde Diplomatique França ao longo dos anos 70.