EDUCAÇÃO/EUROPA
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Adaptação e flexibilidade
Há mais de dez anos, os dirigentes europeus defendem que a primeira missão da escola é apoiar os mercados, e que a solução para os problemas do desemprego e da desigualdade está em uma melhor adequação entre o ensino e as “necessidades” econômicasNico Hirtt
Androulla Vassiliou, comissária para a Educação na Europa, resume em algumas frases suas prioridades: “Aperfeiçoar as competências e o acesso à educação, concentrando-se nas necessidades dos mercados”, “ajudar a Europa a participar da competição globalizada”, “equipar os jovens para o mercado de trabalho atual” e “responder às consequências da crise econômica”.1
Esse pensamento sintetiza as concepções dos dirigentes europeus que, há mais de dez anos, consideram que a primeira missão da escola é apoiar os mercados, e que a solução para os problemas do desemprego e da desigualdade reside em uma melhor adequação entre o ensino e as “necessidades” econômicas.
O Centro Europeu para o Desenvolvimento da Formação Profissional (Cedefop) prevê para os próximos anos um aumento do emprego altamente qualificado, mas também “um crescimento significativo do número de empregos para os trabalhadores dos setores de serviços, especialmente no comércio varejista e na distribuição, assim como em outras ocupações elementares que necessitam de pouca ou nenhuma qualificação formal”2. Uma tendência que os Estados Unidos também conhecem: dos 40 empregos que apresentaram maior crescimento em volume, apenas oito necessitam de níveis altos de qualificação (ensino médio + quatro anos ou mais de estudos), enquanto 20 não requerem mais que uma curta formação “na prática” (short-term on-the-job training)3. Diversos autores anglo-saxões descrevem essa polarização pela oposição de “MacJobs” e “McJobs” (em referência ao computador Mac da Apple e ao Mc de McDonald’s).
Essas transformações do mercado de trabalho, que contrastam com o habitual discurso sobre a “sociedade do conhecimento”, têm necessariamente consequências radicais para as políticas educacionais.
A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) viu-se obrigada a reconhecer cinicamente que “nem todos abraçarão uma carreira no dinâmico setor da ‘nova economia’ – na verdade, a maioria não o fará –, de modo que os programas escolares não podem ser concebidos como se todos fossem chegar longe”5.
Na França, Claude Thélot, presidente da Comissão para o Debate Nacional sobre o Futuro da Escola, retomava a mesma tese no relatório enviado, em 2004, ao primeiro ministro François Fillon: “A noção de sucesso para todos não deve se prestar a confusões. Ela certamente não quer dizer que a escola deve se propor a fazer com que todos os alunos atinjam as qualificações escolares mais elevadas. Isso seria, ao mesmo tempo, uma ilusão para os indivíduos e um absurdo social, já que as qualificações escolares não estariam mais associadas, nem vagamente, à estrutura dos empregos”6.
Nessas condições, qual pode ser a base de formação comum para, de um lado, futuros engenheiros e, de outro, futuros trabalhadores fracamente qualificados?
Sem qualificação
Se pararmos para refletir um instante, emprego não qualificado de fato não existe. Apenas se convencionou chamar assim os empregos cuja qualificação não é reconhecida, em razão de que seus saberes, o saber fazer e os comportamentos que exigem são supostamente partilhados por todos. Desse modo, desde o início do século XX, a posse de um nível elementar de leitura e escrita não é mais considerada uma qualificação. O mesmo ocorre com a carteira de motorista ou a utilização de um teclado de computador. Essas não qualificações não são objeto de nenhuma negociação coletiva, portanto não oferecem, além das condições legais mínimas, nenhuma garantia em matéria de salário, condições de trabalho ou proteção social.
Os empregos “não qualificados” contemporâneos têm a particularidade de recorrer a competências numerosas, mas de nível bastante baixo. Por exemplo, o “balconista” que trabalha no vagão-restaurante de um trem bala internacional deve conseguir comunicar-se de maneira elementar em diferentes línguas; possuir disposições para o cálculo mental; dominar um mínimo de cultura tecnológica, digital e científica, para conseguir lidar com um conjunto de instrumentos variados (forno, micro-ondas, ebulidor, caixa registradora, leitoras de cartão bancário, refrigerador, sistema de alto-falantes, painel de alimentação elétrica…). Ele também precisa demonstrar competências sociais e relacionais no contato com clientes muito diferentes, além de senso de iniciativa, espírito empreendedor e flexibilidade (em razão dos horários e imprevistos que podem ocorrer nos trens).
E essa é mais ou menos a lista das “competências de base” estabelecida pela Comissão Europeia, que deve servir de base para a reforma dos sistemas educativos, da escola primária à formação profissional, passando pelo ensino fundamental e médio: “comunicação na língua materna; comunicação em línguas estrangeiras; competência matemática e competências de base em ciências e tecnologias; competência digital; aprender a aprender; competências sociais e cívicas; espírito de iniciativa e de empreendedorismo; sensibilidade e expressão culturais”7.
Capacidades das quais estariam excluídos 30 milhões de trabalhadores europeus, na disputa pelo acesso aos novos empregos “não qualificados”. Isso pode levar os empregadores a recrutar trabalhadores superqualificados, portanto, mais caros. A Comissão espera uma pressão para baixo sobre os salários: “Para um dado nível de demanda, correspondente a determinado tipo de competências, o aumento da oferta resultará em uma baixa dos salários reais para todos os trabalhadores que já disponham dessas competências”8.
A substituição da competência pelo saber responde também a uma demanda crescente de flexibilidade e adaptabilidade da mão de obra. A instabilidade econômica, somada ao desenfreado uso da inovação tecnológica – visando criar novos mercados ou melhorar a produtividade – reduz o horizonte de previsibilidade.
Ninguém sabe como serão as relações técnicas de produção em 2020, portanto ninguém pode prever as necessidades precisas em termos de conhecimentos ou de qualificações. Em contrapartida, as competências enumeradas pela Comissão são percebidas como códigos de valor seguros, garantias da capacidade de adaptação dos futuros trabalhadores. O que confirma a OCDE: “Uma força de trabalho dotada dessas competências está pronta a adaptar-se continuamente à demanda e aos meios de produção em constante evolução”9.
A orientação para esse ensino significa também uma individualização das trajetórias de aprendizagem. O professor não está mais encarregado de conduzir um grupo-classe a progredir coletivamente; sua função é apenas permitir que os indivíduos exerçam e desenvolvam suas competências, cada um em seu ritmo. A Comissão Europeia propõe, assim, generalizar “a experiência dos países que utilizam os portfólios de competências”, “os planos individuais de avaliação da aprendizagem”, além da “validação das aprendizagens não formais e informais”. Uma boa maneira, também, de livrar o mercado de trabalho das “regulações restritivas” que impunham as formas tradicionais do diploma e da qualificação…
Nico Hirtt é professor e membro do Apelo por uma Escola Democrática (Bruxelas).