Agricultura nas cidades pode ser forte aliada no combate à fome
Estudos apontam que fortalecer a agroecologia pode criar sistemas alimentares mais justos e resilientes às mudanças climáticas
O Brasil vive o paradoxo, fruto de suas desigualdades estruturantes, de ser um dos maiores exportadores agrícolas do mundo e, ao mesmo tempo, ter 33 milhões de pessoas sem saber se terão três refeições diárias. Em um mundo onde o crescimento e a concentração populacional ocorrem cada vez mais nos centros urbanos, que em 2050 responderá por quase 70% desse contingente, o país tem encontrado formas de lidar com o desafio de combater a fome em meio a um cenário de crise climática. Estas soluções partilham da visão de que as cidades precisam também produzir alimentos, superando o tabu de que tal atividade é exclusiva das zonas rurais.
No cenário global, estas inovações vão desde possibilidades que flertam com a ficção científica, como a carne produzida com cultura de células, até a construção de arranha-céus com fazendas verticais. No entanto, o Brasil tem se destacado por outros tipos de soluções, aquelas que privilegiam as pessoas e a natureza. Este movimento “pé-no-chão” conta com atores dos mais variados perfis (agricultores, urbanistas, ativistas, academia, gestores, empresários) que se organizam para colocar a “mão na terra”, ganhando cada vez mais capilaridade pela multiplicação de espaços de cultivos nos interstícios das metrópoles.
Este retorno da agricultura à cidade ganha muitas formas: hortas residenciais ou comunitárias, pomares agroflorestais, quintais produtivos, jardins comestíveis, praças públicas agroecológicas, cultivos sob linhas de transmissão, agricultura remanescentes dos antigos cinturões verdes, agroflorestas urbanas, entre outras.
Resultado de uma iniciativa do PNUMA, uma pesquisa realizada pela FGVCes revelou que as cidades têm cada vez mais se interessado em apoiar tais iniciativas, desenvolvendo-as enquanto uma agenda própria de caráter intersetorial, principalmente durante a pandemia de Covid 19. Este estudo destaca que além do apoio às iniciativas (ex. terrenos públicos, insumos, ferramentas, bolsas e estrutura de comercialização), a agenda também tem se institucionalizado por meio de leis e marcos regulatórios. Assim, fortalecer e multiplicar os espaços de cultivos, enquanto se cria um arcabouço legal que convida a agricultura para retornar à cidade, são pontos vitais para a sobrevida da agenda através dos diferentes ciclos políticos.
Hoje muitas cidades têm programas de hortas urbanas que mostraram tal resiliência. Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), Canoas (RS), Maringá (PR) e Diadema (SP) mantêm áreas de até 50 hectares (correspondendo a 50 campos de futebol) de hortas comunitárias, sendo emblemáticos os 24 km lineares de cultivos que abraçam a cidade de Sete Lagoas (MG). Tais programas chegam ao patamar produtivo de até 80 toneladas por ano, em vários casos beneficiando diretamente mais de mil famílias em situação de vulnerabilidade.
Estudos apontam que fortalecer esta agricultura e estimular sua transição agroecológica pode amplificar estes benefícios e criar sistemas alimentares mais justos e resilientes às mudanças climáticas. Estudos do Instituto Escolhas, em parceria com o Instituto Urbem e com colaboração do Pnuma, apontam que o potencial produtivo dentro da metrópole paulista, por exemplo, pode ser ampliado para corresponder à demanda por hortaliças e frutas dos seus 21 milhões de habitantes e, assim, gerar 180 mil empregos. Adicionalmente, a adoção de práticas agroecológicas pode fortalecer a resiliência climática das cidades, ao resfriar 0,2 graus Celsius na temperatura, infiltrar o volume de água correspondente a três piscinões de controle de enchentes e melhorar consideravelmente a recarga aos mananciais. São igualmente relevantes os benefícios relacionados à incorporação dos resíduos orgânicos da cidade e à melhoria da saúde física e mental, que, dentre outros, resultam na diminuição dos gastos públicos.
Esta resposta aos desafios da atualidade, construída com o “pé no chão” e a “mão na terra” por brasileiras e brasileiros, ainda carece de mais estudos que permitam entender como é possível dar escala às iniciativas, aumentar o investimento público e atrair a iniciativa privada. Mesmo que ainda existam lacunas, esta agenda tem rendido prêmios internacionais às experiências já maduras, como o Programa Hortas Cariocas, com mais de 15 anos de existência. A base que possuímos já é suficiente para convidar novamente o governo federal, a iniciativa privada e outros atores estratégicos a celebrarem um pacto pelo retorno da agricultura às cidades, respondendo de maneira duradoura aos desafios da insegurança alimentar, das mudanças climáticas e da exclusão social.
Com o Decreto 11.700/2023 que institui o Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana, publicado no último dia 12 de setembro, o Brasil dá um passo importante em busca de soluções sustentáveis para enfrentar os desafios da fome, das mudanças climáticas e da exclusão social no cenário urbano. Essa medida se alinha com a tendência global de repensar a relação entre as cidades e a produção de alimentos, contribuindo para sistemas alimentares mais sustentáveis.
Gustau Máñez é representante do Pnuma no Brasil.
Jay Van Amstel é especialista em Sistemas Alimentares, Pnuma – TEEBAgriFood.