Abrindo a porteira do desmatamento
A proposta de revisão do Código Florestal, sugerida pelo deputado Aldo Rebelo (PCdoB) e considerada insuficientemente permissiva pela bancada ruralista, abre margem para novos desmatamentos na ordem de 85 milhões de hectares no Brasil, uma área maior que os estados de São Paulo e Minas Gerais juntosRafael Cruz
O Código Florestal brasileiro se transformou, ao longo dos últimos dez anos, em uma espécie de terreno árido onde se trava uma infrutífera disputa entre visões sobre o futuro do desenvolvimento, da agricultura e do meio ambiente, traduzida na batalha sobre o alcance da lei florestal dentro de cada propriedade agrícola no Brasil.
Carente de um fiador capaz de garantir a estabilidade de um projeto de concessões mútuas – projeto esse que é impossível ser bancado tão e somente por ambientalistas e ruralistas (protagonistas do embate) – e ainda distante do entendimento e do domínio público, o debate acerca de mudanças no Código Florestal tem sido invariavelmente capitaneado por sucessivos ataques do agronegócio mais atrasado, quase sempre desarmado pela defesa ambientalista apoiada nos valores da sociedade civil.
Nesse contexto, após sucessivas incursões da bancada ruralista, algumas teses se tornaram verdades quase que científicas por sua mera repetição. A primeira delas é a de que o Código Florestal precisa ser reformado, pois ele coloca o produtor na ilegalidade e trava a agropecuária brasileira. Outro exemplo é o de que o Código Florestal é uma barreira não tarifária no contexto de uma disputa comercial internacional (algo que beneficia os países ricos).
Assim, montada nessas ideias, a bancada ruralista atropela alertas sobre as iminentes mudanças climáticas, desqualificando toda a movimentação internacional e os compromissos multilaterais assumidos pelo Brasil e outros 170 países em reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEEs).
Imbuídos de um nacionalismo oportunista, “tratoram” questões profundas ainda não resolvidas em nosso país, como a injustiça e o descontrole fundiários, a violência no campo e o trabalho escravo, uma jornada que lhes rende exposição pública e votos, à custa do meio ambiente e de problemas sociais.
Código de Flora e o contexto nacional
Quando, em 1934, o presidente Getúlio Vargas promulgou o primeiro Código de Flora brasileiro, o fez por conta de uma percepção, inédita até então, da importância estratégica da preservação dos recursos naturais para a construção do país e de sua economia. Nossa primeira lei de florestas veio na esteira da emancipação de uma nação unificada, que ao mesmo tempo previa a importância da distribuição de terras e da construção formal de sindicatos no Brasil.
Vargas percebeu que a organização social e o desenvolvimento econômico perpassariam necessariamente pelo ordenamento fundiário, pela unificação nacional e pela manutenção dos recursos naturais. Esses princípios serviram de base para a concepção das florestas como um patrimônio público de todos os brasileiros.
Quando o Código Florestal foi reformulado, em 1965, manteve os mesmos princípios. Permaneceram atuais os conceitos de Reserva Legal (porção de mata nativa dentro de cada propriedade privada, que precisa ser conservada), e de Áreas de Preservação Permanente, APPs (áreas cobertas por vegetação nativa que cumprem função ecológica de proteção ambiental, como, por exemplo, as margens de rios, encostas e topos de morro).
Ambos os códigos, de 1934 e 1965, foram formulados por equipes coordenadas pelo Ministério da Agricultura, e contaram com um corpo técnico que embasou as definições legais, sem prejuízo à expansão agrícola brasileira.
À época, o Código Florestal veio para dar resposta às ameaças na oferta de madeira e à sanidade do solo e da água, além da biodiversidade, imprescindíveis para as atividades agropecuárias. Hoje, ele tem também uma importância enorme para o clima.
O clima muda para todos
A última previsão do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) acerca do momento necessário para a estabilização nas emissões de gases de efeito estufa no mundo é 2015. Ou seja, nos próximos 60 meses o planeta tem o dever de dar um passo largo rumo à economia de baixo carbono. E o Brasil, na condição de país ainda em desenvolvimento, está no grupo dos que têm mais a perder, especialmente os brasileiros mais pobres.
A cifra estimada de perdas da agricultura brasileira até 2020, com as mudanças do clima, fica na casa de R$ 7 milhões. Culturas como soja, café, milho e arroz perderiam área potencial de plantio em até 60% para um cenário de aumento de temperatura em 3°C, segundo a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
Mas não somos somente vítimas. Sem prejuízo do papel histórico das nações desenvolvidas e de seu compromisso para redução da maior parte das emissões, somos cada vez mais os vilões.
O Brasil é o quarto maior poluidor do clima no mundo, por causa das queimadas, e assumiu compromissos internacionais de reduzir emissões de GEEs em até 38,9%, além de decrescer o desmatamento na Amazônia em 80%, até 2020. A destruição das florestas brasileiras é responsável por 75% das emissões de gases estufa do país.
Já foram derrubados 73 milhões de hectares de floresta amazônica, dos quais 80%, segundo dados do governo, são hoje ocupados com pecuária. O Brasil é o maior exportador mundial de carne bovina, e o Estado tem planos de dobrar a fatia desse mercado, que hoje é de 30%, até 2018. Ou seja, se nada for feito pelo ganho de produtividade por hectare, aumentará o rebanho e, consequentemente, o desmatamento na Amazônia, que já abriga cerca de um terço de todo o rebanho bovino brasileiro.
Por meio da inação e da ausência de políticas públicas que implantem de maneira eficiente um modelo agrícola baseado no ganho tecnológico e no aumento da produtividade da terra, a agropecuária brasileira adota um método autodestrutivo de crescimento, criando condições para seu fracasso no futuro próximo, seja pelo esgotamento de recursos naturais necessários às lavouras, como um solo vivo e água abundante, seja por meio das emissões de carbono na atmosfera.
O código do ceticismo
A proposta de revisão do Código Florestal (apelidada de “Código da Motosserra”), sugerida pelo deputado Aldo Rebelo (PCdoB) e considerada insuficientemente permissiva pela bancada ruralista, abre margem para novos desmatamentos na ordem de 85 milhões de hectares no Brasil, uma área maior que os estados de São Paulo e Minas Gerais juntos.
Em carbono, isso significaria mais de 30 bilhões de toneladas de CO2, o equivalente a sete vezes a meta de redução com a qual o Brasil se comprometeu internacionalmente, ou 15 vezes o volume de emissões da China em um ano. Os deputados, contudo, não parecem preocupados com esses números.
Durante os trabalhos da Comissão Especial de revisão do Código Florestal, foram convocados especialistas que negam o aquecimento global. O “Código da Motosserra” parte da premissa que as mudanças climáticas são um frágil consenso e que não devem ser consideradas como base para a reformulação da lei florestal brasileira.
Aldo Rebelo deve julgar a ida de Lula, Dilma, e outros 100 chefes de Estado à Dinamarca para a COP15, realizada em dezembro de 2009, um passeio sem sentido, ou um “piquenique em Copenhague”, como afirmou o falecido José Carlos de Almeida Azevedo, ex-reitor da Universidade de Brasília durante a ditadura militar, em audiência na Comissão Especial, em novembro de 2009.
Mas nem só da negação do aquecimento global vive a proposta ruralista de revisão do Código Florestal.
Ao longo desses últimos meses, apesar das raras falas de pessoas bastante competentes sobre florestas, economia e clima, a tal Comissão Especial revisitou todas as ideias mais profundamente retrógradas sobre agricultura e meio ambiente, e criou bases para que a proposta de revisão apresentada se justificasse na suposta inaplicabilidade da lei, ou no suposto “travamento” da agropecuária no Brasil.
Ouvindo basicamente políticos locais e a agricultura patronal (juntos, 60% das pessoas ouvidas pela Comissão), a bancada ruralista usou a pequena agricultura para justificar benefícios para os grandes latifundiários. Utilizando-se de exemplos imaginários como o de produtores que foram multados por tirar uma minhoca da terra para pescar, Aldo Rebelo perdoa o desmate de mais de 40 milhões de hectares de APP em todo o Brasil, área superior a 15 vezes seu estado natal, Alagoas, que recentemente viveu um drama por conta do volume inédito de chuvas para este período.
Assim, negando-se a existência do fosso que divide o agronegócio, que recebe 100 bilhões em seu plano safra 2010/2011, e a agricultura familiar, que mal consegue ter acesso aos 15 bilhões do Pronaf, concebe-se o Código Florestal como um problema central na agricultura brasileira.
O Código Florestal trava a nossa agricultura?
Mesmo com a aplicação da lei, o Brasil mais que duplicou sua produção de grãos nos últimos 20 anos. Segundo dados da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), houve um salto de cerca de 60 milhões de toneladas de grãos, em 1990, para 135 milhões em 2009.
E tal aumento da produção se deu muito mais por ganhos de produtividade do que por expansão de área agrícola, o que prova que o Brasil tem grande potencial de crescimento sem desmate. Nos últimos 20 anos, o país avançou em média 1,7% ao ano em área plantada, enquanto cresceu em média 4,7% ao ano em produção por hectare.
O incremento interno foi refletido na atuação externa do Brasil, que ganhou mais espaço no mercado internacional, especialmente nos últimos dez anos. Desde março de 2010, segundo a OMC, somos o terceiro maior exportador de produtos agropecuários no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e União Europeia. O ritmo do crescimento brasileiro foi mais do que “chinês” no caso das exportações de commodities agropecuárias, uma cifra de 18% ao ano na última década.
Apesar dos sucessivos recordes quebrados e do excepcional desempenho brasileiro no que diz respeito ao comércio internacional e à produção de alimentos, vivemos ainda uma situação de intenso desmatamento e dramática desigualdade no campo, herança histórica ainda não resolvida e que gera os reais problemas na área rural.
Isso é claro e gritante nos números divulgados pelo IBGE recentemente, e que nos permitem concluir indubitavelmente que a agricultura no Brasil não é uma só. Existem claramente dois modelos agrários, que pressupõem diagnósticos diferenciados, especialmente quando confrontados com o Código Florestal.
Segundo o último Censo Agropecuário do IBGE, de 2006, o Brasil tem pouco mais de 5,2 milhões de estabelecimentos rurais. Destes, 84% são de agricultura familiar, ou seja, 4,4 milhões de estabelecimentos que têm área média de 18 hectares. Esses estabelecimentos rurais de agricultura familiar se espremem em 24% da área agrícola brasileira, ou seja, um total de 80 milhões de hectares, e abrigam 74% dos trabalhadores no campo, já que a agricultura familiar é um modelo intensivo em mão de obra.
Do outro lado, os 16% dos estabelecimentos rurais não familiares ocupam hoje 86% das terras de agricultura no Brasil, um total de 250 milhões de hectares, área equivalente às regiões Sudeste e Nordeste do Brasil juntas. O tamanho médio da propriedade é, neste caso, de 300 hectares, 16 vezes maior que a propriedade média na agricultura familiar. A concentração da terra continua assustadora.
Usando esses dados, é possível depreender que a distribuição média de terras é de 7 hectares por agricultor na agricultura familiar, muito menor que os 62 hectares por produtor no caso da agricultura não familiar. É exatamente aqui que o debate sobre mudanças no Código Florestal deve ser qualificado.
A função social das florestas
Diz o Artigo 1º do Código Florestal que “as florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do país, exercendo-se os direitos de propriedade, com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem”.
Esse artigo, já presente no Código de 1934, é a tradução do espírito da lei, uma vez que classifica as florestas como um bem público, e por este motivo limita o uso das propriedades, especialmente as rurais, em algum grau. Essa função social da floresta é a pedra fundamental para proteção florestal.
Baseados nisso, o movimento ambientalista e a agricultura familiar criaram, no início de 2009, uma agenda comum de regulamentação e facilitação na aplicação do Código Florestal para os pequenos agricultores, 3/4 de todos os trabalhadores do campo. Tal agenda não previa mudanças profundas na lei, mas decretos e resoluções que conciliassem o meio ambiente e a produção.
Essa diferenciação se escora no fato, dentre outros, de que a terra é menos abundante ao agricultor familiar. Por isso, a consorciação de plantios de café, as concessões para cultivo de arroz e tantos outros exemplos de modificações pontuais já vigoram hoje, sem a necessidade, para a maioria dos agricultores brasileiros, da revisão da lei.
Portanto, a motivação da bancada ruralista não é salvar o pequeno, mas anistiar o grande e abrir espaço para mais desmatamento, descaracterizando a função social das florestas e jogando os custos da proteção florestal para toda a sociedade.
Quando a motosserra fica mais pesada
O grande aumento da fiscalização no campo ao longo dos últimos anos, mais especificamente por conta das políticas de controle ao desmatamento propostas nos primeiros anos do governo Lula, intensificou a pressão sobre os desmatadores. De 2005 a 2008, por exemplo, o valor total das multas aplicadas por ilegalidades ambientais na Amazônia Legal praticamente dobrou, saltando de R$ 1,4 bilhão para R$ 2,7 bilhões, segundo o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
Além disso, o Banco Central emitiu em 2008, por meio do Conselho Monetário Nacional, resolução pela qual determinou como pré-condição para liberação de crédito rural a apresentação de cadastro ou licença ambiental por parte do produtor. Isso, em boa medida, fechou a torneira dos recursos públicos e privados para atividades que provocavam desmatamento, o que obviamente foi muito mal recebido por quem conta com a ilegalidade como margem de lucro em seus negócios.
Completou o cenário de cerco fechado aos grandes desmatadores o Decreto de Crimes Ambientais 6.514, assinado pelo presidente Lula e publicado em 22 de julho de 2008, que regulamentou as punições e penalidades impostas por ilegalidades cometidas ao meio ambiente (prevendo multas de até R$ 50 mil por hectare desmatado), e obrigou os produtores a regularizar sua situação ambiental em pouco tempo. Esse decreto, inicialmente, entraria em vigor 180 dias depois de sua publicação, ou seja, em janeiro de 2009. Ele teve, entretanto, seu prazo revisto duas vezes, primeiro para 11 de dezembro de 2009, e novamente para junho de 2011, prazo que vigora hoje.
Esse prazo é usado como justificativa para acelerar a mudança no Código Florestal.
O Código é maior que uma bancada
Apesar da grande concentração e descontrole fundiário, a bancada ruralista ainda opta por criminalizar movimentos sociais do campo. A despeito de 80% dos chefes de estabelecimentos rurais não terem completado sequer o ensino fundamental, segundo o IBGE, não existe uma comissão especial para erradicar o analfabetismo no campo.
Cultivando o inimigo perfeito por meio da figura do ambientalista (antes preconceituosamente classificado urbano demais para entender o drama do agricultor, e agora xenofobicamente colocado como internacional demais para querer o bem do Brasil), parlamentares que vivem eleitoralmente do problema, e não da solução, travam progressos na área ambiental.
A força do agronegócio e da pequena agricultura é profundamente dependente da manutenção de nossas florestas, e para isso, de uma lei florestal forte. O Desmatamento Zero é o futuro do Brasil: temos terras disponíveis para dobrar a produção sem desmatar um só metro quadrado de floresta. Além disso, essa é cada vez mais uma demanda do mercado, interno e externo, e nossa agricultura perde se não se adaptar.
O Código Florestal é maior que a bancada ruralista, e deve ser debatido com toda a sociedade, fora de um ano eleitoral. Ou adotamos posição coerente sobre o crescimento sem desmatamento, já sinalizado nas metas voluntárias de redução de gases de efeito estufa adotadas em 2009, ou estaremos condenando nossa economia, nossos recursos naturais e nossa agricultura ao atraso que ainda nos prende na condição de “nação emergente”.
Rafael Cruz é sociólogo da campanha da Amazônia do Greenpeace.