Agronegócio e a crise ambiental
O processo de devastação da natureza e de mudança climática se acelerou a tal ponto nos últimas anos, que não se discute o futuro, mas sim, as emergências ambientais
As mudanças climáticas decorrentes de ações antrópicas vêm expondo com muita intensidade uma questão: a necessidade de se construir uma agenda pela vida e em defesa da manutenção dos recursos da natureza. Estamos diante de uma crise ecológica, que se transforma, devido à mudança climática e a destruição da biodiversidade, numa crise de sobrevivência humana, parafraseando Michael Löwy.
Não são poucos os eventos ambientais ao redor do mundo, incluindo o caos que está acontecendo nos biomas brasileiros nos últimos tempos. O quinto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) destacou que o aquecimento global é inequívoco, e cada vez mais os eventos climáticos acontecerão de forma acentuada e prolongada no território nacional, com o avanço da seca no Nordeste, na Amazônia e no centro-oeste, além da mudança no regime das monções da Amazônia afetando as chuvas no centro-sul.
De acordo com a Global Forest Watch, cerca de 40% dos desmatamentos globais de floresta tropical ocorreu no Brasil e, segundo o boletim do Ipam, os focos de calor, entre janeiro e maio 2022, tiveram aumento de 22% em relação a igual período do ano passado.
De acordo com o sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Cerrado teve 4092 km² desmatados entre o início de janeiro e o fim de julho de 2022, um aumento de 28% em relação ao mesmo período de 2021, sendo o maior valor acumulado nos últimos quatro anos. Na Amazônia, o acumulado de desmatamento foi de 5463 km², isso representa um aumento de 7% em relação ao ano passado. Esse valor é o maior acumulado entre janeiro e julho nos últimos seis anos.
A agricultura nacional enfrenta desafios ambientais crescentes, incluindo mudanças climáticas, escassez ou excesso de pluviosidade, crise no abastecimento hídrico, perda de biodiversidade, compactação dos solos, pragas resistentes e aumento da incidência de desastres naturais. Em suma, sendo demandante de recursos ambientais no processo produtivo, a agricultura fica mais vulnerável às variações do clima e a degradação antrópica dos biomas (fragmentação ou mesmo destruição completa de habitats).

Lucro e poder político
No entanto, estamos num cenário adverso para resolução dos problemas ambientais. As premissas agrárias (concentração da terra e da renda) e o padrão de desenvolvimento do agronegócio (mercado autorregulado, associado e dependente às grandes empresas e aos sistemas financeiros em escala global) há várias décadas são identificados com as dinâmicas de espoliação dos bens da natureza e de subtração da soberania alimentar – um arranjo econômico global que transforma terra, água e biodiversidade em lucro. E ainda, os interesses do agronegócio estão na agenda do legislativo e do executivo. Ressalta-se que no primeiro turno da atual eleição, 70% dos deputados integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) foram reeleitos, e para o Senado a mesma elegeu 40 do total de 81 senadores. Esse poder político pode ser decisivo para a aprovação das pautas do setor, como mudanças no licenciamento ambiental, regularização fundiária, autocontrole da fiscalização agropecuária e registro de agrotóxicos entre outras.
De outro ponto de vista, a pauta de exportação com maior abrangência de poucas commodities agrícolas – grãos de ração (soja e milho) e carnes – aportando divisas para a balança comercial do país, trouxe consequências para o abastecimento alimentar, com redução da oferta de alimentos, reforçando a trágica realidade em que 33 milhões de pessoas passam fome e mais da metade (59%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau, de acordo com dados da Rede Penssan.
Do exposto, depreende-se algumas hipóteses. No marco do sistema de acumulação vigente na economia política rural, não é possível concatenar crescimento econômico com melhor bem-estar social e ambiental. O processo de devastação da natureza e de mudança climática se acelerou a tal ponto nos últimas anos, que não se discute o futuro, mas sim, as emergências ambientais.
O limite da catástrofe de destruição dos bens da natureza já é o cotidiano da vida no país. Se reduz o tempo histórico para tentar impedir, parar e conter esse processo desastroso. Portanto, se faz necessário encontrar e traçar outras trajetórias de uso e ocupação do território rural capazes de criar oportunidades de produção agropecuária com a preservação dos bens naturais gerando soberania alimentar.
A ação do Estado na regulação e na alocação de bens e serviços para construção de uma nova trajetória agrícola, garantindo a sustentabilidade dos bens naturais (solo, biodiversidade, água e clima) com bem-estar social, é fundamental – uma ação de governo com outro conceito de economia rural.
No entanto, cabe advertir que, ao se ampliar as funções do Estado, tal fato não significa por si só amenizar as condições de reprodução capitalista, pois o Estado tem como função intrínseca promover o processo geral de acumulação do capital. Como também cabe destacar que o regime agrário de acumulação capitalista contemporâneo, sob a hegemonia do capital financeiro e das grandes corporações globais, afeta as ações do Estado, principalmente deslegitimando sua intervenção na propriedade, na produção e no trabalho.
Participação social
A participação da sociedade civil na formulação de propostas de ação e políticas públicas e no monitoramento das ações do Estado é essencial para garantir o direito social, a sustentabilidade dos recursos naturais e a soberania alimentar. Entretanto, utilizando o conceito gramsciano, trata-se de uma esfera da vida social na qual diferentes grupos e classes sociais se organizam para disputar a hegemonia, ou seja, para interferir diretamente na correlação de forças que determinam o conteúdo do poder numa formulação concreta – um terreno da luta de classes.
O desafio e a oportunidade de governo num novo porvir, pós eleições, estão em compor no aparato de Estado os interesses sociais, agrários e econômicos a transição ambiental, reconstruindo o poder público nacional, pois a dimensão pública não é somente o aparato estatal, mas também a sociedade civil. Assim, a viabilidade desse novo pacto Estado-Sociedade civil passa pelos desencadeamentos de políticas públicas para fins de promover: os investimentos público e privado, a conservação dos biomas, a inovação, o fomento fiscal e creditício, a política cambial, a produção de alimentos e commodities, a agroindústria e o comércio externo, rumo a um desenvolvimento rural sustentável, inclusivo e com soberania alimentar.
Deve-se aspirar uma outra forma de poder político e de produção que asseveram a vida e os bens naturais comuns. De antemão, o Estado é que precisa ter a condução, mas é imprescindível nessa trajetória a participação dos cidadãos. As alternativas devem acontecer de baixo para cima.
Raimundo Pires Silva é engenheiro agrônomo, doutor em desenvolvimento territorial e ambiental, membro da Cátedra Celso Furtado da FESPSP, diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e ativista das questões agrárias, ambientais e de soberania alimentar.