Agro um infortúnio ambiental anunciado, mudança já!
Os acontecimentos nefastos aos bens da natureza e a vida humana inerente ao agronegócio se assemelham aos sortilégios que o feiticeiro invocara e que foi incapaz de dominar. A natureza encontra-se sob forte tensão de degradação, contaminação e supressão subsequentes das atividades antrópicas agrícolas
O agronegócio, popularmente conhecido como agro, com apoio institucional de governo e da mídia, difunde uma noção ilusória de progresso na produção agrícola, na sustentabilidade ambiental, na atividade agroindustrial e na geração de divisas no mercado externo. No entanto, isso procura camuflar que se constitui em uma atividade econômica cosmopolita, com tendência à concentração de capital pela formação de oligopólios, ancorada na diferenciação fundiária (hegemonia territorial do latifúndio na apropriação das rendas de produção e da terra). Em síntese, cria laços de dependência.
Atributos que trazem à tona questões relevantes para a sustentabilidade dos bens da natureza (solo, água, biodiversidade e clima), acaso da crise ambiental nacional:
a) apropriação da terra possibilitou à elite agrária assenhorear e explorar os recursos naturais de uma porção significativa do território rural, na contramão da resiliência dos biomas (Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga, Pampa e Pantanal);
b) 70% das emissões de gases de efeito estufa (GEE) do país resultam de emissões diretas da agropecuária e das transformações dos usos da terra conexas com o desmatamento;
c) o país ocupa os primeiros lugares na lista de países com a maior perda de cobertura florestal, de acordo com a Global Forest Watch, cerca de 40% do desmatamento de floresta tropical ocorreu Brasil, em 2021;
d) a natureza está diante de um fenômeno de economia política rural que transforma a terra, água, a biodiversidade e o clima em mercadoria.
Os acontecimentos nefastos aos bens da natureza e a vida humana inerente ao agronegócio se assemelham aos sortilégios que o feiticeiro invocara e que foi incapaz de dominar. A natureza encontra-se sob forte tensão de degradação, contaminação e supressão subsequentes das atividades antrópicas agrícolas, e que precede aos impactos a regulação climática e a sobrevivência humana e de outros seres, por exemplo:
a) o Cerrado teve 4092 km² desmatados entre janeiro e julho de 2022, o maior valor acumulado nos últimos quatro anos, de acordo com o levantamento do Sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE);
b) a Amazônia Legal, no 1º trimestre 2022, segundo o Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE), teve 941,34 km² desmatados, o maior índice desde 2016;
c) o Brasil, até novembro de 2022, registrou a maior alta nas emissões de gases de efeito estufa em 19 anos, segundo levantamento do Observatório do Clima, houve uma elevação 12,2% em relação ao mesmo período do ano anterior, tendo como principal causa o desmatamento;
d) as emissões de CO2 contribuem de forma cumulativa para o aquecimento do planeta, o site CarbonBrief mostrou que o Brasil é o quarto país que mais contribuiu para as emissões históricas de CO2 no mundo, depois de EUA, China e Rússia, sendo responsável por cerca de 5% das emissões no período 1850-2021, especialmente, por causa do desmatamento descontrolado;
e) o impacto do complexo agroindustrial sobre as emissões é muito maior do que as relacionadas com as atividades primárias, depois de se incorporar as atividades de pré e o pós-produção ao longo da cadeia de suprimentos, varejo, consumo e fases de descarte de resíduos, podendo chegar a 20% a 40% do total das emissões antrópicas1;
f) 2300 cidades brasileiras, em 2021, apresentaram alto índice de contaminação por agrotóxicos na água da torneira, segundo informações do Sistema de Vigilância da Qualidade da Água (SISAGUA), sendo que na lista de 27 substâncias encontradas, 16 foram classificadas pela Anvisa como extremamente ou altamente tóxicas e 11 associadas ao desenvolvimento de doenças crônicas.
Paradoxalmente, a agricultura vem se tornando vítima da desregulação climática. A frequência e a intensidade dos extremos climáticos e meteorológicos vem diminuindo, significativamente, a produtividade agrícola, afetando a soberania e o abastecimento alimentar, como também o comércio externo de comodities.
De fato, alguns produtos agrícolas, tal como a soja, o milho, cana e o feijão, entre outros, já apresentam queda de produtividade em função das mudanças climáticas, notícias recorrentes nos períodos respectivos de safra. Por exemplo, apesar da safra 2021/22 ter sido a maior colheita já registrada dentro da série histórica de produção de grãos no Brasil, o cultivo da soja apresentou o desenvolvimento marcado pela condição climática adversa de altas temperaturas que trouxe impacto severo na produtividade em importantes regiões produtoras, como o Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e em parte do Mato Grosso do Sul. No caso do milho, enquanto na primeira safra houve uma certa estabilidade na produção em relação ao ano anterior devido às condições climáticas desfavoráveis principalmente nos estados do Sul, na segunda safra ocorreu uma retomada na produção em torno de 42%. Os cultivos de feijão enfrentaram problemas climáticos em todas as 3 safras da leguminosa2 .

Os riscos de produção agrícola contemporâneos se agravam diante da possibilidade de não se atingir os limites do Acordo de Paris (conter o aquecimento global em 2 ⁰C e limitá-lo a 1,5 ⁰C), uma preocupação recorrente da sociedade civil e da comunidade científica. O quinto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (AR5–IPCC) mostrou que há 40% de chance para o aquecimento global ultrapassar o limite de 2ºC. Consequentemente, vastas regiões rurais, principalmente, as tropicais, poderão se tornar inóspitas para agricultura com as alterações extremas do clima.
Com a manutenção do padrão atual de emissão a possibilidade de se evitar que o aquecimento ultrapasse o limite estabelecido em Paris se encerra em menos de 35 anos. Se por acaso, ocorrer uma elevação de temperatura de 3 ⁰C, aqui no país poderia vir a ocasionar perdas acima de 30% na produção agrícola como um todo e estas perdas se manifestariam de forma crescente a cada ano3 .
As consequências atuais e futuras de elevação da temperatura é um aspecto importante para a continuidade da agricultura, por ser esta uma atividade diretamente afetada com o aumento da concentração de CO2, o acréscimo de temperatura e o crescimento da frequência dos fenômenos meteorológicos extremos. Sendo demandante da resiliência dos recursos natureza, a agricultura fica cada vez mais vulnerável a degradação antrópica dos biomas (fragmentação ou mesmo destruição).
O impacto das mudanças climáticas para economia política rural traz novos desafios. Pois, o aflorar da exploração predatória dos bens da natureza impõe limites desfavoráveis a agricultura e as biodiversidades de diversos biomas estão prestes a se tornar fonte de emissões de carbono, em vez de um sumidouro de carbono.
O processo de devastação dos recursos naturais se acelerou tal ponto, nas últimas décadas, que não se discute um porvir, e sim as emergências de catástrofes ambientais que estão em curso, uma realidade cotidiana dos territórios urbanos e campestres do país.
A hora de agir é agora, de contrapor a hegemonia do agronegócio no desenvolvimento do território rural, de conter a irreversibilidade da vulnerabilidade dos bens da natureza e de promover a emergência de outro paradigma rural, de caráter ecológico, com a constituição de um processo de transição – mudança já!
Esse processo de transição requer um amplo debate sobre seus objetivos, um diálogo marcado pelo conflito, mas também colaborativo e inclusivo entre o Estado e a sociedade civil, capaz tanto de interromper as atividades sociais, econômicas e produtivas dos cenários onde “tudo permanece igual”, como de garantir um efetivo predomínio do interesse público na sustentabilidade dos bens da natureza, compondo no aparato do Estado ampliado (Gramsci) os interesses sociais, agrários e econômicos à transição ambiental, o que implica em consolidar os mecanismos de socialização da política como síntese da ação do Estado através da sociedade civil, com vistas ao desenvolvimento rural sustentável e ao bem estar das gerações futuras.
1 TUBIELLO, N F. Greenhouse gas emissions from food systems: building the evidence base. Disponível em https://iopscience.iop.org/article/10.1088/1748-9326/ac018e.
2 Levantamento da Safra de Grãos, de dezembro de 2022 da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Disponível em https://www.conab.gov.br/ultimas-noticias/4744-producao-de-graos-atinge-recorde-na-safra-2021-22-e-chega-a-271-2-milhoes-de-toneladas
3 NOBRE, C. Uma reflexão sobre mudanças climáticas, riscos para a agricultura brasileira e o papel da Embrapa. EMBRAPA – Olhares para 2030. Disponível em https://www.embrapa.br/en/olhares-para-2030/riscos-na-agricultura/-/asset_publisher/SNN1QE9zUPS2/content/carlos-nobre?redirect=%2Fen%2Folhares-para-2030%2Friscos-na-agricultura&inheritRedirect=true
Raimundo Pires Silva é engenheiro agrônomo, com doutorado em desenvolvimento territorial e ambiental/UNIARA, consultor da Cátedra Celso Furtado/FESPSP, ativistas das questões agrárias, ambientais e segurança alimentar.