A voracidade do Exército egípcio
Desde a chegada ao poder do marechal Abdel Fatah al-Sissi, em 2013, o Exército egípcio está envolvido em uma expansão econômica que parece sem limites. Levando adiante uma ampla diversificação de suas atividades, supervisiona milhares de projetos de infraestrutura e monopoliza contratos públicos em detrimento de empresas estatais e privadas – uma onipresença que prejudica o país
Em uma propaganda de televisão, soldados de infantaria egípcios de macacão cáqui pulverizam o asfalto com desinfetante. Com uma trilha sonora digna de filme B, distribuem máscaras para uma multidão disciplinada que se dirige com pressa para o metrô do Cairo, enquanto drones sobrevoam um dos quatro hospitais de campanha do país. O audiovisual também divulga a capacidade de fábricas militares de produzir 100 mil máscaras cirúrgicas por dia (em um país de 100 milhões de pessoas). Em maio, o Egito do presidente e marechal Abdel Fatah al-Sissi escolheu uma encenação combativa para mostrar que seu Exército não tem medo de enfrentar a epidemia de coronavírus.
Em 7 de abril, Al-Sissi já afirmava que o país tinha “reservas estratégicas” em termos de proteção à saúde, graças à Autoridade Unificada de Compras para Equipamentos Médicos, um órgão público criado em 2015, oficialmente sob a autoridade do primeiro-ministro, mas na realidade liderada pelo general Bahaa Eldin Ziedan. A declaração reforçou as suspeitas de muitos egípcios de que os militares estão usando a crise sanitária para expandir seu controle sobre a economia. Desde o golpe de Estado de oficiais livres em 1952, a instituição militar tornou-se pouco a pouco uma grande empreendedora. Proclamada “bastião da democracia e das instituições” pela Constituição aprovada em 2018, seus poderes e sua influência aumentaram dez vezes desde a chegada de Al-Sissi ao poder, em 2013. Para o presidente egípcio, essa evolução tem dupla vantagem. Primeiro, o Exército, considerado menos burocrático, parece-lhe o mais capacitado para concluir os principais projetos de infraestrutura com os quais pretende dotar o país o mais rápido possível. Segundo, ele consolida seu poder, já que a militarização da economia oferece novas receitas a um número crescente de oficiais que, por sua vez, garantem a estabilidade de seu regime.
Em 2016, a instituição chefiada pelo general Ziedan tornou-se o intermediário obrigatório para hospitais públicos solicitarem equipamentos. Ela escolhe os fornecedores, locais ou estrangeiros. Após a negociação, compra em grandes quantidades e revende para o Ministério da Saúde, faturando uma margem. Com a pandemia de Covid-19, esse poder se estendeu à compra de produtos médicos essenciais nesta crise (luvas, máscaras etc.). E não há lugar para os inconformados: “Nosso pedido de respiradores foi bloqueado porque não passamos por esse organismo”, relata o diretor de uma clínica particular que deseja permanecer anônimo.
Vantagens indevidas
Em teoria, essa centralização permite reduzir os preços das importações e atender melhor às necessidades em todo o território, mas, na prática, causa escassez. Desde essas reformas, confia Ali M., gerente de hospital, “faltam 30% dos equipamentos necessários às operações cardíacas, assim como válvulas de tamanho fora do padrão. Isso força milhares de pacientes a serem colocados na lista de espera, resultando em aumento da mortalidade”. Outra consequência desse monopólio militar: 2 mil importadores e fabricantes locais de equipamentos médicos que não tiveram a sorte de agradar à autoridade de compra foram banidos dos mercados públicos e fecharam as portas, segundo números a que tivemos acesso por um membro da Câmara de Comércio e da Indústria.
E não é apenas na área da saúde. Informática, equipamentos, serviços: o Exército não se satisfaz mais com os lucros de suas empresas de pão, macarrão ou água mineral engarrafada. Desde 2013, tornou-se piscicultor, produtor de cimento e até organizador de feiras. Seu império agora conta com 93 empresas, das quais um terço surgiu nos últimos sete anos. A captura de contratos públicos está no centro dessa estratégia de expansão. Todos os ministérios e até a instituição islâmica Al-Azhar foram forçados a assinar parcerias com ele.1 E como explica Azraq T., universitário, os preços não podem ser discutidos: “Os militares são o único intermediário entre universidades públicas e fornecedores. Eles se oferecem para vender computadores importados para nós, 20% mais caros que o preço de mercado”.
No sistema clientelista erigido pelo ex-presidente Hosni Mubarak, os privilégios concedidos ao Exército não perturbavam a comunidade empresarial, uma vez que esta tinha direito à sua parte do bolo. Hoje, o intervencionismo das forças de defesa na vida econômica incomoda. “Os militares têm vantagens indevidas em relação às empresas normais. Isso cria uma distorção de concorrência”, revolta-se o bilionário Naguib Sawirisi.2 Isentas de impostos e taxas alfandegárias, as empresas cáqui também foram poupadas do aumento no preço da eletricidade, no fim de 2019.
O complexo militar-industrial está assentado em três pilares: o Ministério da Produção Militar, o Ministério da Defesa e suas agências que gozam de grande autonomia e, finalmente, a Organização Árabe para Industrialização (OAI). Somente o primeiro, criado em 1954, digna-se a comunicar publicamente seu crescimento fulgurante. Com dezessete fábricas e vinte empresas, sua receita saltou 215%, passando de 4,2 bilhões de libras egípcias (R$ 1,4 bilhão) em 2014 para mais de 13,2 bilhões em 2019 (R$ 4,5 bilhões).3
Do seu lado, o Ministério da Defesa exerce supervisão sobre a tentacular Organização de Projetos Nacionais de Serviço (NSPO), cujas atividades vão muito além de seu escopo inicial. Criada em 1979 pelo presidente Anwar Sadat, inicialmente servia para fornecer diretamente regimentos para aliviar o orçamento do Estado. Hoje, a organização reúne cerca de trinta empresas e é onipresente em cidades, perto de estações de trem e mercados, com mil lojas e quiosques que vendem alimentos baratos. Para reduzir preços e competir com outras companhias, emprega 7,5 mil soldados que realizam serviço militar obrigatório (de um a três anos, dependendo do caso). O salário de 350 libras egípcias (R$ 118) por mês que pagam a esses soldados oferece a essa organização uma grande vantagem sobre a concorrência, já que os salários mais baixos nas empresas privadas giram em torno de 2 mil libras egípcias (R$ 675).
Se a expansão da NSPO salta aos olhos diariamente, suas contas permanecem secretas. Em um trabalho de pesquisa intitulado “Os proprietários da República”,4 o pesquisador Yezid Sayigh descreve a entidade como “a empresária preferida do governo”. Da reforma do platô das pirâmides de Gizé às usinas de tratamento de água, passando por redes de videovigilância, a organização soma 28 bilhões de libras (R$ 9,5 bilhões) em contratos desde 2013. Graças ao presidente Al-Sissi, ela também se beneficia de rendas suculentas, como a concessão de rodovias por períodos que variam de 50 a 99 anos. E o número de postos de gasolina que gerencia aumentou de algumas dezenas no início dos anos 2000 para trezentos em 2019.
Todas as terras ao longo das estradas nacionais se tornaram propriedade do Exército. E, quando os terrenos que cobiçam já estão ocupados, a desapropriação é realizada sem nenhuma contrapartida do Estado. No verão de 2019, suas escavadeiras desembarcaram nos arredores de Alexandria para construir uma rodovia e uma área comercial. Outro projeto já existente no local e que representava um obstáculo ao novo canteiro de obras – a construção de uma fábrica de congelados da gigante Gevrex, com autorização do Departamento de Engenharia das Forças Armadas da Região Norte (Alexandria) – foi colocado abaixo e seus 1.500 funcionários, demitidos. A decisão judicial de postergar a destruição da fábrica não teve nenhuma efetividade, e o governador de Alexandria, que havia prometido adiar a demolição do projeto, foi substituído por um general.
O Exército também deseja competir com, ou mesmo substituir, as indústrias nacionais existentes. Sua entrada arrasadora no mercado de cimento causou o fechamento de duas empresas estatais, a demissão de 3 mil funcionários e o enfraquecimento de outras três fábricas, de acordo com o Pharos Holding, um centro de pesquisa e banco de investimentos sediado no Egito. Apesar da saturação do setor, o Exército conseguiu mordiscar 13% do mercado, graças em parte ao acesso privilegiado a megaprojetos de infraestrutura lançados pelo presidente Al-Sissi. O mesmo cenário vale para as pedreiras de granito e mármore. Desde 2016, as Forças Armadas controlam 40% da capacidade nacional de produção.
Essa expansão não segue nenhum plano estratégico. O próprio presidente egípcio reconheceu, durante uma intervenção televisiva em julho de 2019, que, se tivesse solicitado “estudos de viabilidade, [o Exército] teria completado apenas 20% a 25% do que realizou”. De fato, o objetivo parece ser menos o desempenho econômico do que o controle de mercado e a cobertura da mídia sobre o dinamismo do Exército. Essa realidade é ilustrada pelo caso do terceiro pilar do complexo industrial militar: a Organização Árabe para a Industrialização. Suas vendas quadruplicaram entre 2012 e 2018, mas suas doze fábricas às vezes competem com as do Ministério da Produção Militar e seus lucros permanecem limitados. Estimado em 2018 em quase 2 bilhões de libras (R$ 674 milhões), seu lucro representaria apenas 14% de suas vendas. Uma auditoria estadual mencionada no relatório de Sayigh até revelou o déficit preocupante de vários de seus locais de produção. Esse baixo desempenho pode ser explicado pelos salários colossais de seus executivos, sua baixa produtividade e seu baixo valor agregado.
A onipresença do Exército em grandes projetos de infraestrutura é um dos melhores indicadores de sua bulimia e de seus limites. Além do comando direto de ministérios, as Forças Armadas supervisionavam, no fim de 2018, pelo menos 2.300 grandes projetos iniciados pelo presidente Al-Sissi.5 Substituindo a administração estatal, o Exército dividiu esses projetos entre empresas privadas consideradas leais (que são registradas nos serviços de inteligência após um longo processo) e suas próprias unidades. Por exemplo, a Autoridade de Engenharia Militar, especializada em pontes e pavimentos, viu seu volume de atividades aumentar em 367% entre 2014 e 2016.
Entre as cinquenta novas cidades planejadas, o local da futura capital administrativa é um símbolo dessa expansão um tanto confusa. Localizada no meio do deserto, 45 quilômetros a leste do Cairo, a nova cidade deve cobrir uma área equivalente a sete vezes Paris. Mas a segunda fase dos trabalhos precisou ser adiada por falta de investidores. Até o núcleo da cidade, composto por torres de vidro e residências espalhadas, não parece interessar muito, como evidencia um dos principais promotores do país, Hussein Sabbour, CEO da firma de mesmo nome, que não comprou nenhum lote: “Os preços são altos demais e apenas alguns novatos pagam para entrar no mercado de construção. Mas a bolha estourará com sua parcela de escândalos”.
Crescimento sem empregos
Para as terceirizadas que têm a sorte de serem contratadas pelo Exército, a situação nem sempre é invejável, com os atrasos nos pagamentos se tornando regra. “Os pagamentos estão sendo feitos com pelo menos seis meses de atraso após a data de vencimento. Para obter ganho de causa, somos obrigados a interromper o trabalho”, disse o representante de um grande grupo europeu.
A atividade desenfreada do Exército beneficia o país? Nada é menos certo. Na dimensão macroeconômica, é verdade que o boom da indústria da construção impulsiona o crescimento do país (5,6%, de acordo com o Banco Mundial), mas força o Estado, que apelou ao FMI em abril de 2020, a se endividar ainda. Antes da crise da Covid-19, a dívida pública já alcançava US$ 109 bilhões, quase 100% do PIB.6 Oficialmente, o desemprego diminuiu (de 9,9% para 8,9% entre 2018 e 2019), mas esse declínio se explica principalmente pela remoção de 1,3 milhão de mulheres da categoria de desempregados, operada pela Agência Central para Mobilização Pública e Estatística (Capmas), instituição liderada desde 2019 por um general de infantaria.
Não apenas “a retomada do crescimento praticamente não criou mais postos de trabalho, como também desde 2006 a parcela de empregos informais (sem seguridade social) dobrou”, afirma o economista Ragui Assaad.7 E, apesar de toda a atenção midiática sobre novos projetos, a atividade fora do setor de petróleo permanece lenta desde 2017.8 Preocupados com as consequências da ganância econômica do Exército, vários especialistas egípcios entrevistados por nós manifestaram em privado o desejo de que as Forças Armadas se desarticulem pouco a pouco de alguns setores, mesmo que isso signifique oferecer compensações – uma possibilidade bem longe da realidade.
Jamal Bukhari e Ariane Lavrilleux são jornalistas.
1 Cf. “Ministry of military production: consumers trust us, we will return stronger than before” [Ministério da produção militar: os consumidores confiam em nós, retornaremos mais fortes do que antes], Al-Tahrir, Cairo, 20 nov. 2017.
2 Middle East Monitor, Londres, 21 maio 2020.
3 Segundo declarações do ministro da Produção Militar, divulgadas pelos jornais egípcios Al Mal e Al-Masry al-youm, em maio de 2018.
4 Yezid Sayigh, “Owners of the republic: an anatomy of Egypt’s military economy” [Donos da república: uma anatomia da economia militar do Egito], Carnegie Middle East Center, Beirute, 18 nov. 2019.
5 Segundo o porta-voz das Forças Armadas, em 2 de setembro de 2019.
6 Embaixada da França no Cairo, “Carta econômica do Egito”, n.105, fev. 2020.
7 Ragui Assaad, “Is the egyptian economy creating good jobs? A review of the evolution of the quantity and quality of employment in Egypt from 1998 to 2018” [A economia egípcia está criando bons empregos? Uma revisão da evolução da quantidade e qualidade do emprego no Egito de 1998 a 2018], Economic Research Reform, Gizé, out. 2019.
8 Reuters, 4 fev. 2020.