Acesso à terra no Paraguai
Acumulação de terras pelo agronegócio, exclusão camponesa e estrangeirização do território agropecuário no Paraguai.
Na era pré-hispânica, a agricultura praticada pelos povos nativos do Paraguai era a de subsistência e sua economia estava baseada na reciprocidade (Coronel, 2011). A chegada dos europeus trouxe consigo a apropriação individual da terra (Fogel, 1990). Assim, durante a era colonial, a exportação da erva-mate e do tabaco beneficiava exclusivamente as elites nacional e internacional, deixando na pobreza a grande maioria dos paraguaios (White, 1989). Durante o período independente[1] (1811 a 1870), no entanto, a agricultura esteve orientada à autossuficiência (Kleinpenning, 2011).
Desde os primeiros anos da era independente do Paraguai, a partir do controle total do poder por parte de José Gaspar Rodríguez de Francia, em 1814, até o governo de Mariscal Francisco Solano López – cuja morte em 1870 finalizou a guerra da Tríplice Aliança, integrada por Brasil, Argentina e Uruguai, contra o Paraguai – a totalidade da região do Chaco[2] e de mais de 95% das terras da região oriental pertenciam ao Estado paraguaio. Durante quase seis décadas, o Estado foi gestor de um território posto à disposição do crescimento da agricultura familiar (Souchaud, 2007).
O governo de Francia apostou no desenvolvimento de uma variada produção para cobrir as necessidades da população paraguaia. Francia deslocou a oligarquia como um ator político dominante e baseou sua liderança no campesinato do país, impulsionando a reforma agrária mais radical da América Latina (Fogel, 2017). Foram os anos de maior esplendor da população camponesa, que não tinha luxos, porém não passava fome (Rojas, 2017).
Após o fim da guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, o país foi recolonizado, fazendo com que a exploração florestal latifundiária e a exportação de matérias primas se convertessem nos dois setores fundamentais da economia paraguaia (Creydt, 2010). A entrega de terras públicas ao capital internacional por parte dos governos do pós-guerra fez com que milhares de pessoas ficassem, da noite para o dia, sem terras e sem a possibilidade de adquiri-las (Pastore, 1972), o que foi justificado pela difamação constante do campesinato.

Aumento da concentração de terras em poucas mãos
Entre 1991 e 2008[3], desapareceram quase 25 mil propriedades rurais em todo o país. Mais de 17 mil dessas áreas possuíam entre 10 a 50 hectares, ou seja, correspondiam ao segmento da agricultura familiar. As áreas produtivas de menos de um hectare também sofreram importante redução de mais de 6 mil unidades no período citado. As propriedades entre 5 a 10 hectares também perderam quase 400 unidades, assim como desapareceram quase 700 dentre as que tinham entre 50 e 100 hectares
Em comparação, propriedades com mais de 100 hectares aumentaram em número e em superfície. Ao todo, as propriedades com menos de 50 hectares perderam mais de 374 mil hectares, ou 16% da superfície que tinham em 1991. As grandes propriedades, com mais de 100 hectares, somaram em 2008 quase 8 milhões de hectares aos 27 milhões que já tinham no mesmo ano de 1991, um incremento de aproximadamente 27%.
Isso é refletido no índice Gini[4] relativo à distribuição de terras. Em 1991, o índice era de 0,93, muito próximo à desigualdade perfeita; em 2008, este valor subiu mais quatro pontos, chegando a 0,97.
Revisando os dados mais recentes, podemos ver que toda a área agrícola do Paraguai mais do que triplicou ao longo de 26 anos entre os períodos de produção 1990/1991 e 2015/2016. A superfície cultivada, que inclui cultivos temporários e permanentes, passou de menos de 2 milhões, no primeiro período, para aproximadamente 6 milhões de hectares no segundo.
Os 28 cultivos temporários registrados pela Dirección de Estudios Agronómicos do Ministério da Agricultura foram os de maior expansão. Por outro lado, a superfície de 11 cultivos permanentes, registrados pelo mesmo instituto, perdeu 24% nesse período. De ocupar aproximadamente 81 mil ha. no ciclo produtivo de 1990/1991, sua superfície baixou a quase 62 mil ha. no período de 2015/2016.
Quando aprofundamos a pesquisa, podemos constatar que somente quatro itens agrícolas, produzidos pelo agronegócio de forma predominante, e em grande escala, ocupam sozinhos a maior parte de todo o espaço de cultivo do Paraguai. No período compreendido entre os anos 1990 e 1991, o arroz produzido sob irrigação, o milho, a soja e o trigo foram cultivados em mais de 960 mil ha.: mais da metade do espaço agrícola desta época. Em 2007/2008, os mesmos 4 itens passaram a ocupar quase 4 milhões de ha.: 84% de toda a superfície cultivada; por fim, no período de 2015/2016, chega-se a 87% da área, ou 5 milhões de ha.
Note-se que somente os quatr cultivos agrícolas citados (arroz, milho, soja e trigo), de um total de 39 – temporários e permanentes –, expandiram sua área de 52 para 87%. Nesse mesmo tempo, os outros 35 viram perder sua superfície de cultivo de 48 para 13%.
Figura 1. Evolução da área de cultivo dos itens agrícolas do Paraguai, anos 1990-2016 (percentual)

Terras paraguaias em mãos estrangeiras
O censo agropecuário do ano de 2008 definiu a existência de aproximadamente 32 milhões de hectares destinados à agricultura e à pecuária, com mais de 278 mil produtores individuais que se encontravam a cargo dessas terras. Menos de 12 mil produtores eram estrangeiros, ou melhor: 4,2% do total. Os terrenos que se encontram em seu poder, no entanto, representam uma maior proporção do total das terras existentes.
Os proprietários de terra brasileiros, menos de 9 mil, são donos de quase 5 milhões de ha., ou 15% da superfície agropecuária do Paraguai. Por outro lado, os proprietários estrangeiros – não brasileiros – menos de 3 mil pessoas, possuem mais de 3 milhões de ha: 10% da superfície rural. Ao todo, estrangeiros brasileiros e não brasileiros são proprietários de aproximadamente 8 milhões de ha.: 25% de todas as terras rurais do Paraguai.
Em algumas localidades do país, o percentual de terras em mãos estrangeiras é quase o triplo da proporção registrada em nível nacional. Assim, o Alto Paraná, que está entre as 17 regiões paraguaias que possui a maior quantidade de terras em mãos estrangeiras, 67% de toda superfície agropecuária não pertence a proprietários paraguaios. Em segundo lugar, encontra-se a região de Canindeyú, com 64% de suas terras em mãos estrangeiras, seguido pelo Alto Paraguay, com 52% da superfície rural estrangeirizada.
Entre os estrangeiros, são os cidadãos brasileiros os donos da maior parte das terras paraguaias. Canindeyú ocupa o primeiro lugar com 59% e, em terceiro lugar, novamente Alto Paraguay, com 36% de seu solo pertencente a proprietários brasileiros.
Figura 2. Proporção de terras agropecuárias paraguaias em mãos brasileiras, por regiões.

A necessidade de ampliar a produção para satisfazer uma demanda externa em permanente crescimento obrigou o emprego de uma maior quantidade de terras para a agricultura e para a pecuária. Os dados nos mostram uma intensificação na concentração de terras nas grandes propriedades, essas que já se encontravam em mãos de poucos. Também se verificou a redução do número de propriedades rurais cujas dimensões não superam os 50 ha., isto é, nos territórios onde se desenvolve a agricultura familiar camponesa.
Um mercado assegurado para os itens agropecuários, produzidos em larga escala, incentivou o investimento de compras de terras rurais por parte de cidadãos estrangeiros, os quais perceberam, na produção e na exportação um bom negócio, dotado de importante sustentabilidade econômica no tempo.
Isso fez com que 25% do território agropecuário se estrangeirizasse, superando, em algumas regiões, 60% da todas as suas terras, como é o caso da região do Alto Paraná. Esse cenário põe em dúvidas a soberania do território paraguaio, sobretudo nesses lugares onde a população rural acabou ficando com escassas, ou nulas, possibilidades de participar dos benefícios do desenvolvimento, cujos atores são proprietários de terras estrangeiros.
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Hugo Pereira Cardozo, licenciado em Ciências da Educação com ênfase em Ciências Sociais; especialista e mestre em Metodologia de Pesquisa pela Universidad Tecnológica Intercontinental de Paraguay. Atualmente cursa o Doutorado em Ciências Sociais na UBA. Integra o GT “Extensão crítica. Teorias e práticas na América e no Caribe” e o GT “Estudos críticos do desenvolvimento rural”, Clacso. É membro fundador e integrante do Comitê Científico da Rede Iberoamericana de Pesquisa em Políticas, Conflitos e Movimentos Urbanos. Diretor do Centro de Estudos Rurais Interdisciplinares (Ceri) do Paraguai e Coordenador de Extensão Universitária da carreira de Sociologia da Facultad de Ciencias Sociales (Facso) da Universidad Nacional de Asunción (Una)
Tradução Victor Moreto
Referências
Coronel, B. (2011). Breve interpretación marxista de la historia paraguaya (1537-2011). Asunción, Paraguay: Editorial Arandurã/BASE IS.
Creydt, O. (2010). Formación histórica de la Nación Paraguaya. Asunción, Paraguay: Editorial SERVILIBRO.
Fogel, Ramón. (1990). Los campesinos sin tierra en la frontera. Asunción: Comité de Iglesias.
Fogel, R. (2017). La reforma agraria encarada por el gobierno de Rodríguez de Francia (1814-1840). En Coronel, J. (Comp.), La república francista del Paraguay. Escritos en homenaje a Richard Alan White (11-55). Asunción, Paraguay: Editorial Arandurã.
Kleinpenning, J. (2011). Paraguay 1515-1870. Una geografía temática de su desarrollo. Asunción, Paraguay: Editorial Tiempo de Historia.
Ministerio de Agricultura y Ganadería. (s/f). Cultivos temporales, años 1990-2016. Dirección de Estudios Agronómicos.
Ministerio de Agricultura y Ganadería. (s/f). Cultivos permanentes, años 1990-2016. Dirección de Estudios Agronómicos.
Ministerio de Agricultura y Ganadería. (s/f). Censo agropecuario, 1991.
Ministerio de Agricultura y Ganadería. (2009). Censo agropecuario nacional, 2008. San Lorenzo.
Pastore, C. (1972). La lucha por la tierra en Paraguay. Montevideo, Uruguay: Editorial Antequera.
Rojas, L. (2017). Independencia y economía durante el período francista. En Coronel, J. (Comp.), La república francista del Paraguay. Escritos en homenaje a Richard Alan White (117-141). Asunción, Paraguay: Editorial Arandurã.
Souchaud, S. (2007). Geografía de la migración brasileña en Paraguay. Asunción: UNFPA/ADEPO/Embajada de Francia en Paraguay.
White, R. (1989). La primera revolución popular en América. Paraguay (1810-1840). Asunción, Paraguay: Carlos Schauman Editor.
[1] O Paraguai tornou-se independente da Coroa Espanhola em maio de 1811.
[2] O Paraguai é dividido por um rio que leva o mesmo nome do país, separando-o em duas regiões naturais: região ocidental (ou Chaco) e região oriental.
[3] Anos dos últimos censos agropecuários realizados no Paraguai.
[4] O índice Gini mede o nível de desigualdade de acesso a recursos, como a renda e a terra. O valor do índice é 0 quando se alcança o máximo nível de igualdade possível, enquanto que valores superiores a 0, mas inferiores a 1 – o máximo -, refletem os maiores índices de desigualdade.