Alain Delon e o suicídio assistido
O suicídio, e junto dele, práticas como o suicídio assistido e a eutanásia, suscitam a densa questão “a quem pertence a vida?” e essa é uma reflexão que não é passível e nem deve ser esgotada. Fica claro que politicamente não há autonomia para essa decisão, mas é necessário que essas práticas sejam discutidas porque precisamos debater dignidade de vida, e isto inclui pensar em cuidados e humanização da morte
Algumas pessoas receberam com perplexidade a notícia de que o ator francês Alain Delon decidiu que chegou seu momento de partir para sempre. Em outras palavras e sem minimizar ou florear o relato: ele decidiu que chegou seu momento de morrer e anunciou aos fãs sua despedida. O filho do ator declarou publicamente que o pai decidiu optar por suicídio assistido, uma prática que, assim como a eutanásia, não é legalizada no Brasil. Aliás, são poucos os países que legalizaram práticas da bioética que preconizam a decisão pelo melhor momento de morrer.
De início, quero advertir os leitores que não falo e não falarei de morte, suicídio e finitude com hesitações. Esse texto é direto aos pontos necessários para a reflexão que quero propor e que aliás, proponho na minha rotina enquanto pesquisadora do tema, enquanto docente e enquanto psicóloga que atua com doenças crônicas. Então se esse tema é sensível, talvez seja mais prudente deixar o texto para outro momento ou optar por não ler.
Não há outro modo de abordar os temas da bioética, e, portanto, o suicídio assistido, sem clareza e sem tocar em pontos mais doloridos destes assuntos. Sim, são assuntos doloridos, evocam o campo do desconhecido, do estranhamento, da angústia. Mas, é necessário ultrapassar a perplexidade e percorrer caminhos espinhosos. Pois bem, iniciar não é fácil, mas minha escolha será a de iniciar pela história, a história da morte no Ocidente.
Philippe Ariès, historiador francês contemporâneo de pensadores importantes como Foucault, Lacan e Beauvoir, desenvolveu pesquisas e inventários fundamentais a respeito das representações sociais da morte no Ocidente. Um de seus livros mais conhecidos tem exatamente este título História da morte no Ocidente e nele, o historiador descreve com detalhes as transformações nas formas de lidar com a morte e nas formas de morrer no decorrer dos séculos XVI a XIX sobretudo. Ariés mostra uma transformação radical na forma de falar, lidar e representar a morte. Claro que as grandes transformações não ocorrem de um dia para outro, mas são mudanças que deixam claro o momento a partir do qual, nas sociedades ocidentais (se falarmos de Oriente ou de outras culturas isso certamente é diferente), a morte se torna o interdito, o escondido, o velado, feio etc. Ariés diz, em linhas muito gerais, que até o século XVII a morte era parte do cotidiano; as pessoas morriam em casa, o momento da morte era extremamente ritualizado, havia despedidas, a morte era tema corriqueiro, crianças participavam sem ressalvas dos rituais, ou seja, a morte e o morrer eram algo do campo do público, não se morria às escondidas e não se evitava o assunto da morte. Isso se transforma radicalmente a partir do fim do século XVIII e então, diz o historiador, a morte se torna interdita: sai do espaço público e passa a ocorrer sobretudo no espaço privado e solitário do hospital. A partir desse momento temos o que segue vigente até hoje: a morte se torna tema tabu, palavra proibida, é geralmente com ares de hesitação que se fala dela, teme-se lembrar do fato incontornável de que somos, todos nós, mortais. Teme-se até mesmo lembrar de que é justamente por sermos mortais que a vida tem significado.
Mas, por que as coisas aconteceram desse modo? Quais transformações sociais estão envolvidas nessa mudança? Quais as condições de possibilidade dessa interdição sobre a morte?
Pode parecer estranho até mesmo pensar que a morte tem uma história. Mas os historiadores são fundamentais nessa tarefa de nos mostrar nossa própria história e nos fazer entender de onde viemos, para que seja possível pensarmos o que estamos fazendo de nós mesmos. Contudo, as interessantes e, eu diria, fundamentais investigações de Ariés, apesar de descreverem esse fenômeno, não explicam por que tudo sucedeu dessa maneira. Sendo assim, é possível recorrer aos pensadores, aos diagnosticadores do presente, aos investigadores que se dedicam a resgatar e questionar o fundamento de tudo: os filósofos. E Michel Foucault talvez seja o mais conhecido pensador a nos fornecer ferramentas para refletir sobre o estatuto político de vida e morte no Ocidente. Sim, estamos falando de transformações na forma de encarar e de governar a vida e a morte, em termos políticos.
É importante estabelecer algumas demarcações sobre a noção de biopolítica (trabalhada por Foucault) para entender como, em nossa realidade, suas tecnologias operam em termos de vida e morte, ou mais especificamente, em termos de quem é politicamente relevante ou irrelevante, de quem deve viver e de quem pode ou deve se fazer morrer. Na biopolítica, ou seja, sobretudo a partir da passagem do século XVIII para XIX com o a vigência do poder político atuando sobre o biológico da população, vida e morte não são mais apenas fenômenos biológicos; vida e morte são fenômenos com estatutos políticos bem delineados. A biopolítica, entrada da vida na política, altera todas as formas do viver nas sociedades ocidentais. E se a vida entra na preocupação política é preciso governar a morte, seu oposto biológico e político, como bem descrito por Foucault.
Sobretudo nos anos 1970 Foucault se dedica a analisar as tecnologias de exercício do poder e entre estas, a biopolítica, com suas normas e regulamentações sobre o corpo da população. As regulamentações da biopolítica sobre vida e saúde da população vêm se articular às tecnologias de docilização dos corpos que o filósofo já havia descrito anteriormente com suas considerações sobre o poder disciplinar. A biopolítica é o ingresso do biológico da população no campo político, do controle, do governo. Assim, é a vida que se torna politicamente o bem mais importante e relevante a ser mantido. Viver se torna mais do que um direito individual, uma obrigação. E Foucault nos mostra de modo claro que apesar da vida como bem supremo parecer algo óbvio, nem sempre foi assim. Com a entrada da vida na preocupação do poder político a saúde se torna imperativo individual e coletivo. Morrer passa a ser encarado praticamente como fracassar.

Nesse contexto adoecer e morrer são praticamente inaceitáveis, como que fracassar numa sociedade na qual a racionalidade política vigente nos faz supor que o sucesso total, a saúde, a beleza e a felicidade são bens comuns totalmente alcançáveis. E na biopolítica a morte, por ser indesejável ao poder político, assim como o adoecer, precisa sofrer interdições, higienizações, precisa ser transferida ao campo do saber médico, que a salvaguarda. A partir da biopolítica não cabe mais ao poder político, como em épocas do poder soberano, punir com a morte os desobedientes. Para fazer morrer, na biopolítica é preciso lançar mão do argumento do risco biológico. É nesse ponto que, conforme mostra Foucault, opera o racismo de Estado. Para Foucault, o racismo de Estado não é apenas um racismo étnico (é étnico também), mas trata-se de uma espécie de justificativa para fazer morrer. É por conta disso que afirmei anteriormente que as transformações descritas por Ariès não são necessariamente explicadas por ele, mas recorrendo às investigações de Foucault ficam claras as condições de possibilidade de interdição da morte e do morrer.
Com a retirada da morte do campo do público, com sua interdição, o suicídio propriamente dito é, também, considerado tabu, palavra proibida, interdito por conta de todos os atravessamentos morais e religiosos que o perpassam, mas sobretudo, por ser considerado uma transgressão política. Num cenário biopolítico, ou seja, num cenário no qual estão vigentes as regulamentações morais da biopolítica da obrigação de se manter vivo, querer morrer é vetado. Decidir o momento de morrer, seja por suicídio, seja por eutanásia ou por suicídio assistido, como foi o caso de Alain Delon, é vetado. Esse é um assunto que trato em meu livro Suicídio e medicalização da vida – reflexões a partir de Foucault, lançado em 2021. Mas para além das questões morais e políticas é importante descrever o que são cada um desses temas.
O suicídio assistido é diferente da eutanásia porque nele um paciente escolhe morrer e recebe a prescrição de um medicamento – normalmente por via oral – que possibilita a morte e que ele mesmo toma. Na eutanásia, por outro lado quem administra a morte do paciente é o profissional de saúde com uma substância injetável. Em poucos países o suicídio assistido é legalizado. E curiosamente na Suíça, país escolhido por algumas pessoas para o suicídio assistido, a eutanásia é considerada crime.
É importante ressaltar que, mesmo na Suíça, trata-se de um procedimento bastante burocrático e a pessoa que toma essa decisão precisa passar por uma série de avaliações, que inclui avaliação médica, antes de ser autorizada a realizar o procedimento. Não é meu propósito aqui analisar os pormenores legais desses procedimentos, mas trazer à tona aspectos que possibilitem refletir sobre sua complexidade.
Não é raro ouvir de pacientes crônicos, especialmente aqueles que passam por tratamentos médicos com repercussões físicas e limitações por tempo prolongado, que seria melhor que a morte ocorresse em breve. E nem sempre nesses casos há necessariamente um pensamento de suicídio. O que há, certamente, é a comunicação de um intenso sofrimento psíquico, físico, social, espiritual, associado ao adoecer. E para isso não podemos fechar nossa escuta. Em minha prática profissional a escuta desse sofrimento é uma constante. E para muito além dos pré-julgamentos externos, certamente Alain Delon, ao decidir pelo momento de morrer, levou em consideração aquilo que para ele é dignidade de vida. Certamente também levou em consideração a própria trajetória e o próprio sofrimento. E é pertinente lembrar, neste ponto, que propósito de vida e sofrimento psíquico são individuais, pessoais, intransferíveis e não passíveis de julgamento. O ditado popular: “cada um sabe onde lhe aperta o sapato” é bastante aplicável e didático nesse caso.
O suicídio, e junto dele, práticas como o suicídio assistido e a eutanásia, suscitam a densa questão “a quem pertence a vida?” e essa é uma reflexão que não é passível e nem deve ser esgotada. Fica claro que politicamente não há autonomia para essa decisão, mas é necessário que essas práticas sejam discutidas porque precisamos debater dignidade de vida, e isto inclui pensar em cuidados e humanização da morte.
Todo esse contexto faz muitas pessoas refletirem sobre a questão da autonomia do sujeito. E nesse sentido não há dicotomia fácil nem possível. Não se trata de automaticamente dizer que todos os países deveriam legalizar essas práticas. Em torno do suicídio, suicídio assistido e todas as questões da bioética, dada a sua complexidade, há muito mais necessidade de fazer perguntas e fomentar a reflexão e a discussão, do que de querer procurar respostas simples. Não é prudente encerrar as questões com decisões jurídicas e menos ainda baseando-se apenas em atravessamentos morais. Não se trata também de se autodeclarar favorável ou não favorável a esta ou aquela prática. Há que se refletir largamente sobre o contexto todo. Isso porque há muitos pormenores. Um dos que podemos enfatizar é o fato de que não há igualdade nem equidade de acesso à saúde para todos. No Brasil, por exemplo, com a precariedade da assistência em saúde e com a precariedade das condições de vida de boa parte da população estamos muito longe de pensar em debater essas práticas.
Gosto sempre de enfatizar que o suicídio não é um tema exclusivo das áreas da saúde, apesar de envolver, em geral, extremo sofrimento psíquico. O suicídio e todos os temas da bioética, incluído aí, o suicídio assistido, são temas da vida, das formas de vida, às quais é necessário pensar e repensar, em sua totalidade e sua complexidade. Porque são as formas de vida, dignas ou indignas, que se pode querer abandonar.
Flávia Andrade Almeida é psicóloga clínica e hospitalar, especialista em Prevenção ao Suicídio, Psicologia da Saúde e Psico-oncologia. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e doutoranda em Psicologia Clínica na USP. Docente e pesquisadora dos temas da morte, suicídio e da subjetividade pelas perspectivas da Psicanálise e da Filosofia. Autora do livro Suicídio e medicalização da vida – reflexões a partir de Foucault (Editora CRV). Administradora da página Psicologia e Prevenção do Suicídio.
Referências
ALMEIDA, Flávia Andrade. Governo da morte e necropolítica. Deus Ateu. Disponível em: https://deusateucombr.wordpress.com/2021/02/16/governo-da-morte-e-necropolitica/
ALMEIDA, Flávia Andrade. Suicídio e Medicalização da vida – reflexões a partir de Foucault. Curitiba, Editora CRV, 2021.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). 3ª edição. Edição estabelecida no âmbito da Associação para o Centro Michel Foucault, sob direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Mauro Bertani e Alessandro Fontana. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 2016.