Abandono do povo
Há 20 anos o Estado hebreu já tomava medidas de precaução contra a Organização para a Libertação da Palestina. O fazia encorajando o crescimento e o fortalecimento do Hamas – uma organização de constituição e princípios medievais, de eficácia militar incerta, que não procura se comunicar com a opinião pública ocidental
Em 14 de janeiro, após a morte de mais de mil palestinos confinados em uma estreita faixa de terra e submetidos ao ataque – terrestre, marítimo, aéreo – de um dos mais poderosos exércitos do mundo, após o bombardeio de uma escola palestina transformada em refúgio das Nações Unidas, após uma resolução da única organização que realmente representa essa “comunidade internacional” incessantemente invocada, demandando em vão o fim das operações militares em Gaza, a União Europeia demonstrou com que determinação estava disposta a reagir a essa mistura de violência e arrogância. A UE decidiu… dar uma pausa no seu processo de reaproximação com Israel! Mas, para atenuar o impacto dessa atitude, que corria o risco de passar por um mero murmúrio tímido de reprovação a Israel, declarou ser esta uma medida “técnica” e não “política”. E, ainda, que a decisão havia sido tomada “pelas duas partes”.
Israel tem carta branca. Seu exército destruiu anteriormente a maior parte da infra-estrutura palestina financiada pela União Europeia. E mal houve uma reação, nenhum recurso jurídico, nenhum pedido de reparação. Além disso, Israel impôs um bloqueio a uma população pobre privada de água, de comida, de medicamentos. E, novamente, nenhuma reação. Nada foi feito, a não ser os protestos de sempre, que mantêm as coisas como estão sob o pretexto de que a violência do mais forte não redunda sempre na submissão do mais fraco. Por que imaginaria então Israel que sua impunidade ia acabar?
Há 20 anos o Estado hebreu já tomava medidas de precaução contra a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). O fazia encorajando o crescimento e o fortalecimento do Hamas – uma organização de constituição e princípios medievais, de eficácia militar incerta e que não procura “se comunicar” com a opinião pública ocidental.
Ora, quando se deseja bombardear e colonizar sem entraves, nada melhor que o pretexto de não ter um “parceiro para a paz”. Na Europa, encontramos até diretores de jornais capazes de choramingar dizendo que um dia Israel “se arrisca a perder sua superioridade moral”…
Nada contraria tampouco os interesses do governo de Tel-Aviv nos Estados Unidos. Em 9 de janeiro, uma resolução da Câmara dos Deputados reconheceu-lhe “o direito de se defender contra os ataques vindos de Gaza”. Sem dúvida por uma questão de “equilíbrio”, essa resolução igualmente apresentava “seus pêsames às vítimas inocentes palestinas e às suas famílias”. E foi adotada por 390 votos contra cinco. Algumas horas antes, o Senado havia reafirmado – por unanimidade – “o apoio determinado dos Estados Unidos a Israel na batalha contra o Hamas”.
As relações de Israel com o Poder Executivo americano também não vão nada mal. Poucas horas após o anúncio do cessar-fogo unilateral, Ehud Olmert telefonou ao presidente dos Estados Unidos para agradecer o seu apoio, o qual consiste também em uma ajuda financeira anual, a fundo perdido, de US$ 3 bilhões, medida que ninguém cogita questionar, nem mesmo Barack Obama.
Sustentado por essas bases de apoio, o projeto dos grandes partidos israelenses parece claro: acabar com as possibilidades de criação de um verdadeiro Estado palestino, um direito internacionalmente reconhecido.
Cercada de muros e barreiras e salpicada de colônias, a Cisjordânia continuará sendo um amontoado de territórios confinados sobrevivendo com o apoio e os subsídios da União Europeia.
E Gaza será bombardeada cada vez que seu vizinho resolver “retaliar”, de maneira desproporcional, os atentados ou os lançamentos de foguetes.
No fundo, após 60 anos de derrotas, de humilhações, de exílios, de violações de acordos assinados, de colonização, de guerras fratricidas, no momento em que os governos do mundo inteiro os abandonaram à sua própria sorte e autorizaram que o direito internacional, incluindo o humanitário, fosse pisoteado, é quase um milagre que os palestinos conservem sua determinação em conquistar, um dia, sua identidade nacional.
Se conquistarem essa identidade, eles não deverão nada nem aos europeus, nem aos americanos, nem à maior parte dos governos árabes.
Em Gaza, uma vez mais, todos se comportam como cúmplices da interminável espoliação de um povo.