Ajustes dolorosos entre oferta e procura
Nos últimos tempos, o mercado nos ensinou uma lição valiosa: os preços sempre acabam se equilibrando, independente das circunstâncias. Já as pessoas, que sofrem diretamente com seus altos e baixos, não. Para elas a economia não é um mero desafio especulativo, mas o elemento que determina sua condição de vida
Definitivamente podemos dizer que os mercados “se ajustam”. Se estabelecermos uma média entre os anos bons e ruins, veremos que os preços sempre acabam igualando a oferta e a procura. Em especial nos últimos tempos, em que os mercados viraram espetáculo e seria preciso adotar uma postura muito intransigente para ignorar essa lição do “ajuste”.
Cresce a procura por energia fóssil?
O preço desse recurso aumenta oportunamente, de maneira a restabelecer a igualdade entre oferta e demanda. Quaisquer que sejam as razões – a taxa de crescimento desenfreada da China, as restrições da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), as posições abertamente especulativas dos fundos de investimento, as incertezas geopolíticas ou a rarefação das jazidas mais acessíveis –, a tensão entre o crescimento da procura e da oferta é resolvida graças a um aumento de preços. Assim, entre maio de 2007 e maio de 2008, a cotação do petróleo dobrou. E quintuplicou desde 2002, se analisada em dólar. E quais são as previsões agora? Bem, o preço do barril do produto bruto já caiu mais de US$ 30 durante o mês de julho.
A busca por cereais aumenta mais rápido que a oferta?
A alta dos seus preços restabelece in petto a igualdade entre a oferta e a procura, quaisquer que sejam as razões – más colheitas; aumento do custo dos insumos; urbanização acelerada e desertificação dos campos nos países emergentes; constituição de uma classe média na Índia e na China que consome alimentos que demandam grandes superfícies cultivadas, tais como carne, trigo e milho; desenvolvimento dos biocombustíveis; transferência para os gêneros alimentares de especuladores que fogem da crise dos subprimes… Assim, em 2007, o valor do trigo cresceu 120%, o do arroz dobrou e os preços do conjunto dos bens alimentares tiveram uma escalada de 83% em relação a 2005, segundo o Banco Mundial. Enquanto você faz suas compras, os mercados se ajustam. E caso não esteja completamente atordoado pela fome, espere mais um pouco para estocar trigo e milho porque eles entraram em baixa nas últimas semanas.
A procura de dólares caiu em relação à de euros?
A paridade euro-dólar ajusta-se, instantaneamente, quaisquer que sejam as razões: a perspectiva de crescimento menor dos Estados Unidos em relação à Europa; o diferencial de taxa de juros entre as duas margens do Atlântico; as ameaças de novas depreciações de ativos na esteira da crise dos subprimes; o aprofundamento do déficit do comércio exterior norte-americano… As paridades monetárias se ajustam para reconduzir à igualdade a oferta e a procura de divisas. Se comparado ao dólar, o euro subiu 17% em um ano e 35% desde sua primeira cotação oficial, datada de 4 de janeiro de 1999. E se as previsões de crescimento mudaram após uma declaração do presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, apontando os “riscos” que pesam sobre a economia francesa, os mercados receberam a “boa nova” invertendo a tendência: em dois dias, o euro caiu 0,06 % em relação ao dólar.
A demanda por moradia aumenta mais rápido do que a oferta?
Pouco a pouco, os preços dos imóveis se ajustam. Quaisquer que sejam as razões: crescimento da população; aumento rápido do número de famílias; baixa das taxas de juros reais; prolongamento dos empréstimos; aumento dos aportes pessoais; vantagens fiscais; procura estrangeira… A igualdade entre oferta e procura é restabelecida pelo aluguel dos imóveis disponíveis com o preço nas alturas. Entre 1998 e 2004, o custo da moradia aumentou 90% na França, 140% no Reino Unido e 160% na Espanha. Aparentemente, porém, a tendência à alta acaba de ser interrompida.
Os mercados se ajustam… as pessoas não
Não há dúvida, os mercados se ajustam… Já as pessoas, não. Nem as pessoas nem o conjunto dos agentes econômicos que não vêem nos preços meros desafios especulativos, mas faturas que determinam os custos de suas atividades, a legitimidade de seus projetos de investimento, os rendimentos dos quais podem dispor e, de maneira geral, sua condição de vida.
Para as centenas de milhares de norte-americanos que perderam sua moradia nos últimos dois anos, o ajuste não ocorre com a variação de preço dos subprimes. Assim, os bancos que especularam durante o aumento contínuo do valor dos imóveis colocaram na rua milhões de infelizes que não tiveram tempo para se recapitalizar em fundos soberanos exóticos. E temeram que os sofredores se desviassem do culto aos mercados – os quais, aliás, já começaram a se ajustar. Quem será capaz de reacender a fé desses indivíduos tão prejudicados, convidando-os a contemplar, da entrada de seu novo trailer, o preço de sua antiga casa baixar ao ritmo de 8% ao ano?
Para os milhões de franceses que viram sua conta de aquecimento doméstico a óleo aumentar 38% em um ano, o ajuste já ocorreu… em seu rendimento discricionário. Devemos, é claro, lamentar que eles não tenham sabido prever corretamente a alta dos preços do petróleo, para redesenhar antecipadamente suas estratégias energéticas comprando apenas geradores eólicos ou painéis solares. Bastaria, de fato, decodificar a evolução da cotação do petróleo durante dez anos. Isso, é claro, antes que ela estivesse disponível em plena luz do dia, nos jornais de economia. O mercado só dispensa seus favores àqueles que sabem antecipar-se às suas virtudes. Que ao menos esse pensamento possa distraí-los de fustigar a incúria de nossos dirigentes que nada fizeram para iniciar a tempo a conversão de nosso aparato termoindustrial.
Para os 850 milhões de indivíduos que já conheceram a fome e para os 2 bilhões de pessoas cuja ração de arroz fornece entre 60% e 70% de suas calorias diárias, a questão do ajuste é quase supérflua. A regulação da qual eles serão objeto, após a duplicação dos preços agrícolas, está escrita desde o início do século XIX nos tratados de economia política de Malthus e David Ricardo. Quando o preço dos gêneros agrícolas tiver aumentado o bastante para condená-los a uma morte prematura ou desviá-los do projeto de ter uma prole numerosa, a mão-de-obra voltará, na geração seguinte, a proporções razoáveis em relação à disponibilidade de postos de emprego e o salário poderá novamente se elevar ao nível de um prato de arroz.
Para as mil empresas francesas que asseguram 70% das exportações do país, a supervalorização do euro em relação ao dólar não permitirá duvidar dos “ajustes”. Apenas na aeronáutica, cerca de 135 mil empregos são postos na balança contra os custos de produção que se tornaram de facto mais baixos na zona do dólar: “Hoje, não vejo o que poderíamos fazer além de ir para países na zona do dólar ou de baixos custos”, declara Charles Edelstenne, presidente do Grupo das Indústrias Francesas Aeronáuticas e Espaciais (Gifas).
Mas os estragos decorrentes do fato que o Banco Central Europeu (BCE) não quer ter política de câmbio – já que os mercados são teoricamente soberanos – não estarão limitados à indústria aeronáutica. Pierre Gattaz e Laurent Gouzènes, respectivamente presidente da Federação das Indústrias Elétricas, Eletrônicas e de Comunicação (Fieec) e membro da comissão de economia da mesma instituição, prevêem que “é o conjunto do ecossistema industrial que fica abalado com isso”. Eles não hesitam mais em denunciar “as devastações que o desequilíbrio excessivo das moedas provoca na competitividade e, portanto, na capacidade de inovar, de produzir e de exportar”.
Eles têm razão. E bendita seja sua declaração de não nos infligir o exemplo da Alemanha, que, para resistir à subida do euro, submeteu-se à cura da taiwanização, fazendo baixar os salários reais quase 5% em três anos. Assim, a parcela de trabalhadores pobres passou de 15% a 22% em apenas uma década, seguindo as pegadas do ilustre modelo norte-americano. Felizmente a ameaça cada vez mais crível de uma recessão na Europa põe um pouco de alegria em tudo isso: a flexibilização da cotação do euro permitiu que a ação da Companhia Européia de Aeronáutica, Defesa e Espaço subisse 10% no dia 8 de agosto.
Lições aprendidas
Primeira lição: os mercados se ajustam e os atores, não. Os movimentos violentos dos preços são precisamente o sinal de que os desequilíbrios, mesmo que modestos, entre a oferta e a procura não podem ser corrigidos por readaptações calculadas pelos agentes econômicos.
É exatamente a incapacidade dos agentes de mudar de barco na tormenta – o que em linguagem técnica se chama de “inelasticidade” da oferta e da procura – que aumenta a volatilidade dos preços. Os desequilíbrios só podem então se purgar a favor de movimentos consideráveis dos preços. Curiosa ironia do destino: produz-se, assim, bem debaixo do nosso nariz, exatamente o inverso do que a teoria econômica dominante ensina. Segundo essa vulgata, é a imperfeita flexibilidade dos preços que causaria desequilíbrios nos mercados e poderia explicar “ajustes” pelas quantidades e mazelas como o desemprego. Mas, na verdade, os movimentos extraordinários dos preços traduzem-se por ajustes brutais sofridos pelos agentes econômicos.
A segunda lição, não menos importante, é que a interdependência dos mercados, longe de constituir um aditivo eficaz da “mão invisível”, contribui, ao contrário, para ampliar os desequilíbrios, fazendo tudo repercutir ao longo de improváveis cadeias causais, que rapidamente escapam do controle.
Isso ocorre, por exemplo, quando a baixa do dólar contribui para o aumento dos preços do petróleo ou dos gêneros alimentares porque os fundos de investimentos se desviam dos valores com previsão de baixa para se ligarem aos que provavelmente vão subir; ou quando, ao mesmo tempo, a aposentadoria de milhões de norte-americanos está pendurada nas apostas de crescimento contínuo dos preços do petróleo; ou ainda quando o preço do prato de arroz para 2 bilhões de indivíduos aumenta porque as grandes potências decidiram responder ao choque do petróleo desenvolvendo os agrocombustíveis. Deveríamos, então, começar a admitir que a interdependência dos mercados gera mais problemas do que resolve.
A terceira lição é que, em um contexto de liberalização quase total dos mercados, as medidas de proteção tomadas nas emergências podem agravar o problema.
Assim é a resposta das grandes potências (entre as quais a União Européia) ao salto dos preços do petróleo. Ela consiste, por um lado, em encorajar a produção dos agrocombustíveis e, por outro, acentuar a alta dos produtos alimentares ao tomar-lhes as terras férteis para o plantio. Enquanto deveríamos nos alegrar pela reorientação das escolhas energéticas, teremos de admitir que as ambições da UE – 10% de agrocombustíveis em nossos motores até 2020 – implicariam a conversão de mais de 70% das áreas agrícolas do continente para esse fim! Isso sem contar que a conversão das terras necessárias para produzir etanol à base de milho dobraria a emissão de gases de efeito estufa. Este é mesmo o nosso objetivo?
E o que dizer quando as respostas parecem ir no sentido contrário, a exemplo da política monetária européia? O BCE, que visivelmente não se preocupa com a supervalorização do euro, concentra-se unicamente no objetivo da estabilidade dos preços. Como certamente não está em seu poder acalmar a inflação importada pelo remédio habitual da restrição monetária, ele se concentra no que denomina com o agradável nome de efeitos de “segundo turno”. Ou seja, pelas altas de salário que os trabalhadores poderiam ser tentados a reivindicar para compensar o aumento dos preços dos bens de primeira necessidade.
Assim, conhecendo uma única solução eficaz, o BCE especula uma desaceleração anunciada da atividade econômica na Europa, na esteira da crise dos subprimes, para domar os “ardores reivindicatórios” das classes trabalhadoras.
Com a ajuda da desaceleração econômica, a degradação do mercado de trabalho deve minar o poder de negociação dos assalariados, moderando as altas de remuneração e, a seguir, dos preços. Mas, na medida em que essas reivindicações salariais são alimentadas por 25 anos de austeridade ininterrupta, não é tão certo desta vez que os assalariados abram mão do pão pelo medo de perder o ganha-pão. Em todo caso, Christian Noyer, governador do Banco da França, já assinalou sua posição à plebe dos pequenos produtores: “Nós advertimos todos os dirigentes de empresas de que não devem aumentar os salários e as margens frente à expectativa de que a inflação devesse ficar em 3,5%. É necessário que se fixem no nosso objetivo, que é de menos de 2%”.
Manter as regras do jogo
É preciso reconhecer que algumas reações são de um sangue-frio quase invejável. Pesando todos os riscos e avaliando a boa dosagem da resposta, o secretário norte-americano do Tesouro, Henry Paulson, declarou: “Será preciso encontrar o bom equilíbrio. A regulamentação deve recuperar a inovação e contribuir para restaurar a confiança dos investidores, mas não é preciso ir longe demais e criar novos problemas, arriscando tornar os mercados menos eficazes”.
No mesmo espírito, Alan Greenspan, antigo presidente do Federal Reserve (Fed) norte-americano, reconheceu que se tratava da “crise mais grave desde o fim da Segunda Guerra Mundial”. Uma crise que, de acordo com ele, “deixará muitas vítimas”. Essa não é, no entanto, uma razão para ceder ao pânico e jogar o bebê com a água do banho: “Mas eu espero”, continua, “que uma das vítimas não seja a auto-regulação financeira como mecanismo fundamental de equilíbrio do setor financeiro mundial”.
Por sua vez, Jean-Claude Juncker, primeiro-ministro de Luxemburgo e presidente do Eurogrupo, apresentou aos seus 27 parceiros da União Européia a análise radical que convinha fazer sobre a crise dos câmbios: “Devemos observar de perto o que se passa e estamos cada vez mais vigilantes”. Como se a mensagem não tivesse sido firme o suficiente, insistiu: “Nós não apreciamos a volatilidade excessiva dos câmbios”. Os mercados tremeram, elevando a cotação do euro de US$ 1,56, em 13 de março de 2008, para US$ 1,60, em 23 de abril de 2008.
Como sempre, os mais febris nesse tipo de situação são os jornalistas. Na Alemanha, os jornais Handelsblatt e Süddeutsche Zeitung, pouco suspeitos de pensamentos progressistas, pedem para “pensar o impensável”, com o objetivo de levantar os bancos em situação de quase-falência e até mesmo para vislumbrar “jogar nossos princípios [liberais] ao mar”. Confetes, serpentinas e clima de fim de festa após 25 anos de doutrinamento oposto? Ou aggiornamento real?
Para os aggiornamentos é preciso, sem dúvida, confiar na Itália. Giulio Tremonti, professor universitário, economista liberal, eminência parda e ministro da Economia de Silvio Berlusconi, decidiu fazer um mea culpa sonoro em plena campanha para as eleições legislativas, publicando um ensaio que fez algum barulho: “O mercado, a ideologia totalitária inventada para governar o século XXI, demonizou o Estado e quase tudo o que era público ou comunitário, colocando-se como soberano, em posição de dominar todo o resto. Agora, não se pode mais dizer que era a linha justa, a única possível”.
Nosso destino está em boas mãos. Para uma parte considerável, a aposta que nos resta é contar com um retorno rápido e entusiasta de nossas elites, para que elas mudem a letra das canções que as manterão no poder. A porta, porém, é estreita, e nem todo mundo será convidado a entrar no novo momento.
*Laurent Cordonnier é economista e mestre de conferências da Universidade Lille-I. Autor de Pas de pitié pour les gueux (Nenhuma piedade para os miseráveis), Paris, Raisons d’Agir, 2000 e de L’Economie des Toambapiks, Raisons d’Agir, Paris, 2010.