Ainda sobre 1964, ontem e hoje
No mês passado, o Brasil passou por mais um aniversário do golpe de 1964. Infelizmente, nos últimos anos, essa data se tornou mais do que objeto de memória e virou parte central da disputa política que vai definir os rumos da nossa República.
Estamos testemunhando, pela primeira vez, o julgamento de um ex-presidente e oficiais de alta patente, dentre outras autoridades civis, por tentativa de golpe de Estado. Os réus pertencem à vanguarda do revisionismo em defesa da ditadura de 1964, que torturou e executou sumariamente brasileiros e brasileiras por mais de duas décadas. Jair Bolsonaro, Augusto Heleno, Walter Braga Neto e cia, são herdeiros daquilo que os historiadores chamam de “linha dura” do regime militar, facção contrária à distensão conduzida a partir do governo Geisel, cujos membros chegaram a tramar e executar atentados a bomba com o intuito de culpar a esquerda e recrudescer a repressão. Eis o berço político do governo de Jair Bolsonaro, que foi, inclusive, expulso (e depois reformado) do Exército por participar de alguns desses planos, ações terroristas, sem meias palavras, e que tinham como único objetivo a preservação do regime de exceção em sua forma mais radicalizada.
Depois de vinte anos de eleições diretas que pareciam estar consolidando a Nova República, a partir da década passada fomos conduzidos a novas tensões nos limites da democracia, violada em 2016 quando uma presidente eleita, sem nenhum crime, foi derrubada por um congresso tomado de forças reacionárias municiadas pelas contradições típicas de uma nação periférica.
O custo da modernidade periférica
Os regimes produzidos pelo Neoliberalismo, consolidado com o fim da Guerra Fria, levaram à deterioração do “bem-estar” em praticamente todo o Ocidente liberal. Isso contribuiu para adensar sentimentos reacionários contra as instituições, resumidas na palavra “sistema”, o “tudo isso que está aí” que mobiliza o antagonismo político bolsonarista, ou seja, o “inimigo” de que todo movimento fascista precisa para ser gestado e amadurecer.
Esse “sistema” alvo da retórica neofacista é a Nova República, degradada por um movimento político pautado pela destruição das balizas cognitivas da realidade e disposto a esmagar as premissas de uma Constituição que o sistema político brasileiro falhou em realizar à maioria de sua população. Fracasso expresso em cada periferia que jamais foi inserida na esfera cidadã; em cada operação policial que paralisa aulas nas favelas, expondo profissionais da educação alunos e familiares a tiroteios violentos com frequência praticamente diária; nas cracolândias se expandindo nos grandes centros urbanos, crivadas de almas penadas em corpos destruídos pela desigual modernização brasileira. E, como não poderia deixar de ser no jogo de soma zero da luta de classes, o fracasso da Nova República também se expressa em cada condomínio de luxo fortificado como os castelos medievais; em cada nova remessa de lucros – obtidos através da exploração intensiva do trabalho do povo brasileiro pelas multinacionais – ao exterior; em cada menino ou menina negro(a) no sinal vendendo bala, fora da escola, para ajudar sua família; em cada furto de celular, que envolve uma dupla mazela: a economia do crime que recruta pessoas marginalizadas e a vítima do assalto, uma ação violenta que, não raro, termina em desfecho pior que a perda de um bem de consumo. Situação trágica que ilustra bem, aliás, o valor da vida humana em uma sociedade periférica marcada pelo colonialismo.
O problema da desigualdade social nos remete ao custo da modernização brasileira: a exclusão social da maior parte do povo. Essa exclusão é o core de todos os desafios nacionais, e mobilizava o intenso projeto de reformas do governo Jango, às vésperas do golpe de 1964. No entanto, à medida que as classes populares se organizaram e forçaram o avanço de direitos, novas correlações de força surgiram entre as classes dominantes. A aspiração à modernização, a partir da sensação compartilhada do “atraso”, estava em disputa, mas, entre as elites, era inadmissível (como continua sendo) uma modernização inclusiva que enfrentasse o sistema de castas informal que inviabiliza o bem-estar nacional.
Durante o período republicano, a busca pela modernização foi conduzida de forma autoritária, de modo a preservar hierarquias de classe herdadas do passado escravista. A Proclamação da República pelos militares (“pecado original” que cobra, até hoje, um alto preço) representa a tutela dos quartéis e o recurso à repressão militarizada como meio de controle de classe.
Sempre com os olhares voltados à Europa e aos EUA, as elites brasileiras, depois do longo interregno da República Velha, pactuaram em torno de Vargas e um governo sustentado por oficiais que reformularam o Exército em direção à instituição coesa (praticamente, monolítica ideologicamente, a partir do anticomunismo) que conhecemos hoje, inaugurando uma nova fase de modernização com fortes inclinações fascistas, porém mediadas pela organização sindical amparada pela experiência do Socialismo Real, que, à época da CLT (1943), iniciava seu avanço implacável contra a Alemanha Nazista.
Com o fim da guerra e o rompimento da aliança tática entre as democracias liberais e a URSS, a sustentação do governo Vargas se tornou impossível, e as pautas trabalhistas passaram a ser perseguidas como sinônimo de comunismo. Os anos 1950/60 observaram o crescimento da instabilidade política e da escalada de tensões nos quartéis, que, aliados taticamente a poderosos setores empresariais, forçaram a mão de Getúlio, tentaram impedir a posse de Juscelino e Jango e, finalmente, se organizaram no movimento golpista que derrubou o último presidente eleito da República de 1946.
1964 e 2025
A ditadura militar não foi “branda”, como afirmou, certa vez, a Folha de São Paulo (“ditabranda”). Foi um regime que cerceou liberdades, destruiu sindicatos, perseguiu e censurou políticos, artistas, jornalistas, professores e intelectuais. Prendeu, torturou e matou opositores.
E a violência poderia ter sido muito maior. Segundo o Arquivo Nacional1, o brigadeiro João Paulo Burnier queria, em 1968, que o esquadrão paraquedista Para-Sar organizasse uma série de atentados a bomba em lojas, agências bancárias e na sede da embaixada americana, além do sequestro de cerca de 40 personalidades de oposição que deveriam ser lançadas de avião no meio do oceano – entre os nomes, o cardeal d. Helder Câmara, o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda. O plano ainda incluía a explosão do Gasômetro do Rio e da represa de Ribeirão das Lajes, e as ações deveriam ser executadas na hora do rush, a fim de causar a morte de pelo menos 10 mil pessoas, segundo as estimativas mais modestas. O plano não foi executado pela desobediência de um capitão, Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho.

A ditadura também abriu o caminho para o lobby privado que tornou a educação a antessala do abismo social brasileiro, e sua política econômica enriqueceu uma elite à custa do arrocho salarial e da repressão aos trabalhadores, que, desmobilizados, perderam direitos e capacidade de pressionar seus patrões.
A ditadura militar representou não somente os interesses das FFAA, mas também dos diversos setores que compõem os interesses do Capital, ou “Mercado”, na tradução mais vigente na imprensa. Dito isso, toda vez que os termos “ditadura” ou “ditadura militar” aparecem nesse texto, estão amparados pelos estratos civis que fizeram cama ao golpe e ao regime.
Mas, a despeito de todo o mal que a ditadura fez ao país e dos riscos que a tentativa de golpe sendo julgada no STF deixou evidentes no momento presente, o governo Lula, em mais uma atitude conciliatória, optou por não fazer a necessária referência institucional à data do golpe de 1964, limitando-se a uma postagem tímida em seu perfil nas redes sociais. O motivo é óbvio: evitar atritos com os militares, que, em troca, evitaram celebrar publicamente a ditadura, como tem sido de praxe.
O aparente pragmatismo, todavia, dissimula um problema pior do que se indispor com os militares, ao permitir que eles sigam ameaçando a República, cuja maternidade consideram sua e que julgam sempre incapaz de se emancipar. Na mentalidade que reina na caserna, os civis são inaptos para conduzir o país, consenso antigo entre o oficialato e que se reproduz nas fileiras pelo ensino nas escolas militares. Assim, a submissão do poder civil ao militar – uma excrecência política incompatível com o espírito republicano e democrático – é naturalizada entre o corpo de oficiais brasileiro e perpetuada com a celebração de um passado que deveria ser repudiado. Isso é antigo e pode, sem exagero ou incorreção, ser considerado o mais grave problema político nacional, cuja persistência contribui para sedimentar cada vez mais uma relação civil-militar fora das balizas necessárias ao Estado Democrático de Direito, problema que escala a violência na segurança pública, colaborando decisivamente para perpetuar a repressão violenta das periferias, além de manter sobre a classe política a permanente ameaça da tutela militar, duas condições antagônicas à democracia.
Durante muito tempo, foi objeto de consenso entre os civis que, para não sofrer com novas ameaças das FFAA à ordem constitucional, bastava isolar os militares dentro de seus muros, ainda que com suas versões falaciosas da história amparadas por um positivismo caduco, seus tribunais indulgentes – que, após condenarem Bolsonaro à expulsão, resolveram abrandar e passá-lo à reforma – e seus privilégios – que fizeram uma reforma previdenciária (que tanto penalizou outras categorias do funcionalismo público) se tornar um plano de carreira. Esse conjunto de práticas políticas em relação às FFAA se encaixa na famosa tipologia que Samuel Huntington chamou de “controle civil subjetivo”: conter a intervenção militar “comprando” a lealdade dos quartéis por meio de benesses institucionais/corporativas e negociações políticas. Ou seja, os militares se manteriam leais ao poder civil por razões externas ao mandamento constitucional.
Críticos contestam o modelo ‘huntingtoniano’ afirmando que os militares também são cidadãos e estão, portanto, sujeitos a interesses políticos. Não pretendo me aventurar aqui na seara da teoria de relação civil-militar, mas salientar que não é possível ao espírito republicano prescindir da obediência das FFAA ao poder soberano. Esse equilíbrio é fundamental e nele repousa, em última instância, a estabilidade política que garante à sociedade as condições para todas as demais atividades da vida pública e privada prosperarem.
Mas não tem sido esse o fio condutor da história política brasileira. A anistia autoconcedida em 1979 enterrou os crimes da ditadura e alimentou a impunidade ao afastar as cobranças pela responsabilização dos militares, deixando um “ovo da serpente” na incubadora fraterna da democracia. Quatro décadas depois, ele chocou, e dele saíram velhos conhecidos, generais que veem 1964 como uma “revolução” necessária e modelo para Bolsonaro reinventar o projeto autoritário.
E o que fazer?
Voltemos um pouco. Encerrada a ditadura, a Nova República foi projetada como um Estado de bem-estar social, mas conservou um país muito desigual. E conservou também a tutela fardada que, junto com as oligarquias, inviabiliza a realização da democracia, escanteando a soberania popular por meio da destruição sistemática da educação pública. Interditada essa via de emancipação, a desigualdade estrutural alimenta contradições sociais que, na ausência de saídas políticas, se expressam no caos da insegurança pública que escala todos os dias nas cidades brasileiras, bem como na insatisfação política geral que deu ignição à crise institucional que se agrava a cada ano desde 2013.
Se é verdade que podemos elencar diversos fatores para explicar a conjuntura política que vai do golpe contra Dilma à eleição de Bolsonaro, tais como a inequívoca interferência dos EUA via operação lava-jato, por exemplo, podemos concluir também que não há dúvidas de que o caldo reacionário encontrou terreno fértil numa sociedade fraturada por tantas contradições e cansada de um sistema de representação cada vez mais distante de suas necessidades. A contradição gritante aqui, e que evoca questionamentos entre segmentos progressistas, é a adesão ao antipetismo entre as classes populares beneficiadas pelos governos do PT. O tema é complexo e não tenho a pretensão de enfrentá-lo neste breve ensaio, mas uma variável pode ser crucial para entendê-lo: o avanço das igrejas neopentecostais (que teve grande impulso, inclusive, durante os governos petistas) no vazio político deixado pelo governo junto às suas bases (a famosa crítica do Mano Brown), oferecendo de bandeja aos pastores a capitalização, via teologia da prosperidade, dos ganhos obtidos pela classe trabalhadora. Esse avanço foi determinante produzir a massa crítica necessária às forças reacionárias para disputas as eleições majoritárias, amparadas pelo avanço implacável no Legislativo.
Galvanizado o caldo reacionário, temos, nos últimos anos, enfrentado o revisionismo sobre a ditadura na forma de manifestações de parlamentares, do Clube Militar – a voz informal das FFAA – e até mesmo notas do Ministério da Defesa e dos Comandos, durante os Governos Temer e Bolsonaro, relembrando positivamente o regime de 1964.
Por isso, é cada vez mais importante que falemos sobre a ditadura e o que representou para o país, tarefa não apenas de quem trabalha com política, mas das artes, dos educadores e da sociedade em geral. E é necessário que nos mobilizemos para adequar os militares ao seu lugar constitucional, o que deve passar por uma reforma profunda dos currículos das escolas de formação militar, algo fundamental para a consolidação da democracia brasileira, que não tem como ser preservada com forças armadas de vocação autoritária. As FFAA são instrumentos do Estado e devem, portanto, se submeter à soberania política ratificada na Constituição.
É esse contexto histórico que faz do julgamento em curso no STF tão importante, semelhante ao Tribunal de Nuremberg na Alemanha – que, de forma hilária, foi lembrado recentemente por parlamentares bolsonaristas como referência para atacarem o STF. Se a carapuça lhes caiu tão bem, quem haverá de objetar?
Enquanto o Estado e a sociedade fingirem que 1964 é uma página virada, e tratarmos a ditadura como um tema “sensível” e permeável à negociação em vez de um crime a ser condenado, estaremos alimentando a ideia de que os militares estão acima da lei. E que nossa paz e nossos direitos dependem do humor da caserna.
O Brasil precisa de um debate franco sobre o papel das Forças Armadas. Não se trata apenas de lembrar o passado, mas de impedir que se repita. Enquanto o governo evitar essa discussão, estaremos deixando a democracia sob a tutela de quem nunca acreditou nela.
É preciso fazer justiça ao passado para disputar o presente, e o governo que prometeu reconstruir a democracia não pode se omitir nessa batalha. Tampouco pode fazê-lo a sociedade civil que anseia por defender e ampliar os limites da democracia brasileira. Porque o silêncio nunca é neutro — é sempre uma escolha. E não há escolha entre resistir ou aquiescer ao golpismo.
João Rafael Morais é historiador, doutor em ciência política e professor no Instituto de Estudos Estratégicos da UFF.
Referências
BRUNEAU, Thomas C.; MATEI, Florina Cristiana. The routledge handbook of civil-military relations. Abingdon: Routledge, 2013.
CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2005.
COELHO, Edmundo Campos. Em busca de identidade: o Exército e a política na
sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 1976.