Acordo comercial entre Bolsonaro e Trump: chances reais ou ilusão?
As tentativas de um tratado de livre comércio e destes outros itens já estavam na agenda de negociações do setor privado desde o governo de Dilma Rousseff em missões empresariais para os Estados Unidos.
O livre comércio está no imaginário das discussões entre Estados Unidos e Brasil há mais de um século. E também no interesse dos Estados Unidos com outros países latino-americanos, com alguns destes chegando à sua concretização em décadas recentes, entre eles Chile e Colômbia. Apenas como referência, vale lembrar que James Blaine, secretário de Estado norte-americano, propôs em 1881 a criação de uma união alfandegária entre todos os países americanos, cuja discussão foi agenda central da primeira conferência pan-americana iniciada em Washington em outubro de 1889. Nela não se chegou a qualquer resultado no âmbito comercial. No caso da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), discutida a partir de 1990 também por proposta norte-americana, já sabemos o resultado: negociações encerradas em Mar del Plata em 2005.
A proposta recente de um acordo de comércio com o Brasil está sendo levada em consideração pela administração Trump. Em abril e maio de 2020, no âmbito da Casa Branca e do Planalto, foram anunciados esforços para avançar em um acordo sobre regras comerciais entre os dois países. Será que as afinidades ideológicas entre Trump e Bolsonaro serão capazes de gerar condições para essa agenda avançar?
O empresariado e a agenda bilateral
Em dezembro de 2018, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Câmara de Comércio dos Estados Unidos realizaram a 36a Reunião Plenária do Conselho Empresarial Brasil-Estados Unidos (Cebeu) em São Paulo. Jane Fraser e Paulo César de Souza e Silva, presidentes do Cebeu pela seção americana e brasileira respectivamente, em artigo publicado no Portal da CNI, reforçaram que as expectativas para uma relação mais próxima entre Brasil e Estados Unidos com a posse de Bolsonaro eram altas. Sobre o fortalecimento do comércio entre os dois países, de acordo com o Cebeu, destacam-se quatro propostas para alcançar ao longo dos próximos anos: “Em primeiro lugar, a negociação de um acordo de reconhecimento mútuo entre os programas brasileiro e americano de operador econômico autorizado, que permita acelerar o despacho aduaneiro na exportação e importação de bens (…). O lançamento de negociações para o estabelecimento de um acordo para a cooperação e a facilitação de investimentos entre os dois países deve ser outra prioridade (…). Um terceiro acordo fundamental para aumentar a competitividade das multinacionais brasileiras e americanas é o que evitará a dupla tributação nos dois países (…). Ainda nessa agenda, a negociação de um acordo de livre comércio é essencial para que os dois países se beneficiem de forma recíproca”.
As tentativas de um tratado de livre comércio e destes outros itens já estavam na agenda de negociações do setor privado desde o governo de Dilma Rousseff em missões empresariais para os Estados Unidos. As demandas do grupo que defendia em Washington os empresários brasileiros conhecido como Brazil Industries Coalition (BIC), que operou até agosto de 2018, tinha essa mesma agenda.
Na reunião de Bolsonaro e Trump, em Washington, em março de 2019, um dos pontos de pauta discutido foi o das possíveis ações de facilitação de comércio, investimentos e boas práticas regulatórias. Sobre a questão, a Câmara Americana de Comércio no Brasil (Amcham Brasil) realizou uma pesquisa com 252 CEOs e diretores de empresas de companhias de diversos setores no Brasil, imediatamente antes da viagem, mostrando que uma boa parte não acreditava que a visita de Bolsonaro teria efeitos concretos no fluxo comercial. “Apesar de reconhecer o esforço do novo governo em atingir um novo patamar na relação bilateral Brasil-EUA, os empresários brasileiros não esperam que a visita do presidente Jair Bolsonaro gere, no curto prazo, medidas concretas que reforcem o fluxo comercial entre os dois países” diz a pesquisa.
Sobre as ações recentes de ambos os governos e como elas influenciaram o ambiente de negócios, pesam bem mais questões não diretamente relacionadas com as relações bilaterais. Dos entrevistados, 51% acreditavam que a principal medida do governo Trump que ajudou na atuação de empresas brasileiras no exterior foi a sobretaxa a produtos chineses no mercado americano, o que teria levado a China a comprar mais do Brasil.
Wilbur Ross, Secretário de Comércio de Trump, visitou o Brasil em Julho de 2019. Em seu discurso em São Paulo, na Amcham, ressaltou a perspectiva de que os dois países deveriam trabalhar juntos para a redução de tarifas, alinhando-se com o discurso do primeiro encontro dos presidentes em março de 2019. Nesta ocasião, ele recebeu documento que incluiu 10 propostas consideradas pelos empresários brasileiros prioritárias na relação entre os dois países: 1. Acordo de Livre comércio; 2. Acordo para evitar dupla tributação; 3. Acordo de Investimentos; 4. Global Entry; 5. Facilitação de Comércio; 6. Cooperação Regulatória; 7. Boas práticas regulatórias; 8. Propriedade Intelectual; 9. Apoio à adesão do Brasil na OCDE; 10. Mecanismos bilaterais em áreas estratégicas.
Além desses eventos, outros encontros continuaram tendo pautas semelhantes e buscaram avançar nos temas já mencionados, dos quais podemos citar: (a) a décima sexta edição do Diálogo Comercial entre Brasil e Estados Unidos realizada em agosto de 2019 na sede do Departamento de Comércio dos Estados Unidos, em Washington (reunião anterior desse diálogo foi realizada em 2017, sendo que esse fórum foi estabelecido em 2006, nas administrações Lula da Silva e W.Bush); (b) o Fórum de CEOs Brasil-EUA; (c) em 9 e 16 de abril de 2020, houveram reuniões da Comissão de Relações Econômicas e Comerciais Brasil-EUA conhecida como ATEC, com vários ministros e representantes do Brasil e do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR).
Resultados econômicos
Nos dados do Ministério da Economia, a pauta brasileira de janeiro a maio de 2020 de exportação para os Estados Unidos compõe-se em 85,6% de produtos classificados como da indústria de transformação, em 2019 tinha sido de 82,7%. O total exportado para os Estados Unidos de janeiro a maio de 2020 foi de US$ 8,5 bilhões e de aproximadamente US$ 30 bilhões em 2019. O volume do comércio de mercadorias e serviços entre o Brasil e os Estados Unidos, continua favorecendo mais estes últimos. Segundo Bureau of Economic Analysis, o superávit norte-americano vis-à-vis o Brasil, que vinha desde 2007, portanto durante mais de uma década, evoluiu de 2018 a 2019 de US$ 31,7 a 32,4 bilhões. O setor de serviços é o maior responsável por esse resultado: em 2019 o déficit foi de US$ 20,1 bilhões, ainda que em 2018 tenha sido de US$ 22,1 bilhões.
Seguindo essa tendência, não há horizonte na busca de diminuição do déficit comercial brasileiro. Comprova-se deste modo, o interesse das empresas e das agências norte-americanas pela facilitação de comércio. A consequência, ao não existirem políticas brasileiras formuladas pelo poder público, é a transferência de empregos qualificados para os Estados Unidos. No melhor dos casos, mais exportação de produtos, ainda que manufaturados ou semi-acabados, com alto teor de dependência de recursos naturais ou commodities e maior importação de produtos tecnológicos.
O argumento fortemente utilizado pelos norte-americanos nas suas relações externas, de que seu interesse é diminuir o seu déficit comercial, não é utilizado pelo Brasil como significativo argumento de barganha. Não desconhecemos que a teoria econômica discute exaustivamente o papel da relações externas e que o equilíbrio da balança não é o único fator. Como receptor de Investimento Estrangeiro Direto dos Estados Unidos, conforme o Bureau of Economic Analysis, no último ano, o volume de investimentos dos Estados Unidos aos Brasil foi de 2,5 bilhões de dólares. Números que demonstram razoável estabilidade de 2016 a este último ano. Valores significativamente abaixo de anos anteriores, quando em 2011 o investimento norte-americano atingiu quase dez bilhões, mas superiores ao nível menor, que foi de US$ 448 milhões em 2015.
Um acordo pode se concretizar?
A Aamcham Brasil, que representa mais de 5 mil empresas brasileiras e norte-americanas, desenvolve propostas para uma parceria bilateral mais ambiciosa, mas que reconhecidamente tem conotação normativa, de mais longo prazo. Entre elas, constava o acordo de livre comércio entre Brasil e EUA, iniciando-se por negociações em termos não tarifários e caminhando gradualmente para o objetivo final. Deborah Vieitas, CEO da Amcham, explicita isso: “Precisamos de medidas a curto prazo para trazer um novo fôlego de diálogo à relação e aquecer negociações para conquistas amplas e ambiciosas. A intenção de um acordo comercial pode até aparecer em discurso dos dois presidentes, mas sabemos que ela é completamente dependente desse entusiasmo comercial e bilateral renovado a curto prazo”
O setor privado ligado às associações comerciais interessadas no comércio bilateral tem a expectativa de que, no governo Bolsonaro, a pauta do livre comércio possa avançar. (Amcham Brasil, 2019). Documento divulgado pelo think tank conservador Atlantic Council e pela Apex-Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) em maio 2020, sugere: “A negociação de uma primeira etapa de um acordo comercial tem mais chances de ser concluída no curto prazo, além de reduzir o número de questões a serem tratadas em uma futura negociação de acordo de livre comércio”. Em virtude disso, as entidades representativas de empresários, Amcham, CNI, Brazil U.S. Business Council, enviaram uma carta com um documento no qual são sistematizadas essas demandas endereçando tanto ao Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR) e o Conselho Econômico da Casa Branca (NEC) quanto aos Ministérios da Economia e das Relações Exteriores. Não foram consideradas, até o momento, manifestações de grupos ligados a movimentos sociais, partidos políticos e ONGs, a respeito do impacto desse possível acordo.
Schreiber descreve que a estratégia de um acordo mais restrito visa também evitar que seja necessária a discussão no Congresso, ou que gere conflitos com as regras do Mercosul. Nesse caso, mesmo excluindo assuntos tarifários, certamente o possível acordo traz como corolário o agravamento das relações com os parceiros do Bloco regional do Sul. Desde 1991, Tratado de Assunção e Acordo do Jardim das Rosas, as negociações comerciais com os Estados Unidos têm sido levadas prioritariamente como bloco. Da mesmo modo, um acordo específico com os Estados Unidos enfraquece a tradicional política brasileira de privilegiar o multilateralismo.
Entretanto, o possível acordo comercial, que vem sendo discutido no âmbito da Casa Branca e do Planalto, está sendo questionado. Os representantes do Partido Democrata – que têm maioria na Câmara dos Deputados dos EUA – na Comissão de Orçamento e Tributos (Ways and Means), em 3 de junho de 2020, declararam em carta endereçada ao Embaixador Robert Lighthizer do USTR que são contra qualquer acordo comercial com o Brasil de Bolsonaro: “Opomo-nos fortemente a perseguir qualquer tipo de acordo comercial com o governo Bolsonaro no Brasil. O aprimoramento do relacionamento econômico entre EUA e Brasil nesse momento minaria os esforços dos defensores dos direitos humanos, trabalhistas e ambientais do Brasil para avançar no estado de direito e proteger e preservar comunidades marginalizadas”. Vale ressaltar que esta é a comissão mais importante no Congresso norte-americano. A credibilidade brasileira tem sido questionada desde o processo do Impeachment de Dilma Rousseff pela instabilidade resultante. No começo do mandato de Bolsonaro, em decorrência dos incêndios da Amazônia, senadores dos Estados Unidos também se manifestaram contra a postura do presidente. A atual instabilidade institucional brasileira, considerando a falta de uma política eficaz no combate à Covid-19, fez a Casa Branca anunciar que iria banir os voos vindos do Brasil.
Apesar dessa resistência a acordos com Brasil, as negociações são reais. O chamado “mini deal“, isto é, um acordo que não precisaria da aprovação dos Congressos, pois não incluiria tarifas, apenas regras, está em pauta. Seus defensores ainda têm a expectativa de que sua assinatura ocorrerá até Agosto deste ano. O que não se traduz em vantagem para a sociedade brasileira. Kjeld Jakobsen afirmou que numa situação de economia fragilizada, o Brasil tem mais a perder do que a ganhar com esta agenda. Seria importante um debate amplo, talvez até mesmo audiências públicas no Congresso para aumentar a transparência do processo.
Outro aspecto fundamental para a análise de se há chances reais desse acordo se concretizar depende das dúvidas sobre a política e a economia norte-americana. Qualquer seja a evolução da campanha presidencial, acordos, mesmo aqueles para os quais não é necessário o voto congressual, são mais difíceis, ainda que não impossíveis, de se concretizarem em situações pré-eleitorais. Nesse sentido, Trump pode se encontrar na condição de lame duck e a pressão para um acordo com o Brasil pode não se traduzir em seus cálculos de custo-benefício eleitoral e por isso ser deixado de lado. A possibilidade de Trump não se reeleger existe, haja vista que as pesquisas em junho indicam que ele está atrás do candidato Democrata Joe Biden. O sonho de uma parte do empresariado, de que finalmente um tratado de livre comércio começaria a ser negociado, mesmo que a longo prazo, pode não ter chances reais.
Laís F. Thomaz é vice diretora da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) pela Regional Centro Norte e Professora da Universidade Federal de Goiás (UFG). Tullo Vigevani é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC). Ambos são Pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).