A volta do sindicalismo de resistência
Os movimentos sindicais guadalupenses estão em festa. Vitórias de categorias como a dos bombeiros, que com seis meses de greve conquistou o pagamento de horas extras engavetadas há anos, ou do setor da cana-de-açúcar, que recebeu aumento de 30%, refletem a força dessas organizações nacionais
Com a filha ao colo e a boca cheia de sorvete de goiaba, Olivier Méri fala em “luta de classes” e “ação de massas”. Esses termos são obsoletos na metrópole, mas não aqui, à beira do mangrove, o manguezal guadalupense. E hoje menos ainda, neste sábado de agosto em que os bombeiros do aeroporto comemoram sua vitória com a farra do “meio-dia- -meia-noite”. A festança, que inclui 12 horas ao som de zouk e uma degustação de pratos típicos da região, era a recompensa por seis meses de greve ininterruptos.
“Nós começamos com quase nada, não foi?” Olivier se volta para o seu “mentor”, Eddy Damas, um assalariado da France Télécom e executivo da União Geral dos Trabalhadores Guadalupenses (UGTG), que está fumando um cigarro no canto. “Em 2006, o conselho sindical da UGTG me deu ordem para reorganizar o sindicato das empresas do aeroporto. Aquele era um ponto estratégico, mas que ainda assim permanecia dormente. Na época, apenas um bombeiro era filiado. De tanto organizarmos reuniões, investigações, distribuição de panfletos, temos atualmente 17 homens de um total de 32”, comemora.
Olivier Méri caminha até a pista de dança. Com a sua toalha de banho amarrada em volta do pescoço, ele testa o microfone – “um-dois, um-dois” – e convida as pessoas presentes a se aproximar. “Cheguem mais, camaradas, cheguem mais.” A música se interrompe no meio da noite, os spots fluorescentes se apagam e os “camaradas”, seguidos de esposas e filhos, “chegam mais”. Diante de um telão improvisado, o jovem comenta as fotos projetadas: “Quando os policiais apertaram o cerco, fomos obrigados a dormir em casa de amigos. Ficamos escondidos na floresta. Fizemos como os escravos: marronnage”1. A imagem seguinte mostra um caminhão derrubado, de rodas para o ar: “Não sabemos como isso foi acontecer logo ali, por uma coincidência incrível, bem na frente da sede da empresa”. Risadas são ouvidas na plateia. O movimento resistiu até conseguir, na negociação final, o pagamento das horas extras pendentes – “entre 17 e 25 mil euros, líquido” –, lembra o narrador. E isso, graças a quem? “Eu chamo agora Eddy Damas, conselheiro da UGTG.” Em meio a aplausos, ele recebe então, como presente, um relógio Eurogold. O mesmo acontece com a atlética Liliane Gaschet, da União Nacional dos Sindicatos Autônomos (UNSA), e com o barbudo Fred Pausiclès, do sindicato Force Ouvrière (Força Operária – FO).
Solução nos conflitos
Encerrada a cerimônia, os amplificadores de um metro de altura voltam a cuspir seus decibéis. “Estamos realizando as coisas com as quais sempre sonhamos”, berra Pausiclès. “Anteriormente, quando alguém afirmava ser membro da FO, sempre ouvia a mesma resposta: ‘Ah, o sindicato dos patrões’”. Nós nos afastamos, então, para escapar da agressão dos alto-falantes gigantes, e nos tornamos alvo de nuvens de pernilongos.
– “Mas, ainda assim, a locomotiva deste movimento continua sendo a UGTG, não?” – pergunto.
– “Pois é, mas a UGTG é um sindicato único!”, exclama o dirigente da FO, funcionário do Ministério da Defesa. Um sindicato que deve o seu caráter diferenciado não ao número de membros, tampouco à cor da sua bandeira, nem mesmo ao homem que o dirige, mas sim ao modo de funcionar. “O que nós, da FO, fazemos é dizer gentilmente: ‘Bom dia, patrão. Nós lhe enviamos uma primeira carta, uma segunda, uma terceira, sem nunca obter qualquer resposta’. Já para a UGTG os problemas só podem ser resolvidos por meio de uma queda-de-braço.”
Desde a sua criação, graças a um pequeno grupo de pessoas movidas por convicções de orientação nacionalista, a União Geral obteve sucessos avassaladores. Em setores onde predominava o atraso, tais como o da cana-de-açúcar, em que a quantia média paga aos trabalhadores era inferior em 25% ao salário mínimo, eles conseguiram um aumento de 30% de uma só vez. “Conquistas como essa ficam marcadas na memória”, prossegue Fred Pausiclès. “Quando eles dizem a um patrão: ‘O senhor deve se render’, o melhor que este tem a fazer é suicidar-se. Caso contrário, ao voltar para casa, ele encontrará o secretário-geral da UGTG na frente do seu portão, com um equipamento de som, decidido a ‘ajudá-lo’ a dormir. E no dia seguinte, quando o patrão estiver fazendo suas compras, será seguido onde quer que vá. Se for à missa, o secretário-geral estará sentado na fileira ao lado, acenando para ele com o maior sorriso. E se ele estiver num banquete, este será invariavelmente seu vizinho de mesa.”
Comecei a duvidar da veracidade da história. Não haveria um quê de lenda nisso? “Pergunte ao patrão de Orange Caraïbes se é uma lenda! É um pesadelo, isso sim! Além disso, esse mesmo sindicato, de luta, poderoso, determinado, é inteligente o bastante para não atuar sozinho: foi a própria UGTG que nos chamou para uma parceria. Portanto, não há dúvida de que ela continua sendo a locomotiva”.
Semente de esperança
Com os pés inchados por picadas, retornamos à festa. Nos pratos de plástico, um pargo grelhado está à nossa espera. Uma pergunta permanece no ar. Durante esse extenso conflito que paralisou Guadalupe a partir de 20 de janeiro de 2009, com a greve geral, como reagiu a FO? Fred Pausiclès sorri e responde: “Volta e meia, o pessoal da confederação ligava para nos alertar: se eles pudessem escolher, o melhor a fazer seria cair fora do conflito. ‘Tudo isso não adianta’, diziam. ‘Vocês jamais conseguirão 200 euros’, ‘Já se passaram 20 dias’… Eles vinham com esse tipo de papo, meio desanimador”.
Ele faz a mesma análise crítica em relação aos outros sindicatos: “Eles negociam vagas em comissões, no Conselho Econômico e Social (CES), e isso acaba aproximando- -os das elites do poder. As suas finanças dependem cada vez mais da liberação de verbas do Estado. Este é um dos aspectos que mais desestimulam a combatividade”.
Em dezembro de 2008, no momento em que já sopravam os primeiros ventos de mudança, o jornal Le Monde referia-se a esse departamento ultramarino francês apenas para mencionar seus “escritores caribenhos”2. Nem mesmo a imprensa engajada conseguiu vislumbrar o que estava por vir, limitando-se a um artigo intitulado “O Caribe em música”3. Um mês mais tarde, contudo, uma sigla começou a proliferar nas páginas dos jornais: LKP (Lyannaj Kont Pwofytasyon / Movimento de união contra os lucros abusivos e a exploração), que, diziam, tinha surgido de forma “repentina”. Durante a greve geral que comandou, o LKP conseguiu reunir 49 sindicatos, partidos políticos e associações. A miragem midiática sobre essa mobilização passou então a provocar uma ilusão política, até mesmo para além de Guadalupe: a da esperança, disseminada nas fileiras da esquerda militante, de que essa crise engendraria forçosamente uma revolta e de que as multidões se mobilizariam espontaneamente. Era apenas uma questão de dias, bastaria esperar até que a fruta liberal, não mais madura, mas sim podre, caísse sozinha.
Bem, de fato, houve participação popular. Mas essa mobilização não seria possível sem a UGTG, que difundiu, pacientemente, sua propaganda; estreitou as malhas da rede de militantes e travou alianças para consolidar suas posições no front.
“Sé silon jan ou bityé ou kapab rékolté saw planté”: este foi o lema, em dialeto creole, que a UGTG escolheu durante o seu congresso em 2008. É algo semelhante ao que diz a Bíblia: “Nós colheremos aquilo que tivermos semeado”. Não é difícil detectar de onde saíram esses frutos: desde 1997, nas camisetas, nos cartazes e nos panfletos que imprime e distribui, a UGTG dedica-se a destruir seu alvo predileto, o “pwofitasyon” (lucro abusivo) – palavra de ordem que muitos consideram, hoje, uma invenção literária criada “pelas bases”. Da mesma forma, os militantes do movimento LKP, que já estavam acostumados com os piquetes de greve, não raro ríspidos e até mesmo violentos, não demoraram a adaptar sua experiência às novas circunstâncias e começaram a levantar barricadas. Já no que diz respeito aos fechamentos forçados de lojas, os braços também haviam sido treinados: todo ano, no dia 26 de maio, data em que Victor Schoelcher4, em 1848, interveio de maneira decisiva nos combates em favor da abolição da escravidão, manifestantes interditavam, à força, o acesso às lojas de Pointe-à-Pitre – até o dia em que conseguiram, em 2003, um feriado oficial.
Não existe, portanto, nenhum “remédio secreto”, e para muitos, investigar este movimento guadalupense e a crise que ele provocou equivale a “chover no molhado”, já que as táticas utilizadas são absolutamente conhecidas. A UGTG acredita, por exemplo, que o sindicalismo é necessariamente “de lutas”, e que a negociação, indispensável, sempre se dá na forma de um “jogo de pressões entre forças”. Basta acrescentar a isso a reivindicação de “independência”, e a linha de ação está definida. Com essas receitas simples, a UGTG foi atraindo um público sempre maior, até conquistar, em dezembro de 2008, a maioria nas eleições para o conselho dos prud’homme
s5, com 52% dos votos. Dois dias após essa façanha, atendendo ao seu apelo, sindicatos e associações se reuniram e programaram uma primeira manifestação.
“Por muito tempo menosprezamos nossa própria decadência, porque permanecíamos majoritários nas eleições para os conselhos dos prud’hommes”, lamenta o secretário da Central Geral dos Trabalhadores de Guadalupe (CGTG), Jean-Marie Nomertin. “Em 1997, a UGTG concorreu pela primeira vez e nos deu uma surra. De duas uma: ou a gente repensava nossa ação, ou o nosso sindicato desaparecia.” Lúcido, o dirigente reconhece que “não existe milagre”. “Para ser respeitado é preciso estar no terreno e a CGTG havia abandonado essa perspectiva durante uma década. Com a ajuda de camaradas jovens, parecidos comigo, retomamos esse trabalho de formiga, incansavelmente, dentro das empresas, ao lado dos assalariados. Voltamos à estratégia dos confrontos entre forças e registramos conquistas nos Correios, nas fábricas de cimento e na indústria bananeira – onde obtivemos, por exemplo, um prêmio adicional de fim de ano de 4 mil euros.”
Novamente em luta
Os vínculos da CGTGcom as outras organizações também foram reforçados: quando, em dezembro de 2003, ela conduziu uma greve de três meses nos bancos, a UGTG lhe deu apoio e levou seus militantes para as manifestações, que contaram com cerca de 5 mil pessoas.“Além disso, todo ano, desde 2002, participamos no ato unitário de 1º de Maio.” O retorno ao “terreno”, ao “confronto entre forças” revelou-se a aposta certa: “Recuperamos muitos integrante e, nos últimos seis meses, nosso número de sócios duplicou”, anima-se Nomertin. Assim, na esteira da UGTG, todo o setor sindical está se envolvendo novamente na luta.
“Até mesmo a Força Operária, o que é espantoso!” É Max Evariste, o seu secretário departamental, quem faz essa constatação, rindo. “Nós tínhamos a reputação de ser o braço armado do patronato. E se carregávamos essa cruz não era por menos: o meu predecessor, um senhor bem orientado à direita, sempre aparecia em público ao lado do Medef [Movimento das Empresas da França!]” Após ser escolhido para assumir a direção da Central, Evariste se manteve no seu canto durante alguns anos. “Então, um dia, ao ver que todos os outros estavam unidos, que a UGTG ganhava todas as eleições para os conselhos dos prud’hommes, pensei: ‘Eu sou jovem, tenho vontade de ir à luta; por que não me juntar a todos eles no campo de batalha?’” Assim, em 1º de Maio de 2005, a FO participou pela primeira vez do ato unitário e, após ser insultado pelo antigo secretário, Evariste rebate, em entrevista para a rede de rádio e TV RFO: “Já ocorreu a alguém criticar um médico por ele estar tratando seus pacientes? Então, por que criticar um sindicalista por ele querer defender os interesses dos trabalhadores? Isso beira a demência!”.
Evariste foi alvo de críticas de outras organizações. “Imediatamente, os outros sindicatos nos acolheram de braços abertos, sem rancor e nenhum comentário negativo. Eles nos ofereceram um lugar de destaque, apesar do nosso passado pouco reluzente.” A história da FO tinha começado a mudar no ano anterior, quando teve início uma greve na Général Bricolage. “Na ocasião, recebemos o apoio sólido da UGTG e da CGTG.”
Para Evariste, há uma diferença significativa entre a sua organização e as demais. “Eu chamo os membros da nossa equipe na FO de ‘militantes fajutos’, porque as manifestações, os piquetes de greve, a distribuição de panfletos, não são exatamente atividades para eles. Aliás, alguns me dizem: ‘Eu pago a minha cotização, me deixe tranquilo!’. Ao passo que na UGTG, ou na CGTG, estamos diante de um nível de engajamento bem diferente: os militantes vêm.”
Max Evariste sorri, pensando no seguinte paradoxo: “Apesar das nossas fraquezas, se o LKP existe, é também graças a nós. Pois é! O patronato já dizia: ‘No dia em que a FO se juntar a eles’… Portanto, de certa forma, se o movimento do LKP não se efetivou mais cedo, foi por nossa causa: éramos um fator de divisão. E agora, se tudo deu certo, podemos dizer que foi graças a nós!”. Ele desaba em gargalhadas. Na parede, no pôster que reproduz sua foto em preto e branco, Léon Jouhaux6 parece não gostar nem um pouco da brincadeira.
Assim foram construídas, no decorrer dos conflitos e dos atos de 1º de Maio, uma cumplicidade na base e uma proximidade na cúpula. Entre esses dirigentes, todos de uma nova geração, a parceria foi finalmente consolidada. Desde então, suas reuniões não são meras reflexões de estratégia, estão sim fundamentadas em ideias comuns, como “luta”, “terreno”, “confronto entre forças”.
“Domota sétan nou!” Pichado nos muros e nas placas de trânsito, nas ruas e nas estradas, o slogan aparece em todo lugar: “Domota é nosso!” Ele responde ao seu contrário, “Domota facho!” (“Domota fascista”) que pode ser encontrado na zona industrial de Jarry, no “território” béké, onde ficam sediados os bancos franceses, o Caribean World Trade Center e os hipermercados.
Gritos de crianças ressoam no edifício. No primeiro andar há o consultório de um pediatra. No segundo, fica o conjunto de escritórios, bastante discreto, da UGTG – entre os quais, o do seu secretário-geral, Elie Domota. “Cada vez mais dizem que é preciso ‘domesticar o capitalismo’! Mas nós somos descendentes da escravidão, que foi a forma mais bárbara do capitalismo. Mataram, enforcaram, cortaram mãos, jarretes, cabeças, aqui, tudo em prol do lucro. E o que querem agora? Que acreditemos, daqui para a frente, que o leão virou vegetariano e só se alimenta de grama?”
Panfletagens e discussões
Não há nenhum computador nesta sala, mas sim, panfletos… “Nada substitui o terreno. Sobretudo, não se pode confiar nas pesquisas de opinião. De 17 de dezembro a 20 de janeiro, no começo da greve geral, demos a volta em Guadalupe de bicicleta, distribuindo panfletos e organizando comícios. Passamos por todas as comunidades.” Na ocasião, a agenda foi organizad
a da seguinte forma: no sábado, “nas pracinhas em frente aos hipermercados”; no domingo, “na saída da missa”; no feriado de Todos os Santos, “na entrada dos cemitérios”. “É sempre necessário retornar à base, manter esse vai-e-vem. Os dirigentes sindicais têm uma visão, um ponto de vista, que sempre deve ser validado e aprovado pelo povo.”
Por exemplo: durante as negociações com o LKP, o prefeito tentou armar um embuste – antes que o acordo fosse firmado em definitivo, ele anunciou a retomada das aulas, no setor da educação como um todo. “Tivemos uma discussão entre nós, e um colega sugeriu que talvez pudéssemos fazer essa concessão: ‘Uma vez que a aprovação do protocolo está bem encaminhada…’.” A UGTG queria, evidentemente, manter a pressão até o fim: as escolas, em caso algum deveriam reabrir antes da hora. “Nós lhe dissemos: ‘Se você não estiver convencido disso, vá lá fora e anuncie isso’. Foi o que ele fez. Diante do descontentamento que a sua sugestão provocou, ele logo voltou dizendo: ‘Ok, tá legal, já entendi’. Se a base não estiver de acordo com uma ação, é porque a diretoria não entendeu direito toda a situação.”
Em muitas oportunidades, a imprensa elogiou Elie Domota e sua “personalidade”, ainda que se mostrasse um pouco desconfiada: “Dotado de carisma”, “inteligente”, “astucioso”… Pode até ser! É possível também que as qualidades deste dirigente reflitam simplesmente na maturidade da sua organização e no “nível de consciência” de seus companheiros.
*François Ruffin é jornalista.