Ainda estamos aqui
O filme apenas se tratou de um prêmio Oscar? Agora o Brasil pode se concentrar em planejar o próximo filme para um novo prêmio?
Fiquei muito feliz com a vitória no Oscar do filme Ainda estou aqui, do diretor Walter Salles, baseado na obra homônima de Marcelo Rubens Paiva, que conta a história de sua mãe, Eunice Paiva, e de sua família, antes e depois do sequestro, assassinato e desaparecimento de seu pai, o ex-deputado Rubens Paiva, pela ditadura cívico-militar (1964-1985). Pela primeira vez em 80 anos, o Brasil conquista uma estatueta dourada, o prêmio mais famoso de Hollywood, curiosamente a partir de um filme que denuncia a violência da ditadura militar.

Em 1986, o longa-metragem argentino La história oficial, dirigida por Luis Puenzo, ganhou o Oscar de melhor filme internacional e melhor roteiro original. De forma similar a Ainda estou aqui, a película retrata o impacto e a violência da ditadura na vida das pessoas. Ambos sem dúvida, incluindo também Argentina 1985 (Santiago Mitre, 2022), são importantes para conscientizar a sociedade sobre os horrores da ditadura e o valor de se viver em uma democracia. A diferença é que La Historia Oficial foi estrelado 4 anos após o fim da ditadura, e Ainda estou aqui, 35 anos desde o retorno a democracia. A Argentina teve um longo caminho para processar os responsáveis por esses crimes e construir um consenso social sobre a ditadura, que o governo atual tenta quebrar de todas as formas possíveis, mas dificilmente conseguirá. O Brasil pelo contrário, apostou em um modelo de transição baseado na impunidade, pensando que dessa forma tudo seria mais fácil. As consequências são conhecidas por todos, como a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, que assustadoramente, contou com um grande apoio popular. Por tudo isso, o filme de Walter Salles ganha importância para além da obra cinematográfica, pois nos confronta com um passado que, mesmo depois de várias décadas, continua sendo absolutamente presente.
Passada a empolgação pelo triunfo, chega o momento de reflexão, de nos perguntarmos: apenas se tratou de um prêmio Oscar? Isso é tudo? agora o Brasil pode se concentrar em planejar o próximo filme para um novo prêmio? Gostaria de pensar que não. Em uma reportagem posterior ao Oscar, o diretor do filme afirmou que a importância da película está na possibilidade de criar memórias, “memorias que sustentam a resistência”. Porém, venho assistindo com preocupação algumas tentativas de esvaziamento do conteúdo crítico do filme, do ponto de vista político e histórico, para o transformar em apenas uma vitória brasileira no Oscar.

Afortunadamente, e como forma de se contrapor a esta estratégia, Eunice Paiva e sua luta pacífica, mas incansável, nos lembra que ainda estão aqui, e são muitas, as pessoas (vítimas da ditadura) esperando por justiça, que ainda estão aqui, livres e impunes, os responsáveis pela violência e por todos os crimes cometidos durante a ditadura. Por isso não podemos permitir que o filme seja reduzido a uma estatueta dourada, uma estrela que unicamente indique que o Brasil “ganhou”, quando na realidade “perdeu” uma oportunidade única de olhar para o passado, recuperar a memória, e fazer que situações como as de Rubens Paiva e sua família, assim como as de centenas de outras famílias brasileiras desconhecidas, não se repitam mais.
Andrés Zarankin é professor Titular do Departamento de Antropologia e Arqueologia na Universidade Federal de Minas Gerais e membro das equipes arqueológicas do DOPS/MG e DOI-CODI/SP.