Adeus à multietnia
Agora são os albaneses que perseguem os sérvios e os ciganos em Kosovo. Triste fim para uma intervenção internacional cujo objetivo declarado era “restabelecer o caráter multiétnico” da provínciaJean-Arnault Dérens
Oito meses depois da chegada das tropas da OTAN a Kosovo, quantos não-albaneses ainda restam nesta província? Sérvios, montenegrinos, e também ciganos [1] e eslavos muçulmanos, são vítimas de uma “limpeza étnica” sistemática. De agora em diante, mesmo os membros da comunidade turca, tradicionalmente próximos dos albaneses, estão intimados a se “albanizar”, se desejam permanecer. [2] A ponto de, no final de dezembro de 1999, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, reconhecer que os ataques às minorias “continuam sendo o principal problema dos direitos do homem em Kosovo”. [3] Triste balanço, já que a presença internacional em Kosovo deveria, segundo a resolução 1244 do Conselho de Segurança, restabelecer o caráter multiétnico da província.
O êxodo de sérvios e ciganos aconteceu em dois tempos. Um grande número de sérvios fugiu ao mesmo tempo em que o exército iugoslavo e a polícia sérvia se retiravam de Kosovo. Os primeiros a partir foram os funcionários da região, deixando a comunidade sérvia desamparada. Alguns refugiados, reconhecendo as extorsões cometidas durante os meses anteriores, pareciam aceitar como uma fatalidade a lógica da vingança: “Nós os caçamos, mas perdemos a guerra; é a vez deles nos caçarem”, exclamou um deles a caminho do exílio.
O Kosovo não é a Bósnia. Aqui, o ódio recíproco é antigo. Os casamentos entre as comunidades sempre foram raríssimos, e, esclarecem os albaneses sem pestanejar: “não há sérvios inocentes”. Na realidade, a pequena comunidade sérvia da região foi quase totalmente manipulada pelo regime de Belgrado durante os dez últimos anos. Raras eram as famílias que não tinham ao menos um filho policial.
Contudo, importantes comunidades sérvias e ciganas preferiram ficar nas cidades, mas as pressões albanesas, as agressões, às vezes os assassinatos, forçaram-nas a fugir durante o último verão europeu. Os massacres de sérvios e ciganos não podem, então, ser atribuídos, em sua totalidade, a uma lógica de vingança, visto que as operações de “contra-limpeza étnica” datam de várias semanas depois do retorno dos refugiados albaneses.
Massacres planejados, OTAN indiferente
Além disso, estas violências foram cometidas na presença de militares da KFOR, que se revelaram incapazes — exceto em alguns pequenos territórios — de proteger as populações não-albanesas. A intenção era realmente garantir a segurança das minorias? Às vezes, era possível duvidar, vendo, por exemplo, os militares franceses observarem, calmamente, a depredação e o incêndio das casas em Vucitrn ou em Kosovska Mitrovica. Ou constatando que, em Pristina restam, de uma forte comunidade sérvia de mais de 30 mil pessoas, apenas algumas centenas de velhos escondidos em seus apartamentos.
Poucas vozes se ergueram, entre os intelectuais albaneses de Kosovo, para denunciar esta “limpeza étnica reflexiva”. Apenas o jornalista Veton Surroi, proprietário do jornal diário Koha Ditore, ousou deunciar a vergonha do “fascismo albanês”. [4] Esta atitude corajosa lhe rendeu uma campanha de imprensa suja, coordenada pela Kosova Press, agência de notícias do ex-Exército de Libertação do Kosovo (UCK). Vários jornalistas do diário Bota Sot não hesitaram em denunciar o “mau cheiro de eslavismo” que “infestava” Koha Ditore.
Depois dos ataques armados nas cidades e povoados, dos quais seria difícil fazer um balanço, [5] a violência talvez tenha alcançado seu auge com o linchamento de uma família sérvia pela multidão reunida nas ruas de Pristina para a festa nacional albanesa, em 28 de novembro de 1999. Provavelmente, vários destes trágicos incidentes aconteceram de maneira “espontânea”, com os albaneses tentando fazer justiça ou manifestar seu ódio. Na maioria dos casos, contudo, os ataques precisavam ser organizados minuciosamente. O UCK ou os grupos independentes desenvolveram, de fato, uma estratégia de terror para efetuar uma limpeza étnica sistemática.
Adepto de longa data do diálogo entre as comunidades, o filósofo Shkëlzen Maliqi prefere, contudo, classificar as violências como simples “excessos”. [6] Mas, no anonimato, um jornalista de Pristina garante que, se a crueldade revolta um grande número de albaneses, “ninguém ousa denunciá-la publicamente. É extremamente difícil posicionar-se contra a comunidade nacional. Um simples gesto independente expõe imediatamente à acusação de traição”.
Jiri Dienstdier, antigo ministro checo dos Negócios Estrangeiros e relator especial da Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas para a ex-Iugoslávia, escreveu em 2 de novembro de 1999 que “a situação no Kosovo pode-se resumir da seguinte forma: a depuração étnica contra os albaneses que se produziu na primavera [européia], acompanhada de assassinatos, torturas, saques e incêncios de residências, foi seguida no outono pela depuração étnica contra os sérvios, ciganos, bósnios e outros não-albaneses. As mesmas atrocidades foram cometidas. (…) É trágico que isso se produza atualmente na presença da Mïssão das Nações Unidas no Kosovo (Minuk), da KFOR e da Organização pela Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). [7]
No dia seguinte, esta última afirma, num relatório publicado em conjunto com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur): “A situação geral das minorias étnicas no Kosovo continua precária”. Estimando que a baixa do número de incidentes reflete a diminuição da população sérvia e cigana, a OSCE acrescenta: “Os analistas informados constatam um clima de violência, impunidade, discriminação, fustigamento e intimidação muito difundidos contra os não-albaneses. (…) Esta falta de respeito aos direitos humanos também afeta de maneira crescente os albaneses moderados e aqueles que criticam abertamente o atual clima de violência”. [8]
“Não restam muitos sérvios para matar”
De fato, a violência aflige cada vez mais os albaneses. “Não restam muitos sérvios a matar”, esclarece, não sem cinismo, um responsável pela Missão das Nacões Unidas em Kosovo (Minuk). Nos numerosos povoados de Kosovo, os responsáveis pela Liga Democrática de Kosovo (LDK), o partido do “presidente” Ibrahim Rugova, foram vítimas de extorsões e precisaram se esconder. Um deles, Xhafer B., reconheceu que a competição entre a LDK e a UCK é implacável: “As pessoas da UCK têm uma concepção hegemônica do poder. Os responsáveis por nosso povoado lhes deviam fidelidade ou, senão, renunciavam à cena política”.
Em Pristina, a OSCE e os diferentes órgãos de defesa dos direitos do homem admitem ser incapazes de avaliar as diferentes formas de violência. “Entre os mortos albaneses, vários podem ter sido colaboradores do regime sérvio, militantes políticos adversários, vítimas de atos de vingança particular e outros — enfim, simplesmente mortos por motivos criminosos”, informa o respresentante do International Crisis Group (ICG), [9] em Pristina.
A UCK estaria na origem do extermínio de militantes da LDK, mas também não é impossível que o confronto entre os partidários de Rugova e os do antigo “primeiro-ministro exilado da República do Kosovo”, Bujar Bukoshi, tenha feito suas vítimas. Enfim, é provável que a acusação de “colaboração” possibilite satisfazer vinganças pessoais. A sociedade albanesa continua dirigida pelas normas tradicionais do kanûn, que tolera mas regulamenta a vingança. Segundo o kanûn, “tudo passa, exceto o sangue”. Cada crime chama uma revanche e a vingança pode continuar por anos após o primeiro crime.
Os crimes contra o direito coletivo são o último detonador da violência. Gnjilane tornou-se um dos principais centros rotativos do tráfico de drogas, ponto essencial de um triângulo formado pela cidade de Tetovo, na Macedônia — onde, há muito tempo, desembocam as rotas turca de heroína e cocaína — e o norte da Albânia — região sem lei onde as poderosas máfias não admitem a intervenção do Estado. “Seria preciso muita ingenuidade ou má-fé para se espantar com a presença das máfias albanesas no Kosovo”, surpreende-se um responsável civil da Minuk. “Durante a guerra, a UCK dependia das máfias do norte da Albânia para transportar as armas, e, certamente, permitiu que elas se instalassem deliberadamente em Kosovo. A fronteira albanesa está aberta e pode-se deixar passar caminhões carregados de droga para Prizren”.
A Minuk está apenas começando a se conscientizar do perigo mafioso. Mas o número de policiais das Nações Unidas é desesperadamente insuficiente — no final de dezembro de 1999, apenas 2 mil, em lugar dos 6 mil prometidos. Quanto às primeiras promoções de policiais locais formados por instrutores internacionais, só entrarão em vigor depois de vários meses. O sistema judiciário de Kosovo, como sempre, não funciona. A polícia internacional pode deter suspeitos, mas, sem autoridade para julgá-los, geralmente os coloca em liberdade depois da inspeção. “A comunidade inernacional parece mais preparada para se comprometer com a guerra que para construir a paz”, confidenciou à imprensa, não sem amargura, o embaixador Daan Everts, chefe da missão da OSCE em Kosovo.
A UCK, que se dissolveu oficialmente em setembro de 1999, aumentou o número de condenações por violência, sem o menor resultado. É bem provável que ela esteja perdendo o controle dos grupos político-mafiosos que agem aqui e ali. Em toda parte, porém, seus homens ocupam a primeira fila no território onde as organizações do ex-Exército da Libertação permanecem atuantes, bem como na cena política, por intermédio do “governo provisório” de Ashim Thaçi. Constituído no início de abril, na Albânia, este último não tem legitimidade alguma, mas a administração das Nações Unidas considerou uma obrigação aceitá-lo como interlocutor. A criação de uma Associação de Segurança de Kosovo (TMK), reunindo uma parte dos antigos guerrilheiros, poderia ter sido uma tentativa de agrupar os jovens convencidos de terem libertado seu país e que não desejavam baixar suas armas. À exceção do comandante do TMK, antiga autoridade da UCK, Agim Ceku, suspeito de ter cometido, em 1993 — com uniforme croata — crimes de guerra contra civis sérvios de Krajina…
Os “pós-maoístas” no poder
Assim, a UCK instalou, nos conselhos municipais, autoridades civis que têm, freqüentemente, mais poder real que os administradores internacionais. Administrador civil do município de Lipljan (80 mil habitantes), a cerca de vinte quilômetros de Pristina, Diego Zorilla dispõe apenas de um intérprete, uma secretária e um escritório sem computador e telefone. “Como eu poderia administrar o município? Eu precisaria de 120 pessoas! No máximo, podemos tentar ajudar os habitantes a se auto-administrarem procurando manter firmes alguns princípios, como a multietnia…” Uma auto-administração que se assemelha, no momento, a uma monopolização do poder pelos militantes “pós-maoístas” do Movimento Popular de Kosovo (LPK), espinha dorsal ideológica da UCK.
O Conselho de Transição instalado por Bernard Kouchner fracassou em um de seus principais objetivos: reunir os representantes de todas as comunidades nacionais de Kosovo. Quando o representante dos eslavos mulçumanos no Conselho, Numam Balic, solicitou que fosse reconhecido o caráter bilíngüe de Kosovo, com um estatuto único para o albanês e o servo-croata, língua de comunicação de sérvios, muçulmanos e croatas da província, ele impediu a oposição de Rugova.
Em setembro de 1999, monsenhor Artemije, bispo ortodoxo de Prizren e de Raska, e Momcilo Trajkovic, presidente do Movimento de Resistência Sérvia, deixaram o Conselho. Os sérvios da província formaram seu próprio Conselho Nacional, presidido pelo bispo. A diocese ortodoxa de Prizren condenava há muito tempo a violência da repressão sérvia e exaltava o diálogo: “É a única solução para sair da polarização nacional desejada e organizada por Slobodan Milosevic”, observa o padre Sava (Janjic), porta-voz do bispo. Para ele, “as idéias da Grande Sérvia e da Grande Albânia são simétricas e os dois nacionalismos alimentam-se um do outro. Hoje, como ontem, são os povos de Kosovo que sofrem as conseqüências”.
Este Conselho, que denuncia energicamente a política de Slobodan Milosevic, “vampiro, acima de tudo, e sempre sedento de sangue sérvio”, é reconhecido pelos sérvios dos lugarejos de Gracanicam, Kosovska Vitina e Orahovac, cerca de 30 mil pessoas, enquanto que os da região norte de Kosovska Mitrovica, extensão territorial com a Sérvia, constituíram seu próprio Conselho, e não estão protegidos das manipulações do regime de Belgrado.
Com sua região sérvia à margem norte do rio Sitnica e sua região albanesa ao sul, “recuperadas” tanto uma como outra, e separadas pelos soldados franceses da KFOR, com o reforço dos destacamentos britânicos e italianos, Kosovska Mitrovica simboliza todas as tensões de Kosovo, como provam os incidentes que se sucederam a partir de fevereiro de 2000. As forças internacionais recusam-se a oficializar a divisão da cidade, cuja reunificação os albaneses reivindicam veementemente. Na outra margem, ouve-se: “Mais vale uma cidade dividida, onde os sérvios possam permanecer, que uma cidade unficada na qual serão caçados”. Além do mais, a disputa ultrapassa a cidade, porque o território compreende também o grosso das minas de Trepca. Se estas não funcionam mais há dez anos, suas riquezas em ouro, prata, zinco, chumbo, cádmio e bismuto estimulam as cobiças. Mas a privatização parcial do conglomerado criou uma verdadeira confusão jurídica, que impede a Minuk de retomar a produção. [10]
Em seus votos para o ano 2000, Kouchner manifestou novamente sua simpatia pela multietnia da província, antes de precisar que manterá seu cargo ao menos até as eleições gerais, no decorrer do ano. Muitos observadores avaliam que a LDK de Rugova deveria ultrapassar os partidos nascidos da UCK, pois vários albaneses estão cansados do radicalismo dos antigos guerrilheiros. Qualquer que seja o resultado, poucos sérvios ou ciganos voltarão a viver em Kosovo, que terá, assim, sido vítima não somente de uma das “limpezas étnicas” mais sistemáticas das guerras iugoslavas, mas, acima de tudo, da primeira do gênero realizada na presença de representantes civis e militares da comunidade internacional.
Nestas condições, a permanência do Kosovo na Federação Iugoslava corre o risco de assemelhar-se mais a uma ilusão jurídica. A comunidade internacional, porém, recusa-se a considerar a independência da província, porque esta representaria, ao mesmo tempo, uma ruptura das obriga?
Jean-Arnault Dérens é redator-chefe do Courrier des Balkans.