Água limpa para todos, um direito humano distante no Brasil

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Água limpa para todos, um direito humano distante no Brasil

por Malu Ribeiro
1 de julho de 2019
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O governo brasileiro segue na contramão das políticas públicas de água e meio ambiente que a sociedade vem construindo desde a Constituição Cidadã de 1988. Por meio de reforma administrativa, retirou a Agência Nacional de Águas, voltada para a condução da Política Nacional de Recursos Hídricos, do Ministério do Meio Ambiente

O acesso à água limpa é um direito humano ainda muito distante da realidade no Brasil. Embora o país detenha 12% da água doce do planeta, sua distribuição é desequilibrada no território nacional e as áreas mais adensadas e urbanizadas têm menor disponibilidade hídrica. A poluição dos rios, mananciais e aquíferos agrava essa situação e faz que a escassez afete regiões que têm grandes rios e água em abundância, mas imprópria para uso por conta da degradação e da precária qualidade.

Grandes rios brasileiros como o Iguaçu, Tietê, Paraopeba, São Francisco, Doce, Parnaíba, Paraíba do Sul, Jaguaribe, Sinos, Carioca e Mamanguape, entre outros, estão em estado de alerta em virtude das agressões que recebem diariamente, ao atravessarem regiões metropolitanas, áreas urbanas e de intensa atividade agrícola.

Esses rios e mananciais estão por um triz. Esse triste retrato pode ser constatado com base nas análises da qualidade da água realizadas pela Fundação SOS Mata Atlântica no período de março de 2018 a fevereiro de 2019, em 278 pontos de coleta, distribuídos em 220 rios, de dezessete estados brasileiros, e que revelam a precária condição do saneamento ambiental e o descaso com a gestão da água no Brasil.

O maior vilão das águas nesses grandes rios e mananciais é a falta de saneamento básico, de coleta e tratamento de esgoto. Dados do Instituto Trata Brasil apontam que 35 milhões de brasileiros não têm acesso a serviços de saneamento básico e 16,5% não são atendidos com abastecimento de água tratada.

A exclusão hídrica fica evidente diante desses números que reforçam a necessidade de implementação de políticas públicas e ações capazes de reverter esse quadro. A Lei das Águas do Brasil, que completou 22 anos, tem como princípio assegurar a disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados, e promover a utilização racional e integrada dos recursos hídricos.

É fundamento da Política Nacional de Recursos Hídricos que a água é um bem público e, portanto, não pode ser privatizada, sendo sua gestão voltada aos usos múltiplos (abastecimento, energia, irrigação, indústria, equilíbrio dos ecossistemas, lazer etc.), de forma descentralizada e com participação da sociedade. O consumo humano e de animais é prioritário em situações de escassez e crise hídrica.

 (Tânia Regô/Agência Brasil)

O acesso à água em qualidade e quantidade adequadas para a saúde e atividades econômicas depende da boa governança, da regulação, do cuidado e da mobilização da sociedade. Para garantir esse direito essencial é preciso cuidar dos rios e dos mananciais e, principalmente, tratar a gestão da água como uma questão estratégica.

A boa qualidade da água e o uso sustentável desse bem, essencial à vida, dependem da gestão integrada. Infelizmente, o governo brasileiro segue na contramão das políticas públicas de água e meio ambiente que a sociedade vem construindo desde a Constituição Cidadã de 1988. Por meio de reforma administrativa, retirou a Agência Nacional de Águas, voltada para a condução da Política Nacional de Recursos Hídricos, do Ministério do Meio Ambiente.

Em paralelo, tramita no Congresso Nacional, por meio de um projeto de lei de iniciativa parlamentar, um novo marco regulatório para o saneamento básico no país. A tramitação na Câmara Federal e no Senado abre espaço para que a sociedade possa debater, apresentar propostas e inovar, incluindo o acesso à água e aos serviços de saneamento como direitos humanos. Essa questão extremamente estratégica e urgente para a sociedade vinha sendo tratada de forma assoberbada, por meio de medidas provisórias que caducaram e foram rejeitadas no Congresso Nacional, por favorecerem a privatização dos serviços de água e saneamento.

A privatização dos serviços de água e saneamento vem sendo abolida em vários países que reestatizaram esses serviços essenciais. Na Europa, a Alemanha e a França já desfizeram mais de quinhentas concessões, privatizações e parcerias público-privadas, assim como ocorreu em países como Canadá, Índia, Estados Unidos, Argentina, Moçambique e Japão. No Brasil também há exemplos recentes, onde a privatização levou municípios ao caos nos serviços de abastecimento.

Em Itu, estância turística do interior paulista, o serviço municipal de água e esgoto foi concedido à iniciativa privada em 2005. Uma auditoria independente constatou na época que as dívidas do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE), companhia pública com 37 anos de atuação, somavam R$ 41,5 milhões, quase um terço do orçamento municipal daquele ano. Com o argumento de falta de recursos para quitar as dívidas e investir em obras de saneamento, a Câmara Municipal autorizou a concessão dos serviços à iniciativa privada. Em 2007, a concessionária Águas de Itu começou a operar e somente em 2010 o município criou uma agência reguladora. Irregularidades contratuais e de gestão foram constatadas e a população se mobilizou em manifestações e ações judiciais.

Em 2013, a Águas de Itu foi multada pela Prefeitura por descumprir o cronograma de obras. Os problemas se agravaram e, em 2014, com a crise hídrica que afetou a região Sudeste do país, Itu ficou dez meses em racionamento, sendo necessária intervenção do governo do estado para atendimento à população. Em 2015, por medida judicial, a Prefeitura afastou a diretoria da concessionária por descumprimento de contratos e nomeou um interventor.

Finalmente, em 2017, o serviço voltou a ser público, com a criação da Companhia Ituana de Saneamento. Esse exemplo demonstra as dificuldades que o município e a sociedade enfrentaram para retomar a gestão da água e como a privatização do serviço não trouxe a eficiência que alardeavam.

O debate em torno da privatização dos serviços de água se intensificou no Brasil em 2018, quando o país sediou o 8º Fórum Mundial da Água, evento que reuniu as principais autoridades, especialistas, empresas e a sociedade de mais de cem países. Em contraponto, na mesma época organizações sociais se uniram no Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama). Ambos ocorreram em Brasília (DF) com o objetivo de mobilizar instituições, governos e pessoas para ações efetivas em defesa do acesso à água de boa qualidade, e o direito humano à água foi reafirmado nesses eventos. Compromissos importantes, como os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), e outras ações estratégicas foram apontados nesses encontros para minimizar os impactos das mudanças climáticas e combater o desperdício e a poluição, bem como para aplicar soluções baseadas na natureza para garantir segurança hídrica às populações.

Apesar das recomendações, os novos governantes brasileiros promoveram mudanças administrativas nos Estados e na União, assim como na agenda política do país. Muitas delas trazem ainda mais incertezas para as políticas públicas de recursos hídricos e meio ambiente. Ao fragmentarmos a gestão da água entre ministérios, afastando saneamento e recursos hídricos do meio ambiente, retrocedemos nos ideais defendidos nos fóruns da Água e nos afastamos da gestão integrada, princípio fundamental da Política Nacional de Recursos Hídricos.

A precária condição ambiental dos rios brasileiros e a exclusão hídrica que deixa milhares de pessoas sem acesso à água de qualidade e causa impacto aos ecossistemas exigem mudanças efetivas de atitude em relação à água e à vida. Água é um bem público, essencial à vida.



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