Abandonar Gaza para segurar a Cisjordânia
Apesar da extremista oposição dos colonos contra a retirada e de suas ameaças de confronto com o exército, tudo pode não passar de uma simples demonstração de força para evitá-la, no futuro, na Cisjordânia, onde as colônias não param de aumentarMeron Rapoport
Faz muito calor no checkpoint de Bekaot, a meio caminho entre o vale do Jordão e Naplouse. Um grupo de palestinos retorna da primeira localidade, onde atuam como trabalhadores agrícolas nas prósperas colônias israelenses por 50 shekels (9 euros) por dia. O dia começou às 4 horas da manhã, e agora retornam às suas casas, em Nablus e nas aldeias ao redor.
Mas os soldados não os deixam passar e não se dão ao trabalho de lhes explicar o porquê. Nenhum dos militares fala árabe, exceto duas palavras: tashrikh (permissão) e rouch min hon (podem seguir). Faz uma hora que observamos esse ponto de passagem, e os palestinos esperam tranqüilamente, sob um sol de chumbo – eles estavam esperando, sem dúvida, há um bom tempo.
Todos os militares desse checkpoint pertencem ao regimento ortodoxo (Nahal Haredi), que reúne os mais extremistas dos jovens colonos e de outros jovens religiosos vindos de todo o país – incluindo uma pequena fração de judeus ortodoxos nascidos nos Estados Unidos. Sobre o mirante que domina o ponto de passagem, uma bandeira cor de laranja flutua ao vento. É a cor oficial do movimento contra a retirada de Gaza: os colonos e seus partidários penduram uma fita cor de laranja na antena do automóvel, usam camisetas cor de laranja e comem bombons cor de laranja.
Regimento anti-retirada
“Que faz esta bandeira laranja aqui, num posto militar?”, perguntei aos soldados. “Somos um regimento anti-retirada”, respondeu-me um deles. “Se nos pedir para tomar parte na evacuação dos assentamentos, 98% de nós recusaremos, incluindo nosso comandante. Mas eu não me contentaria apenas em recusar, faria bem mais”. Ele declinou meu pedido de exatidão, mas outros soldados desse regimento deram a entender que, quando a evacuação começar, deixarão o exército, tomarão suas armas e se juntarão ao combate dos colonos do Goush Katif, na Faixa de Gaza.
O muro, que o Tribunal Internacional da Haia pediu que fosse desmontado continua rápida e profundamente sendo construído no interior da Cisjordânia
A desocupação, que deveria começar em meados de agosto, vai desencadear uma guerra civil em Israel? A evacuação e a destruição do conjunto das 20 colônias da Faixa de Gaza e quatro outras ao norte da Cisjordânia conduzirão a um desmoronamento da sociedade israelense? O regimento ortodoxo e outras unidades do exército, que compreendem forte proporção de soldados religiosos e de extrema direita, constituem a base de uma Organização Armada Secreta (OAS) à israelense?
A essas questões, a maior parte dos responsáveis políticos e dos comentaristas responderia negativamente. Não, o exército não se levantará contra o governo. Não, não haverá OAS local. Não, Israel não conhecerá a guerra civil. É sem dúvida verdadeiro, mas tudo depende da definição que se dá de uma guerra civil – e, sobretudo, do verdadeiro significado do plano de desocupação.
Dose de formol
Esse plano nasceu, de um lado, da pressão interna e externa exercida sobre o governo de Ariel Sharon, e, de outro lado, da vontade deste último de se prender a uma grande parte da Cisjordânia (de 45% para 55%). Conselheiro do primeiro ministro, Dov Weisglass, que passa por arquiteto da operação, explicou o plano numa célebre entrevista1: “No outono de 2003, compreendemos que tudo estava bloqueado (…) havia um desgaste internacional (da posição de Israel), um desgaste interno, tudo se desmoronava e a economia se encontrava numa situação infernal. E quando o acordo de Genebra surgiu, obteve grande apoio. Depois vieram as cartas dos oficiais, dos pilotos (recusando-se servir nos territórios ocupados)”.
De acordo com Weisglass, o general Sharon decidiu devolver Gaza, que nunca considerou como de “interesse nacional”, a fim de salvar as colônias da Cisjordânia, e mais importante ainda, impedir qualquer acordo negociado com os palestinos. “Isso o que fizemos visa congelar o processo de negociação. E, congelando o processo de negociação, você impede a criação de um Estado palestino e obstrui a discussão sobre a questão dos refugiados (…) A desocupação comporta uma boa dose de formol necessária para que não haja processos de negociação com os palestinos.”
Constroem-se em velocidade vertiginosa colônias na Cisjordânia, principalmente entre o muro e a Linha Verde de 1967
Aí está o credo de Sharon, e a base sobre a qual construiu seu plano de desocupação, até agora em marcha. Apesar da morte de Yasser Arafat, apresentado como um obstáculo à paz pelos americanos, e da eleição de Mahmoud Abbas, seu protegido, o primeiro ministro teve êxito em evitar a retomada de todo diálogo político com os palestinos. Tido como abertura de uma via de negociação dirigida a um estado palestino, o “Mapa da estrada” 2 tornou-se letra morta, exatamente como o conselheiro Weisglass tinha predito.
Mais muro e colônias na Cisjordânia
O muro, que o Tribunal Internacional da Haia pediu que fosse desmontado, colocando Israel numa posição incômoda, continua rápida e profundamente sendo construído no interior da Cisjordânia, enquanto o mundo inteiro desvia o olhar. No final de 2005, um muro de nove metros de altura cercará cerca de 100 km2 de terras palestinas ocupadas no leste de Jerusalém e cerca de 200.000 palestinos que lá habitam.
Igualmente, constroem-se em velocidade vertiginosa colônias na Cisjordânia, principalmente entre o muro e a Linha Verde de 1967. De acordo com um relatório do escritório central de estatísticas, publicado há algumas semanas3, a construção na Cisjordânia aumentou 83% no primeiro trimestre de 2005 (com 564 casas contra 308 em 2004), enquanto no mesmo período declinava 25% em Israel.
Quando de sua última visita, a secretária de Estado americana Condoleezza Rice criticou Israel sobre esse ponto, mas de maneira tímida. Não tomou posição publicamente, contentando-se em dizer aos meios de comunicação por um dos seus conselheiros que teria posto em guarda “oficiais israelenses”, sem de resto nomeá-los: os Estados Unidos não querem que a construção do muro e das colônias “torne-se um problema, mas ela se tornará se continuar4“. Esse não é o tipo de declaração a preocupar Sharon e Weisglass…
Dilema dos colonos
A capacidade dos colonos de influenciar na política dos diferentes órgãos do Estado excede largamente sua representação no Parlamento – uma quinzena de deputados em 120
Portanto, os colonos encaram um verdadeiro dilema. Devem combater o plano de desocupação na medida em que a evacuação das colônias judaicas representa um precedente perigoso, incluindo o tabu de quebra na sociedade israelense. Ao mesmo tempo, querem conservar suas ocupações na Cisjordânia, onde vive a maior parte deles: 240.000, contra 7.000 na Faixa de Gaza. De um lado, querem crer no general Sharon quando ele lhes promete acelerar a construção de colônias na Cisjordânia. Mas, do outro, recordam-se que o mesmo Sharon que após as eleições de 2003 assegurava que “o destino de Netzarim5v será o destino de Tel Aviv”6 prepara-se para enviar o exército para esvaziar Netzarim…
Essa ambigüidade conduziu certos observadores a falar em acordo secreto ou tácito entre Sharon e os colonos: estes se manifestarão contra o plano de desocupação, mas sem derrubar o governo e o primeiro ministro, que, em troca, prosseguirá a construção do muro e das colônias. O presidente da câmara municipal de Maale Adoumim, uma enorme colônia 15 km a leste de Jerusalém, Benny Kashriel lança: “Se Sharon curvar-se na frente dos americanos e parar os estaleiros no Cisjordânia, ele verá 240.000 colonos juntar-se ao combate contra a desocupação de Gaza”. Conciliação ou ameaça mal escondida? Em todo caso, a direção oficial dos colonos, o Conselho de Yesha, mantém-se por enquanto numa posição discreta.
Isso não impede a batalha contra a desocupação se tornar cada vez mais intensa. A partir de agora, todos os dias há manifestações. Em todos os setores da comunidade dos colonos apela-se aos soldados para que se recusem a participar das evacuações. Filmado ao vivo pela televisão, o primeiro soldado rebelde passa por um herói: “Um judeu não expulsa um judeu”, gritou antes de ser detido. Mas é demasiado cedo para dizer se os colonos se preparam para um confronto com o exército e o aparelho do Estado, ou é uma simples demonstração de força que lhes permite, senão parar a desocupação de Gaza, em todo caso transformá-la em um trauma tal que não se corra o risco de recomeçar, no futuro, na Cisjordânia.
Forte presença no aparelho de Estado
De 98 para 2005, 2.500 ordens de destruição de casas ilegalmente construídas nas colônias não tinham sido seguidas. Mas o mesmo organismo destrói 300 casas palestinas por ano
Uma das razões que leva os colonos a evitar uma verdadeira confrontação com o governo apóia-se na sua forte presença – e mais geralmente a do setor nacionalista-religioso 7 – no aparelho de Estado. Realmente, a sua capacidade de influenciar na política dos diferentes órgãos do Estado excede largamente sua representação no Parlamento – uma quinzena de deputados em 120. Eles são numerosos, no mais alto nível, nos ministérios da Educação, da Justiça e da Construção. E nos departamentos que tratam da Cisjordânia e de Gaza, ocupam postos importantes.
No departamento do exército, a administração civil, por exemplo, trata dos negócios civis nos territórios palestinos ocupados. Escolhe o lugar das novas colônias judaicas e se encarrega dos edifícios ilegais – israelenses e palestinos. Ora, esse departamento, um dos mais “sensíveis”, dado que trata da questão decisiva da terra, é controlado quase inteiramente pelos colonos, o que não deixa de influir sobre sua atividade.
Assim, um dignitário de elevada patente da administração civil revelou que, de 1998 para 2005, 2.500 ordens de destruição de casas ilegalmente construídas nas colônias não tinham sido efetivamente seguidas. Mas o mesmo organismo destrói 300 casas palestinas por ano. “O departamento de inspeção é muito ideológico, muito à direita”, confessa um antigo funcionário da administração civil. “Seu chefe vive numa colônia próxima de Ramallah. Fazem da vida dos palestinos um inferno, mas fecham os olhos sobre as construções judaicas ilegais”. De fato, segundo o relatório da advogada Tália Sasson, entregue em março passado ao primeiro ministro israelense, uma rede de colonos de diferentes departamentos e ministérios facilitou a construção de mais de 110 “postos avançados” ilegais, desde 19988.
Mudança no exército
O que dá dores de cabeça ao exército atualmente é a forte proporção de colonos e nacionalistas-religiosos nas suas unidades de elite. Autor de um livro sobre as forças armadas israelenses9, Yagil Levi, considera que 15% dos soldados e 50% dos oficiais de patente inferior ou média dessas unidades são nacionalistas-religiosos. Depois da guerra do Líbano de 1982, recorda o sociólogo, a juventude ashkénaze, liberal e procedente das camadas médias que fornecia o grosso das unidades de elite parou de se interessar pelo exército e se compromete muito menos. Os jovens religiosos e nacionalistas tomaram o seu lugar: na opinião do professor Levi, o Estado-maior os acharia leais e confiáveis, principalmente para as missões nos territórios ocupados…
Cerca de 15% dos soldados e 50% dos oficiais de patente inferior ou média das unidades de elite são nacionalistas-religiosos
Mas como se apoiar sobre eles atualmente? Inúmeros soldados anunciaram, oficiosamente até agora, que se recusariam em tomar parte na evacuação das colônias. De onde veio a decisão de afastar dessa operação dois regimentos muito importantes, Golani e Givati, devido à forte percentagem de nacionalistas-religiosos. O professor Levi não crê que a desocupação de Gaza provoque um movimento maior de desobediência no exército, uma revolta generalizada. Ele se preocupa mais com o dia seguinte.
Se certos setores do exército se recusassem a obedecer e se as relações entre os soldados religiosos e os seus comandantes pusessem o Estado-maior sob pressão, este último poderia, quando das próximas evacuações, pedir ao governo que “esqueça” o exército. Nesse caso as autoridades não teriam tropas suficientes para uma “desocupação n °2” – se tivesse de acontecer uma. Ora, essa nova operação correria o risco de encarar uma resistência armada na Cisjordânia, onde certas unidades compõem-se apenas de colonos e onde as armas privadas proliferam. Lá – e apenas lá – poderia nascer uma espécie de OAS.
Uma questão de tempo
Dror Etkes conhece o mundo nacionalista-religioso do interior. Nascido em Jerusalém, estudou numa escola comum e militou no movimento da juventude Bnei Akiva, um elemento importante da criação do movimento dos colonos. A partir de então, ele se tornou o seu pior inimigo. Dirigente de “A Paz”, seu trabalho consiste agora em observar toda construção na Cisjordânia e informar a imprensa, os americanos e qualquer outra parte interessada. Num passeio com ele no fim de junho, um jovem rabino de Ofra, uma colônia ao norte de Ramallah, nos disse para rezar pela morte de pessoas como Etkes, porque eles “espionam o povo judeu”.
O militante pacifista evidentemente não ignora a infiltração dos colonos no exército e nos outros órgãos do Estado do Israel. Mas vê no seu imenso poder a causa da sua fraqueza. “Os colonos estão na parte superior da colina, mas os seus dias estão contados, e a desocupação o prova. Eles próprios criaram as contradições que não conseguem mais resolver. Se se utilizam do seu poder no exército, recusam participar da evacuação e têm êxito em fazer encalhar a operação. Eles perderão, na opinião israelense, a legitimidade que tanto trabalho tiveram para conquistar. Ao contrário, se permanecem no exército e obedecem às ordens, contribuirão para o desmantelamento dessas colônias que consideram a coisa mais sagrada.”
Se o exército sente que o governo não está empenhado na operação, arrastará os pés, já que não há sociedade civil capaz de lidar com o exército
De acordo com Etkes, o general Sharon tem plena consciência dessas contradições e as usa. Há alguns meses, nomeou o general Yair Nave, o oficial religioso mais graduado, comandante da Frente Central, responsável pela Cisjordânia. “Forçando um oficial como Nave a fazer uma escolha, Sharon escava o fosso entre os componentes moderados e extremistas do campo nacionalista-religioso”. Em resumo, a desocupação coloca os colonos numa situação em que podem apenas perder”, estima Etkes. Seu movimento está condenado, e a desocupação constitui apenas o primeiro passo. Mas Israel terá a força necessária para desmontar grandes colônias como Ofra, construída há 30 anos? “Maimonides diz que não se pode ter provas positivas da presença de Deus, apenas das provas negativas. Pode-se dizer o que ele não é. Isso vale para Ofra. Não lhes posso dizer como o Israel a erradicará. Sei apenas que Ofra não pode permanecer lá.”
Ambigüidade do governo
Como o sociólogo Yagil Levi e o militante pacifista Dror Etkes, Zeev Sternhell, professor da universidade hebraica de Jerusalém, não crê que a presença de um grande número de soldados nacionalistas-religiosos possa realmente ter uma influência sobre as possibilidades de sucesso da desocupação de Gaza. “Há dez soldados para um colono, o que será suficiente para o trabalho ter êxito”, pensa o historiador. “O exército colocará em ação a política do governo; ele poderia mesmo aplicar uma política mais radical”. Mas e o precedente argelino? “Não estamos numa situação comparável. Nada de fosso, entre nós, entre um exército profissional e um exército de recrutamento. Na Argélia, os recrutas contribuíram para quebrar a rebelião dos generais: se recusaram a segui-los. Se a Legião Estrangeira tivesse tido o poder de decidir, teria sido bem diferente. Em Israel não temos Legião.”
O historiador se preocupa com outra coisa. “Esses colonos no exército e no aparelho do Estado terão a possibilidade apenas se eles sentirem o governo insuficientemente resolvido. Farão o possível para desencorajar a opinião pública em apoiar o plano e ganhar tempo. Basta que cheguem a adiar a desocupação, mesmo por alguns dias, e todo o projeto corre o risco de desmoronar. Se o exército sente que o governo não está empenhado na operação, arrastará os pés. E não temos uma sociedade civil capaz de tratar com o exército”. Zeev Sternhell observa que algumas semanas antes da evacuação, nada está pronto para acolher os 7.000 colonos de Gaza. E se questiona se o general Sharon é realmente sério nesse negócio. “Há uma possibilidade em duas que a desocupação tenha êxito, e esta possibilidade depende da determinação do primeiro ministro e dos americanos”.
Há alguns meses, dois israelenses – o jornalista Akiva Eldar e a historiadora Idit Zertall – publicaram um livro monumental sobre a história da colonização, após anos de investigações 10. Eles descrevem a incrível expansão dessa política que consideram como criminosa e perigosa. No entanto, no prefácio, mostram-se ainda otimistas. “A maior parte das colônias, mesmo as mais antigas, parecem frágeis (…) O dia em que a própria sociedade israelense encontrar o poder de decidir por deixar os territórios que ocupou (…), nesse dia as colônias cairão uma a uma”. Esse não era o objetivo de Sharon e Weisglass quando embarcaram no plano de desocupação. Mas talvez a história os leve aonde não desejavam ir. Então – e apenas assim – Israel saberá se não se arrisca numa aventura no estilo argelino…
(Trad.: Marcelo de Valécio)
1 – Haaretz, Tel-Aviv, 8 de outubro de 2004.
2 – Adotada pelo “Quartet” (Nações Unidas, Estados Unidos, União Européia e Rússia) em 20 de dezembro de 2002, o “Mapa de Estrada” prevê principalmente o fim de qualquer violência, a retirada das forças israelenses sobre as posições ocupadas antes da segunda Intifada, o congelamento de qualquer colonização, a reforma da Autoridade Palestina e a retomada da negociação com o propósito da criação de um Estado palestino em… 2005.
3 – Haaretz, 5 de junho de 2005.
4 – Haaretz, 26 de junho de 2005.
5 – Pequena colônia próxima da cidade de Gaza, às portas da qual o pequeno Mohamed Al-Dura encontrou a morte no